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As madeireiras eram vistas positivamente pela maioria dos posseiros das áreas das três fazendas, principalmente quando se tratava de entrar em uma área nova. Geralmente são as madeireiras que abrem as estradas permitindo

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o acesso às áreas distantes. Os caminhões das madeireiras dão carona aos posseiros com seus produtos e também carregam pessoas doentes. Logo que os posseiros se instalam em uma nova terra, via de regra, é a venda da madeira que vai garantir o sustento da família até a primeira colheita.

Novo invasor:

Eles levantam essa coisa, essa calúnia junto do posseiro: que ele tá destruindo as matas porque vende a madeira. Mas é o seguinte: o Incra não faz a estrada, a prefeitura não faz um palmo de estrada e o madeireiro não tira a madeira voando não, ele abre estrada. A mata virgem se o posseiro entra hoje, ele não tem dinheiro pra comprar uma caixinha de óleo, ele não tem dinheiro pra comprar uma comida, então o madeireiro serve. E o madeireiro só leva a madeira que serve pra serrar, né? Aquela outra madeira ele deixa. E o fazendeiro não, ele leva é tudo, ali vira um deserto, ele leva tudo pra fazer pastagem. [sic]

Ao falar da “calúnia” que é levantada contra os posseiros, o posseiro do depoimento acima estava negando que o desmatamento que vem ocor- rendo na região seja de responsabilidade dos posseiros, em acordo com os madeireiros. O desmatamento seria causado pelos fazendeiros (“ele leva tudo pra fazer pastagem”). Esse discurso que vê nos posseiros os culpados pelo desmatamento é usado constantemente por fazendeiros, madeireiras e imprensa. É um discurso que tenta passar a imagem dos posseiros para o restante da sociedade como de “destruidores do meio ambiente”, “destrui-

dores da fl oresta” ou “povo atrasado e rudimentar”.10

A principal vítima das invasões nas quais estão envolvidas madeireiras é, de acordo com os depoimentos dos fazendeiros, o “médio fazendeiro”. Eles teriam propriedades entre 3 e 10 mil hectares e possuiriam entre 10 e 15 mil cabeças de gado. Os motivos dessas invasões seriam o reduzido número de empregados, as reservas de fl oresta e a maior facilidade para desapropriações junto ao Incra. Além disso, após uma invasão, seria o mé- dio fazendeiro, em oposição ao “grande fazendeiro”, o maior prejudicado em relação à morosidade das decisões judiciais e ao cumprimento dessas decisões pela polícia.

A procuradoria do Incra no Pará apontava como principal causa das invasões de terra por parte de grupos de trabalhadores rurais de tamanho

médio11 a localização favorável das fazendas nas proximidades de estradas

e a existência de reserva fl orestal.

10 Sobre a imagem dos agricultores familiares como causadores de problemas ambientais,

consultar Costa (2006).

11 Não se trata, portanto, das invasões organizadas pelo MST, que se caracterizam pela entrada

de um número bem maior de trabalhadores rurais, variando entre quinhentas e 2 mil famí- lias. As invasões do MST são, muitas vezes, anunciadas com antecedência à imprensa e ao Incra, como forma de pressionar o órgão governamental a tomar providências no sentido de viabilizar a desapropriação da área e evitar o uso de violência por parte dos proprietários, que evitam fazê-lo sob os holofotes da imprensa.

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Fazendeiro:

Nós conseguimos uma reintegração de posse numa outra fazenda que nós tí- nhamos. Nós brigamos, brigamos, brigamos. Aí os invasores saíram. Conseguimos mais outra. Mas vai fi cando uma coisa tão desgastante, porque é gasto excessivo, você tem que colocar pistoleiro pra tomar conta da fazenda e pagar advogado. É uma briga contra posseiro. Aí a gente já não tem mais ânimo, que a polícia vai e limpa, sai e eles voltam, a polícia volta, e fi ca esse vai e vem. Você perde o ânimo de investir, de jogar mais dinheiro ali dentro. Pra vender ela já fi ca uma terra taxada, desvaloriza completamente a terra. [sic]

Os médios fazendeiros, ao contrário de grandes grupos econômicos do sul do país que possuem imensas extensões de terra na Amazônia, geralmente vivem em suas fazendas e, apesar de terem gerentes, são os responsáveis pela sua administração. Na maioria dos casos, não possuem a terra apenas como uma fonte de recursos especulativos, investem na terra porque vivem nela com sua família. Os recursos gerados, na maior parte das vezes, são reinvestidos na fazenda e se concentram no estado do Pará. No depoimento acima, o fazendeiro vai procurar enfatizar o aspecto econômico das invasões (“você perde o ânimo de investir”) como forma de reforçar seu argumento sobre a “necessidade” de o Estado garantir segurança às médias fazendas.

Segundo dados da superintendência do Incra no Pará, na região sul do estado predominavam fazendas de grande porte, acima de 10 mil hectares, cuja administração, na maioria dos casos, fi cava a cargo de gerentes. As invasões organizadas por madeireiras ou grupos interessados em roubar gado são direcionadas, geralmente, para onde existe a junção de dois fatores: a resistência é menor e a terra, o gado ou a madeira interessam ao grupo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste artigo foi analisar as relações sociais dos agentes envolvidos em uma situação de confl ito agrário em Eldorado dos Carajás, durante um período de dez anos (1986-1996). Buscou-se avaliar nesta rede de relações sociais, na qual as forças no campo político iam se alterando conforme o surgimento de novos personagens ou o reposicionamento dos que já esta- vam em cena, as mudanças que foram representadas na heterogeneidade do discurso sobre a violência no campo. Dessa forma, o discurso foi tomado como um lugar de elaboração de experiências, que poderiam contribuir para uma reorientação das práticas sociais. Para isso, foram introduzidas e apresentadas categorias representativas da atuação desses agentes durante as diferentes etapas que marcaram o período de “luta pela terra”.

Os denominados velhos posseiros, por exemplo, foram os primeiros a chegar às áreas das três fazendas pesquisadas e permaneceram em seus

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lotes de terra durante o confl ito. Eles construíram sua imagem como a de trabalhadores que precisavam da terra para trabalhar, pessoas pacífi cas que buscavam soluções para seus problemas junto à Justiça, sentindo-se vitoriosos por terem “conquistado” a terra após a disputa com o fazendeiro. O discurso dos velhos posseiros era predominantemente um discurso de caráter legalista e contra o uso da violência para a solução dos confl itos.

Os novos invasores, que destruíram e ocuparam a sede de uma das fa- zendas a partir de 1994, eram chamados dessa forma pelos velhos posseiros porque chegaram depois dos posseiros mais antigos e pelo fato de que eles também “invadiram”, ou seja, “ocuparam” as terras. A imagem que os novos invasores construíam deles mesmos era a de homens corajosos, descrentes em relação à Justiça e às negociações com os fazendeiros, e adeptos de soluções pragmáticas para os confl itos, que passavam diretamente pelo uso da violência.

Os fazendeiros, por sua vez, se colocavam como trabalhadores que tiveram que se empenhar muitos anos para construir o seu patrimônio. A imagem que os posseiros tinham dos fazendeiros era a de homens pode- rosos, infl uentes no meio político, que agiam ilegalmente porque podiam comprar a polícia e as autoridades. Esse jogo de imagens permitiu perceber a consolidação das diferenças entre os dois principais agentes do confl ito: os fazendeiros e os posseiros. A apropriação que eles faziam de categorias que eram representadas pelas mesmas palavras, como invasor ou cabeça de grilo, davam a elas signifi cados muitas vezes antagônicos.

Para os posseiros, os cabeças de grilo eram pessoas que organizavam “invasões” em terras particulares para retirar a madeira ou roubar gado. O termo estava diretamente relacionado aos comerciantes de terra. Já para o fazendeiro e a polícia, os cabeças de grilo eram sindicalistas ou lideranças entre os posseiros, que estariam ligadas a madeireiros e ladrões de gado, e que teriam uma grande infl uência entre os posseiros.

O “confl ito” apareceu como um dos elementos visíveis de uma luta tra- vada na esfera política entre os diversos agentes, e que signifi cou, em alguns momentos, o reconhecimento dos direitos dos posseiros à sua cidadania e, em outros, a reafi rmação do esquema de dominação política e econômica de fazendeiros e madeireiras.

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