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O PREÂMBULO DA OCUPAÇÃO: ACIONANDO AS REDES SOCIAIS

O planejamento para realizar uma ocupação de terras começa meses antes de acontecer. Militantes, acampados e assentados se deslocam pelo interior do país, principalmente nas periferias das cidades e bairros rurais, fazendo

trabalho de base. Esse é o termo usado para descrever o convite que é feito

para que as pessoas participem das reuniões da terra4 e, posteriormente,

participem da ocupação. Essas reuniões têm por objetivo explicar como funciona uma ocupação, um acampamento e o que representa aquilo que o MST tem chamado de conquista da terra, mas, principalmente, é nessas reuniões, como menciona Comerford, que é criado “um espaço de sociabili- dade que contribui para a consolidação de redes de relações que atravessam a estrutura formal das organizações” (1999, p.47).

Essas reuniões fazem parte de um modelo hegemônico de mobilização que vem sendo adotado pelo MST em diversos estados do país (Macedo, 2005). Num dos espaços estudados, o assentamento de Sumaré II, os agora assentados participaram, há mais de vinte anos, das reuniões da terra, con- vidados por parentes, amigos, vizinhos da região e, principalmente, pelos membros do assentamento Sumaré I.

Dona Edith, moradora do assentamento Sumaré II, relata que ela e seu marido já haviam sido convidados para assistir à reunião que levou o grupo I (assentamento I) a realizar a primeira ocupação, mas só participaram de- pois, quando estava sendo planejada a ocupação do grupo II. Ela comentou:

A gente fi cou sabendo desse grupo I e ele [o marido] queria participar das reu- niões, lá falaram que era só para quem estivesse desempregado e ele não era, mas ali depois [ele estava desempregado] surgiu essa outra [reunião] e ali ele foi... aí a comunidade da igreja, os vizinhos de Hortolândia convidaram a gente. Eles falaram que era para ir acampar, que se as crianças passavam fome, era para ir [sic].

Dona Iolanda, cunhada de Edith, também é moradora do Sumaré II. Ela e seu marido migraram há mais de 25 anos do interior do Paraná para a

4 No estado de São Paulo essas reuniões também são chamadas de reuniões de preparação ou

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região de Campinas em busca de uma vida melhor.5 Ela animou o marido

para assistir às reuniões da terra. Para ela, os relatos da experiência de co- nhecidos e vizinhos de Hortolândia que haviam feito ocupação e haviam sido assentados, e o fato de o irmão e sua cunhada terem se animado para fazer ocupação foi fundamental para eles irem atrás da terra.

A gente ouvia as histórias, falavam que ia dar certo. A terra dos do I tinha saído rápido, a gente viu que eles tinham conseguido as terra, e... eu tava com monte de fi lho pequenininho para criar... aí saiu a reunião das terras e falei [para o marido]: Você vai participar da reunião das terras porque na cidade não dá para resistir não, com monte de fi lho pequenininho [sic].

Wanderley (2003), que realizou um estudo de caso em um assentamento em Pernambuco, menciona que os laços de amizade e parentesco consti- tuíram a base de circulação de informações sobre a ocupação que levou os

sem-terra daquele assentamento a se constituírem como tais. Nas palavras dessa autora: A união de todos [os assentados] é uma referência unânime dos entrevistados. Ela foi particularmente favorecida pelo fato de que, a maioria dos que viveram no acampamento eram vizinhos, se não paren- tes ou compadres, portanto, já se conheciam há muitos anos (Wanderley, 2003, p.213).

Outros autores (Sigaud, 2001; Brenneisen, 2003), que têm estudado acampamentos recentemente, chamaram a atenção para o fato de que as redes de conhecidos constituem um fator decisivo para quem resolve participar de um acampamento.

Em Sumaré, as redes de familiares, amigos, vizinhos e conhecidos foram fundamentais não só para a própria formação dos grupos de acampados, mas também para acionar uma espiral de ocupações de terra na região.

Mas, viajemos rapidamente por meio dessa espiral, da rede de conhe- cidos, para tentar ter uma visão diacrônica das ocupações nessa região do estado de São Paulo.

O assentamento Sumaré II está localizado na mesma área que o Sumaré I, no Horto Florestal de Sumaré. O trabalho de base que reuniu as pessoas para fazerem a primeira ocupação foi feito por membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), ligadas à Comissão Pastoral da Terra (CPT) da região de Sumaré. Esse grupo das CEBs tinha estabelecido contatos, por intermédio de alguns membros do PT – que estavam envolvidos em mobilizações na

região –, com membros do MST na região de Andradina (Rapchan, 1993).6

5 Fernandes (1999) menciona que, na década de 1980, na região houve um importante cres-

cimento industrial que atraiu grande número de trabalhadores para as cidades e municípios próximos à cidade de Campinas.

6 A gênese do MST no estado de São Paulo é registrada com a ocupação da fazenda Primavera

na região de Andradina – e o posterior assentamento naquela área de 264 famílias – realizado em 8 de julho de 1980 (FERNANDES, 1999).

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Segundo Fernandes, esse contato foi estabelecido também “quando algumas pessoas [de Sumaré] que haviam visitado alguns parentes e amigos [na ocu- pação que foi feita] na fazenda Primavera no fi nal do ano de 1982, trouxeram alguns convites para participarem de uma reunião em Andradina” (1999, p.118). Estabelecidos esses contatos, entre a CPT, o PT, o MST e as pessoas que já moravam na região de Sumaré, realizou-se a primeira ocupação em 1983, na Usina Tamoio, no município de Araraquara, em São Paulo. Depois de vários despejos, fi nalmente o grupo fez uma negociação com o governo do estado e foi assentado, em janeiro de 1984, em uma área da Fepasa (Ferrovias Paulistas Sociedade Anônima), de 237 hectares (Rapchan, 1993). Foi a partir do assentamento desse primeiro grupo, em Sumaré, que surgiu a primeira ocupação do que, mais tarde, se tornaria o Sumaré II. Assim, aqueles assentados, que agora formam parte do grupo II, foram convidados pelos já assentados do grupo I, por militantes do MST, por membros do PT, e por pessoas da CPT para fazer uma ocupação. Fernandes (1999) comenta que o grupo I cedeu, para essa ocasião, um caminhão de madeira para a construção dos barracos. O grupo I de Sumaré não só participou com a lo- gística e o material para a ocupação do grupo II, mas também fez o convite e a ocupação junto com eles.

Com as experiências do grupo I, os trabalhadores organizados no Movimento dos Sem-Terra de Sumaré resolveram negociar com o recém-criado IAF – Instituto de Assuntos Fundiários – o assentamento de outro grupo que estava se formando. A formação do grupo II aconteceu durante o processo de fundação do MST. (Fer- nandes, 1999, p.122)

O Sumaré II demorou muito mais tempo do que o grupo I para ser assentado. A primeira ocupação foi realizada em 1985, e só em 1988 os acampados foram defi nitivamente assentados no terreno que atualmente ocupam, numa área também da Fepasa, que estava sendo alugada para a Usina Santa Bárbara.

Os assentados do Sumaré II haviam participado desde o primeiro ano de acampamento, “quando entraram nas terras”, do trabalho de base de outras famílias que, mais tarde, conformariam o Sumaré III, grupo assentado em Porto Feliz. Segundo as informações colhidas em campo, tal como aconteceu com os grupos anteriores, os integrantes do grupo III que aceitaram ir às

reuniões da terra, já conheciam alguns assentados dos grupos I e II. Afi nal, também muitos deles eram vizinhos em Hortolândia, Sumaré ou Campinas e, inclusive, parentes.

Hoje em dia, são alguns assentados, e principalmente seus fi lhos, que realizam trabalho de base e acompanham outras mobilizações.

João, jovem do assentamento II, relatava-me que, graças a ele, alguns familiares haviam se animado a participar das reuniões e tinham ido “pro acampamento”. Agora, alguns deles já eram assentados, outros ainda

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estavam acampando. Ele parecia contar com orgulho as inúmeras vezes que havia feito trabalho de base; na última vez, havia convidado alguns conhecidos de um primo, que morava na cidade, para a reunião de uma ocupação, levada a cabo perto de Atibaia, Bragança Paulista, na qual ele também foi participante ativo.

Dona Cida, considerada a líder do assentamento II, relatava que havia passado vários dias visitando alguns conhecidos na cidade de Sumaré, aproveitando os contatos que tinha no sindicato de trabalhadores rurais e com lideranças locais, para mobilizar pessoas e conseguir organizar as várias reuniões de preparação (que alguns meses depois dariam vida ao acampamento Terra Sem Males, o primeiro organizado pela Secretaria Regional de Campinas do MST).

Nesse tipo de ação, como o trabalho de base – destinado a organizar uma ocupação – e até na própria ocupação, não participam apenas os que foram convidados, mas também os já assentados, como foi o caso de João e Cida. Quando eles e outros assentados do Sumaré II diziam, “Esse acampamento (o Terra Sem Males) saiu daqui”, pareciam fazer referência a várias coisas: 1) que eles, os já assentados, contribuíram no trabalho de base na cidade de Sumaré, “fazendo o convite para ir ocupar umas terras”; 2) que esse trabalho de base se sustenta em redes de parentesco, amizade e vizinhança; e 3) que também eles mesmos foram participantes ativos da ocupação.

Eliane Brenneinsen (2003) mostra-nos, em trabalho sobre uma ocupa- ção ocorrida há vários anos no oeste de Paraná, como, dentre as dezessete famílias que conformavam aquele acampamento, não havia somente pessoas “novas” na prática da ocupação, mas uma importante presença de membros de outros acampamentos (posseiros, agricultores), que tiveram outras experiências de ocupação, lideranças do MST e fi lhos de assentados. No sul do estado da Bahia não é diferente. Em abril de 2006, tive a oportu- nidade de participar de uma grande ocupação de terra organizada pelo MST no município de Teixeira de Freitas. Um contingente de aproximadamente 1.500 pessoas entrou em terras da fazenda Céu Azul, pertencente ao grupo da empresa Suzano Papel e Celulose. Mais da metade dos participantes era de militantes, assentados e acampados (de outros acampamentos) da região. Segundo versões dos próprios participantes, um mês antes, alguns deles, cumprindo uma ordem das “cabeças do movimento”, haviam saído dos seus assentamentos ou acampamentos de origem para realizar traba- lho de base; a meta, segundo versões de militantes, havia sido juntar 3 mil

pessoas para a ocupação.7

O acampamento, montado logo após a ocupação, foi mantido nos pri- meiros dias principalmente por esses assentados e “velhos” acampados da

7 Como sabemos, para o marketing das ocupações é importante ter a participação de um

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região. Alguns deles participaram da comissão formada para fazer trabalho de base em Santo Antônio, o povoado mais próximo, onde já haviam sido estabelecidos contatos com as lideranças locais e havia sido marcada uma reunião com moradores do lugar. Afi nal, muitos deles tinham parentes ou conhecidos ali. O objetivo era, segundo os acampados, “renovar” o acampamento. Isso signifi cava levar pessoas “novas” para “substituir” os “velhos” acampados e assentados, para que eles pudessem voltar para seus acampamentos e assentamentos de origem.

Macedo (2005) menciona que a estratégia de mobilização das famílias para as ocupações depende do tempo que se tem para realizar a ocupa- ção. Por exemplo, diante da urgência em realizar uma ocupação – como no caso acima – ou da ausência de recursos para realizar um trabalho de base prolongado que consiga juntar o número desejado de famílias, a es- tratégia adotada é aumentar o número de pessoas que costumam apoiar a ocupação.

Nesse caso, ela é realizada com um grupo formado essencialmente de militantes, assentados, simpatizantes e acampados de outros locais. ... Quando as condições sociais daqueles que residem nas imediações do acampamento favorecem a entrada de novas famílias, a estratégia obtém o resultado esperado. Aos poucos, as famí- lias que entram substituem o grupo que realizou a ocupação, já que aqueles que a apoiaram retornam para seus locais de origem. (Macedo, 2005, p.487-8)

Também na ocupação da fazenda Capuava (que deu origem ao Terra Sem Males), em Bragança Paulista, participaram não só aqueles que foram convidados no trabalho de base, mas também assentados e pessoas que per- tenciam a outros acampamentos. Depois, a história se repetiu: os próprios acampados do Terra Sem Males acompanharam várias outras ocupações. Uma delas ocorreu no município de Cajamar (a 30 quilômetros da cidade de São Paulo). Segundo as versões dos próprios acampados, eles foram ocupar aquela terra com os participantes do acampamento Irmã Alberta, com a fi nalidade de “ajudá-los a pegar essa terra”. Esse tipo de ação constitui parte das obrigações do acampado. Está explicitado no Regimento Interno do acampamento: a obrigatoriedade da participação em ocupações e no trabalho de base “é um dever de todos os acampados”.

Numa assembléia no Terra Sem Males, esse item foi lembrado a todos os acampados: “Voltem para suas cidades e façam trabalho de base”. Como vimos, isso signifi ca convidar outras pessoas para ir ocupar uma terra. A ordem foi clara: “Não façam o convite para se juntar ao acampamento Irmã Alberta ou ao Terra Sem Males”, mas para se unir a um terceiro acampamen- to, o Dom Pedro Casaldáliga, que estava localizado a 500 metros daqueles dois acampamentos.

As ocupações não aconteceriam se “velhos” acampados e assentados não participassem acionando as redes de conhecidos, mas, sobretudo, se essa

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participação não fosse vista como uma troca que tem que ser feita com o movimento, como um cumprimento do que eles chamam de compromissos

e obrigações.8