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O CARÁTER COERCITIVO DOS ACAMPAMENTOS E MOVIMENTOS

Sujeito do

confl ito Data Local

Forma de enunciação do confl ito Forma de representação Confl ito considerado legítimo

MST 1989 Zona da Mata/PE Acampamento Movimento Não MST/STR 1992 Zona da Mata/PE Acampamento Sindicato Sim CPT 2000 Zona da Mata/PE Ocupação Assessoria Não MTBST 2002 Zona da Mata/PE Lista de

pretendentes Movimento Não MTBST 2003 Zona da Mata/PE Acampamento Movimento Sim MTD 2003 Baixada Fluminense/RJ Invasão Comissão Não MTD 2004 Baixada Fluminense/RJ Acampamento Movimento Sim

Os casos anteriormente trabalhados são peças fundamentais para com- preendermos a conformação e a institucionalização de uma forma específi ca de confl ito que ultrapassa os limites da zona canavieira de Pernambuco. Como demonstrei, em 1989 organizar-se na forma de um movimento, ocupar e montar um acampamento não foram elementos sufi cientes para

23 No primeiro semestre de 2005, participei de uma reunião da direção do MTD na qual os

líderes do acampamento exibiam uma série de ofícios que lhes foram enviados por órgão do governo do estado e da prefeitura.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

enunciar e legitimar de imediato esse tipo confl ito. Apesar de terem mobi- lizado símbolos, cuja efi cácia já havia sido comprovada em outras regiões do país, tais ações não foram reconhecidas porque mobilizaram elementos que não pertenciam à linguagem corrente dos confl itos agrários naquela região. Ao destoarem da prática consolidada pela Fetape nas décadas an- teriores, os líderes da ocupação do Cabo foram veementemente ignorados

pelos sujeitos do Estado.24

Esse quadro somente começou a se alterar em 1992, quando os líderes do MST se associaram a importantes lideranças sindicais e políticas da região acrescentando as ocupações e acampamentos ao cotidiano de de- terminados sindicatos. Assim que os STR passaram a dar apoio e a realizar ocupações conjuntamente, a prática foi logo reconhecida pelos governos estadual e federal. Porém, somente em 1995 é que o MST foi recebido sem a presença de um representante da Fetape pelo Incra. A partir de então, os acampamentos e movimentos foram se transformando em pilares indis- sociáveis dos confl itos agrários, modifi cando até mesmo as estruturas do sindicalismo local.

A imbricação de tais elementos foi se tornando tão forte entre os sujei- tos do Estado que, por volta do ano 2000, a própria Comissão Pastoral da Terra passou a se identifi car como um movimento sob pena de não ter suas

ocupações legitimadas pelo Incra.25

O caso de José Vicente e do MTBST demonstra a intensidade com que isso repercutiu sobre todos aqueles que tinham interesse em reivindicar terras ao instituto. A experiência desse movimento, por sua vez, também reforça a idéia de que essa lógica supera inclusive as regras formais que foram impostas pelo Estado no momento da proibição das ocupações em todo o país. Regras suplantadas por força de uma incontrolável dinâmica social, que foge completamente aos desejos de seus criadores que, ao cabo, mostraram não estarem aptos a reconhecer esse tipo de contenda por outras vias que não fossem as ocupações e acampamentos.

Apesar de brevemente enunciado durante o texto, outro ponto a ser considerado é a capacidade de adaptação dessa linguagem para outros con- textos que não o das disputas agrárias. Certamente, aqui o papel do MST é importante não somente como matriz de um modelo, mas por seguir rein- ventando inúmeros aspectos dessa linguagem em outras frentes, ao expandir sua presença e sentido para além do seu objeto originário – isto é, a terra.

24 É necessário levar em conta que se tratava de um governo liderado por Miguel Arraes e

que, portanto, se constituiu em uma íntima relação com o modo sindical de organizar e reconhecer confl itos.

25 Situação análoga, mas não trabalhada neste texto, foi vivida em 2003 pela Fetape, cuja

liderança que organizava os acampamentos acabou por deixar a federação e fundar seu próprio movimento, a Organização de Luta no Campo.

A “forma movimento” como modelo...

Tal expansão tem relação intrínseca, como vimos, com o Estado no que tange o tipo de atenção pública dado a esses confl itos nos últimos anos. Sugerimos com nosso argumento uma legitimação ambivalente do confl ito que alça os demandantes e benefi ciários ao patamar de interlocução, ao mesmo tempo em que se reconstitui o poder estatal de controle e emprego da força (seja burocrática ou física). O que, de início (pensando no caso dos primeiros acampamentos do sul do país), era um conjunto de signos articulados de forma pouco refl etida, na medida que incorporava elementos presentes nas diversas tradições de seus fundadores, tornou-se nos últimos anos uma espécie de modelo, cultivado nos mais distintos pontos de con- tato entre sujeitos do Estado e grupos organizados: uma espécie de forma

movimento, que sustenta os movimentos e reestrutura o Estado.

Por fi m, é preciso acrescentar que tais considerações analíticas permitem- nos suplantar as interpretações que restringem os confl itos protagonizados pelos movimentos sociais a razões e lógicas vinculadas aos objetos que estariam no centro da contenda. Se nos concentrarmos apenas na terra, por exemplo, chegaremos a explicações como as de Martins (2000), que justifi ca os confl itos agrários no Brasil como um resultado espontâneo de uma distribuição desigual de poder nessas áreas.

Ao apontarmos para a invenção de uma nova linguagem, evidenciamos um inusitado elemento, que passa a ocupar um espaço no mundo social outrora inexistente. Qualquer explicação sociológica que não comporte essa expansão de sentido possibilitada pelos encontros e embates contemporâ- neos entre movimentos e Estado, que se aferrolhe aos modelos de explana- ção “naturalistas”, tende inevitavelmente a ver os movimentos como algo que macula as qualidades selvagens de uma luta tradicional.

Evitando esse caminho, conseguimos ainda angariar elementos de or- dem compreensiva para nos opormos à proposição de Honnet (2004), para quem as lutas dos movimentos sociais são lutas por reconhecimento (de uma condição de desrespeito que está dada e que tende a ser por esse meio sanada). Assim, podemos expandir nosso argumento e concluir que lutas como as esboçadas no presente texto apenas existem socialmente quando reconhecidas, isto é, quando tornadas linguagem, quando pronunciadas e quando refutadas. Ao contrário do que propõe Honnet, e outros inspirados em Barrington Moore, as lutas não emanariam somente de uma percepção de justiça típica do humano que se instalaria na consciência dos camponeses. Nos confl itos por terra, assim como nos duelos descritos por Norbert Elias (1997), ao ascender, a burguesia exibe cicatrizes que não apenas não dizem o mesmo que aquelas que marcavam as faces aristocráticas, como reinventam o sentido dado às cicatrizes da nobreza. É nesse ponto que reside a sociologia das disputas políticas do campesinato que defendemos, ou seja, uma sociologia que transforme as fenomenologias individuais, mormente vistas em sua razão instrumental, em processos que levem em

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

conta as conversas (Tilly, 1998) entre as múltiplas partes que legitimam a existência do campesinato, e a capacidade desses sujeitos de criar estilos de ação transcendam sua própria existência material.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSCHI, R. A arte da associação. Rio de Janeiro: Vértice, 1987.

ELIAS, N. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

HONNET, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos confl itos sociais. São Paulo: Editora 34, 2004.

MANGUEIRA, S. M. O MTD no Rio de Janeiro: um estudo de caso do acampamento Carlos Lamarca. Niterói, 2005. Projeto de Pesquisa.

MARTINS, J. S. Reforma agrária: o impossível diálogo sobre a História possível.

Reforma agrária, o impossível diálogo. São Paulo: Edusp, 2000.

PALMEIRA, M. Casa e trabalho: notas as relações sociais na plantation tradicional.

Actes du XLII Congrès des Américanistes. Paris: Société des Américanistes/Musée

de l’Homme, 1978.

. Desmobilização e confl ito: relações entre trabalhadores e patrões na agroin- dústria pernambucana. Revista de Cultura e Política, v.1, n.1, p.41-55, ago., 1979. ROSA, M. C. O engenho dos movimentos: reforma agrária e signifi cação social na

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. Sobre os sentidos das novas formas de protesto social no Brasil. In: GRIM- SON, A. (Org.). La cultura en las crisis latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2004b.

SIGAUD, L. A forma acampamento: notas a partir da versão pernambucana. Novos

Estudos Cebrap, n.58, 2000.

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MOBILIZAÇÃO

CAMPONESA

NO

SUDESTE

PARAENSE

E

LUTA

PELA

REFORMA

AGRÁRIA

William Santos de Assis

INTRODUÇÃO

O

presente texto visa analisar o processo recente de mobili-

zação dos camponeses do sudeste paraense na luta pela reforma agrária nos anos 90. A expressão máxima dessa mobilização foram as ações coletivas reconhecidas como os “Grandes Acampamentos”, que reuniram mais de 40 mil pessoas e tinham por objetivo pressionar o Estado (nos seus diferentes níveis) a executar um conjunto de políticas públicas para o meio rural, especialmente a de reforma agrária. Quando tratamos de reforma agrária neste texto, interessa-nos menos defi nir de que reforma agrária se trata e mais do que ela “signifi ca” para os protagonistas envolvidos no debate e nas ações a ela relacionadas.

Os fenômenos coletivos, qualquer que seja sua intensidade, são uma mar- ca que atravessa a formação das sociedades no decorrer dos tempos. Como surgem, quais mudanças provocam, quem se envolve, como se envolvem, tem sido uma preocupação de pesquisadores de várias disciplinas. A ação coletiva já esteve associada, freqüentemente, a uma situação de crise do sistema em algum de seus aspectos (social, econômico, político). Por esse tipo de abordagem, convencionou-se tratá-la como uma patologia social (Melucci, 2001, p.33). No entanto, os acontecimentos dos anos 60, em nível mundial, impulsionaram uma discussão muito rica em torno das principais teorias destinadas a analisar os fenômenos coletivos. Como mostra Ledesma (1994), desde então, pesquisadores de diferentes disciplinas investiram em estudos sobre a capacidade de mobilização de diferentes grupos sociais e as manifestações geradas a partir de suas ações.

Mobilização camponesa no sudeste paraense

O resultado dessa rica discussão parece ter sido a abertura de um leque grande de possibilidades de análises das ações coletivas. Certamente, as abordagens que enfatizavam a presença de atores/personagens, no sentido atribuído por Melucci (2001), não mais se mostram apropriadas para res- ponder às questões relativas aos fenômenos coletivos atuais. Hoje, existem diversas aproximações entre diferentes abordagens. Para Melucci (2001) e Touraine (1999), pelo menos três componentes são necessários para se defi nir um fenômeno social como uma ação coletiva: uma identidade; um adversário claramente defi nido no campo social onde se desenvolve a ação; e um campo comum de disputa. Esses três componentes permitem diferen- ciar uma ação coletiva de outras ações sociais como conduta de agressão, violência política, dentre outras.

Comerford (1999), analisando a documentação da imprensa militante e dos veículos tradicionais de comunicação nas últimas décadas, identifi cou um conjunto de formas de ação coletiva como ocupação de propriedades rurais, públicas ou privadas; acampamentos em beira de estradas, praças e locais públicos; romarias e caminhadas; bloqueio de estradas; passeatas; ocupação de órgãos públicos; celebrações religiosas; assembléias, reuniões e festividades variadas. Essas formas de ações coletivas tornaram-se recorren- tes no universo de ação dos movimentos sociais rurais nas últimas décadas, constituindo o que Tilly (1981) chama de repertório de ações coletivas. Comerford verifi cou ainda que essas formas de ação podem acontecer se- parada ou simultaneamente. A noção de repertório de ações será útil para o entendimento das mobilizações no sudeste paraense.

Para a elaboração deste texto, a principal fonte das informações foi o dossiê organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Federação

dos Trabalhadores na Agricultura Regional Sudeste do Pará (FRS),1 intitulado

Acampamento dos trabalhadores rurais na superintendência do Incra de Marabá, e entrevistas com lideranças sindicais e assessores que participaram das ações coletivas. O dossiê reúne documentos veiculados na imprensa de circulação local, estadual e nacional; documentos produzidos pelos organizadores da ação; documentos emitidos pelos órgãos governamentais; documentos de apoio ao acampamento; pauta de negociação e documento de avaliação da ação. Além dessa fonte de informações, utilizei uma série de notas pessoais

acumuladas durante o período de duração da ação.2

1 Agradeço às duas instituições citadas por me fornecerem cópia completa desse dossiê. 2 Tive a oportunidade de participar de diversas reuniões e acompanhei todo o desenrolar

da ação. Minhas funções de docente-pesquisador do Núcleo de Estudo Integrados sobre Agricultura Familiar (Neaf) do Centro Agropecuário (CA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e o trabalho em parceria com o movimento sindical da região, me permitiram um acompanhamento privilegiado, inclusive, com acesso a informações de circulação restrita.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas