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É em decorrência dos conflitos internos no assentamento, que o ethos camponês vira objeto de disputa. De todo jeito, para tratar o tema de ex- moradores de rua como camponeses, seria preciso lidar com a questão do

ethos campesino. Foi feito um levantamento das categorias de acusação entre

os assentados e verifi cou-se a construção e disputa pelo ethos. Eles acusam- se mutuamente de “vagabundo”, de “não ser digno” (de estar assentado) e de ser “mentiroso”.

Deduz-se que nas acusações recíprocas está em jogo a manipulação da defi nição de camponês. Com base em distintos trabalhos sobre o tema, é possível estabelecer uma síntese do que consiste a campesinidade: a liga- ção simbólica com a terra, o trabalho familiar e a religiosidade. São três elementos interconectados: a terra é trabalhada pela e para a família e o sentido simbólico do arar, semear e colher os frutos constitui religiosidade, e é constituído por ela. À parte a relevante discussão sobre classe social e subordinação ao capital, a ordem moral também é um elemento marcante do camponês. Portanto, vê-se nas categorias mencionadas um peso dado pelas acusações morais: a preguiça, a mentira e a honra. No uso generali- zado do termo vagabundo, afi rma-se uma identidade de trabalhador por oposição ao outro que é não-trabalhador. Ao se apontar a alteridade da vagabundagem, está-se afi rmando uma identidade marcada pela moral do trabalho; é um “eu” camponês latente.

Se um elemento da campesinidade é a família, os homens sozinhos es- tariam fora desse registro. Nem todos os ex-moradores de rua são homens sozinhos e nem todos os homens sozinhos vieram “da rua”. Assentar ho- mens sozinhos foi uma fonte de tensão, que reverbera até o presente. No entanto, há homens sozinhos que, aos poucos, constroem famílias, outros que confi guram seu lote com as características de um típico sítio camponês e alguns que não conseguem trabalhar o lote todo. Mas, este último caso não é exclusividade dos homens sozinhos. Portanto, o ethos camponês pode ter elementos que fortalecem e outros que enfraquecem a complexidade vivida num assentamento de reforma agrária. No exemplo do morador que critica alguns assentados, que são indivíduos sem famílias, de serem “vaga- bundos”, é o caso de um “tipicamente camponês” defi nindo, por oposição, o seu ethos. Se depender da posição dele, quase todas as pessoas ligadas à associação Compartilha fi cariam de fora da defi nição de agricultor “honesto e trabalhador”. Evidencia-se um conhecimento, ou visão de mundo, cuja

A fresta

confi guração espacial decorrente é vertical, pois cria assimetrias entre os “mais” e os “menos” camponeses.

Na associação Agro União, ou nas famílias que trabalham juntas na produção de pimentões em estufa, encontram-se as marcas camponesas explícitas: a luta pela terra tem um sentido comunitário cristão e a unidade de produção é voltada para a família. No entanto, fi car preso a determinantes de campesinidade, sejam quais forem (econômicos ou culturais), mostra-se uma armadilha, porque eles são ruídos, ouvidos constantemente de todos

os lados no assentamento, que reproduzem brigas e divisões.7 Quem re-

solveu ir para a terra é camponês, ao vivenciar essa condição de classe. O

ethos camponês não deveria ser postulado como a essência,8 mas como uma

situação. “Dar certo” no assentamento vai depender do jogo entre isolamen- to e redes. O que não nega que no assentamento há a oportunidade para se (re)construir o ethos campesino e as relações não capitalistas. Então, a possibilidade de se adaptar à vida na terra estaria mais ligada a estar numa rede do que à aptidão para ser agricultor.

Vale observar que os assentamentos são porções do território do Esta- do, pois, ao desapropriar uma área privada, o Incra é imitido na posse do imóvel. Porém, nessas frações de território camponês, como denomina Oliveira (1997), encontram-se dinâmicas de poder distintas em relação ao controle estatal. Essas dinâmicas moldam a tessitura, os nós e as redes do território, conforme Raffestin (1993) afi rma. Portanto, a dinâmica das redes, presente nos confl itos e na formação de grupos, além de confi gurar a fração de território, permite que esta não se isole, e que os grupos estejam conectados a redes mais amplas: a cidade, o estado, a região, o país, o poder do Estado, o mundo, o MST, as organizações não-governamentais (ONGs) etc. Além da descrição dos grupos e associações feita anteriormente, que resultaram de redes, essas podem ser mais explicitadas. A família de Carlos articula-se diretamente com a coordenação do MST, participa da regional do Movimento e, desde a fase de acampamento, era indicada como sua representante. Tem contato direto com os técnicos do MST e recebe apoio, inclusive fi nanceiro, de uma pastoral católica da grande São Paulo. A as- sociação Agro União conseguiu o apoio da agência regional de comércio agropecuário, que lhe possibilitou uma parceria com uma organização não- governamental italiana para a compra de máquinas e implementos agrícolas e para cursos de formação na Itália. É uma rede de escala intercontinental. A associação Compartilha, que fi cou limitada internamente, busca membros

7 Vale mencionar que problematizo a questão do ethos camponês, ou “campesinidade”, como

é trabalhado por Woortmann (1990) e a forma como esse conceito é apropriado por outros autores, em Justo (2005, p.185-213).

8 Chayanov (1974, p.34-40), por exemplo, baseia seu trabalho na compreensão da “essência”

organizativa do trabalho familiar. Mas, faz a ressalva que sua teoria não tem a pretensão de aplicação universal nem de abarcar todas as formas de empreendimento camponês.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

de fora do assentamento, que possuem dinheiro para produzir e pagar os custos de formação de uma associação. Constata-se, então, as nodosidades, as centralidades e as marginalidades das redes.

EX-MORADORES DE RUA E REDES