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EM CAMPO UNIÃO, DESUNIÃO E REUNIÃO: A TECELAGEM DE REDES

O enfoque empírico esteve no movimento de união, desunião e reunião entre os assentados, que vai do momento em que a maioria deles vota pela moradia em lotes individuais, em vez de agrovila (em 1999-2000), até a formação de grupos e associações a partir de 2002. A paisagem é mol- dada pelos confl itos: os lotes individuais, a formação de grupos etc. Pela interlocução com os assentados, observou-se a dinâmica de alianças e de ataques no local.

A partir de 2001, houve no assentamento uma desunião entre os mora- dores, em que muitos deles passaram a se isolar devido aos confl itos, e não houve reuniões nem assembléias. No entanto, de 2002 para 2003, surgiram duas associações e grupos de trabalhos com estufas.

Entre as associações, houve a primeira tentativa dos “Exculhidos”,5 que

durou quatro meses, na qual se encontram alguns ex-moradores de rua.

5 O nome “Exculhidos” é uma composição entre as palavras “excluídos” e “escolhidos” rea-

lizada pelo pesquisador para expressar a ambivalência presente na fala do pesquisado que denominou a associação.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Depois, com algumas variações, reúnem-se para a formação da “Compar- tilha”, em duas tentativas, até a formalização em 2003. Porém, em 2004, essa associação sofreu um enfraquecimento. Essa associação formou-se em contraposição aos antigos coordenadores da fase de acampamento, que foram responsabilizados pelo não-reembolso do dinheiro do fomento, de

1998. Walter,6 ex-morador de rua e um dos principais articuladores das as-

sociações Exculhidos e Compartilha, tem como prática a luta em conjunto e as alianças, mas faz muitos ataques aos seus inimigos políticos e cria cisões. Relacionada à trajetória dos Exculhidos, além de oposição aos ex- coordenadores do assentamento pelo não-reembolso do fomento, há um segundo caso de confl ito. Um membro desse grupo fez denúncias de su- postas irregularidades no assentamento e pretendia vender as benfeitorias do seu lote. Os moradores conseguiram gerir coletivamente o confl ito, enquanto aguardavam o Incra. Em setembro de 2003, aquele membro dos Exculhidos enviou uma carta a um jornal local do município, que publicou uma matéria com o conteúdo da carta em que são feitas denúncias como: obtenção irregular de fi nanciamento, arrendamento de lotes para plantio e pastagem, não-produção nos lotes, venda irregular de madeira e venda de lote. Uma parcela dos assentados reuniu-se e posicionou-se contrária à “venda” do lote e redigiu uma carta-resposta ao jornal. Cabe ao Incra fi scalizar e controlar a tentativa de comercialização de benfeitorias, porém o órgão, notifi cado pelos moradores, simplesmente se omitiu.

Cabe esclarecer que foi constatado que há, ao menos, quatro morado- res que têm o papel de agregar pessoas: Walter, Ema, Carlos e Frederico. Walter aglutina amigos, vizinhos e ex-moradores de rua em torno da idéia de união da classe, une-se também a pessoas do entorno, que costumeira- mente arrendam lotes, e justifi ca-se dizendo que a luta pela reforma agrária é algo maior do que o assentamento. Filho de camponeses da Zona da Mata nordestina, Walter construiu sua vida em São Paulo. Foi metalúrgico por 22 anos, período em que participou ativamente da luta sindical. Portanto, sua visão política é de união da classe trabalhadora da cidade e do campo. Ema gosta da comunhão cristã, acredita que o povo cristão deveria traba- lhar unido, mas a “realidade” do assentamento mostrou-lhe que só pode se unir à família extensa. Ela e Walter chegaram a trabalhar juntos, mas romperam. Carlos e sua grande família (fi lhos casados, genros, noras, netos e compadres) vivem a produção coletiva e moram numa miniagrovila, com- partilhando ideais com as propostas do MST. Seus fi lhos representam, entre outros, o MST no assentamento e, potencialmente, poderão assumir maior papel de gestão pública do assentamento (se apostarem na autonomia do assentamento em relação ao controle ambíguo do Incra). Frederico tem o dom da política: toma iniciativa de convocar e coordenar reuniões, preside

A fresta

uma associação de produção agropecuária com 12 famílias – baseado em experiência anterior em Sindicato de Trabalhador Rural –, e respeita o direito de todos, mas marca oposição a quem considera inimigo do assentamento. Enquanto os três últimos, além de serem vizinhos, trabalham na defesa da formação de grupos com interfaces, aquele primeiro exerce sua capacidade de tecer e desmanchar redes por meio de um discurso contrário aos anti- gos coordenadores do assentamento. Além dos quatro, outros moradores disputam espaços de liderança, porém com menor reconhecimento.

Frederico, Carlos e Ema encabeçaram uma associação e grupos de produção em estufas. A associação Agro União, que iniciou em 2003 e se ofi cializou em 2004, começou com 12 famílias e, em 2004, entraram mais duas. Os grupos das estufas são compostos por três semicoletivos, que se formaram a partir de 2002. Os que compõe essa segunda associação e os grupos das estufas são os moradores que estão em melhores condições materiais no assentamento e unem-se compondo um grupo majoritário. Os membros da Agro União e dos grupos das estufas destacam-se como pessoas que convocam assembléias para tentativas de gestão do assentamento. Em 2004, acirrou-se a separação entre essa maioria (Agro União e grupos das estufas) e os membros da associação Compartilha. Houve naquele ano um terceiro caso de confl ito. Trata-se das complicações decorrentes da venda e abandono de um lote de um morador associado à Compartilha. Uma comissão de moradores foi formada como uma instância pública de gestão dos confl itos e/ou irregularidades do assentamento. Apesar de a comissão ser aberta a todos os grupos do assentamento, havia um grupo majoritário, que estava contrário e cansado das acusações e brigas com as pessoas da associação Compartilha. É uma rede se contrapondo a outra, ou, na linguagem de Raffestin, formando densidades mais fortes ou mais fracas de relações.

Até aquele momento, em 2004, as redes no assentamento apresentavam uma dinâmica que permitia interfaces. Ou seja, havia uma intensa movimen- tação no assentamento, as redes juntavam e separavam as pessoas com rapidez. Famílias que, num momento, preferiram isolar-se, depois se uniram; outras que estavam unidas, separaram-se. Ocorreu tanto a necessidade de fortalecer o caráter camponês de voltar-se para a família, quanto a de buscar conexões com outras famílias. Porém, com o aumento dos confl itos internos no assentamento, a tendência foi de uma polarização entre a associação Compartilha, de um lado, e a associação Agro União e os grupos das estufas, de outro. Constata-se, assim, um paralelo entre o conhecimento-regulação, criando uma confi guração espacial vertical em decorrência da assimetria e divergências entre os grupos, e o conhecimento-emancipação, que permite pessoas se associarem e manterem relações horizontais.

Nesse cenário, uma parte dos ex-moradores de rua estava na Comparti- lha. Não havia ex-moradores de rua em nenhum grupo. Com a polarização,

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eles não entraram em nenhum dos dois outros grupos (estufas e associação Agro União). Restava-lhe abrir redes com pessoas e/ou entidades externas ao assentamento.