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O ANONIMATO E A AUTO-IMAGEM DOS “NOVOS INVASORES”

Os “novos invasores”, assim denominados pelos velhos posseiros, não participavam de negociações com o Incra ou com fazendeiros. A intenção inicial desses posseiros foi vingar a morte de um sindicalista assassinado por pistoleiros, em 1993, e matar o fazendeiro tido como mandante do crime. Além disso, eles queriam “acabar” com os pistoleiros que estavam “perseguindo” os velhos posseiros e os demais sindicalistas de Eldorado.

As faces ocultas de um confl ito

Novo invasor:

Se nós tivéssemos, o primeiro contato era matar. Nós [novos invasores] não tivemos

contato com ninguém não. Nós nunca tivemos conversa com nenhum fazendeiro. O que nós fazíamos era que eu chegava aqui (em Eldorado) e fi cava por aí no escuro ou escondido. O cara mostrava: “É aquele lá”. Daqui, nós já íamos esperar o fazendeiro lá na ponte, na beira do capim ou na estrada, onde fosse e pronto. Não tinha mais

conversa. Só isso. [sic]

Os novos invasores, que já haviam assumido função semelhante em outros confl itos, chegavam à cidade sozinhos, discretamente, e fi cavam por pouco tempo. Eles somente ocuparam terras na área de uma das fazendas pesquisadas quando ela foi completamente destruída e o fazendeiro se afastou defi nitivamente. Eles eram pessoas “sem identidade”, sem uma imagem para a sociedade, pois não eram conhecidos. Pelo fato de também trabalharem na terra com a ajuda da família, eram posseiros. “Que tudo que a gente fazia ninguém sabia, pros outros, a gente não tinha nome, não tinha endereço, não tinha nada.”

A imprensa raramente tem acesso aos novos invasores, porque eles atuam como uma espécie de “polícia e justiça dos demais posseiros”. Eles não dão entrevistas, não assumem cargos no STR e levam com suas famílias uma vida reservada, isto é, raramente participam de reuniões sociais (como festas e conversas em bares).

Novo invasor:

Porque muitas vezes é o seguinte: quando a gente entra numa terra, tem aqueles medrosinhos; é, aqueles que ganham nas costas dos outros. Ele fi ca na rua bebendo cachaça, negociando no meio de pote. Agora quem enfrenta no mato, enfrenta dureza, você não vê ele não. Ele não bebe cachaça, você não vê ele em festa, não vê. Agora o bobão só na rua, aí o pessoal: PÁ! Mata aquele. Ele (o fazendeiro) tenta negociar pra isso. Antes do confronto muito grande eu, principalmente, acredito que esse negócio de negociação é um ponto de organização, de amassação [sic], pra pegar a gente mais fácil. Pra conhecer quem é o mais duro, o mais experiente... [sic]

No depoimento acima, o novo invasor reproduz a imagem que ele tem dele mesmo: alguém que enfrenta dureza no mato, que não se embriaga e não é conhecido. Ao mesmo tempo, ele vai criticar a postura de alguns posseiros que mantinham relações de tipo informal com o fazendeiro ou seus representantes (“negociando no meio do pote”). Ele recrimina as atitudes dos posseiros que não encaram o confl ito como uma situação em que as posições são antagônicas e, por isso, na qual a negociação não seria possível. Os novos invasores cumpriram a função de “justiceiros” durante a destruição e ocupação de uma das fazendas em 1994.

Almeida explicita, recorrendo a Barrington Moore Jr., que a existência de atos de justiça por parte dos próprios camponeses está relacionada à ausência

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

de solução para seus problemas por parte do poder público instituído. Os signifi cados dessas diferentes ações compreendem uma “reafi rmação da dignidade e do valor humano após a injúria e o dano que lhes ameaçam a identidade e a sua própria reprodução” (Moore, p.38 apud Almeida, 1992a, p.4). Prossegue o primeiro autor: “Inexistindo autoridade judiciária para fornecer soluções, tais atos de justiça funcionam no sentido de igualar as coisas” e afi rmar seus direitos (Almeida, 1992a, p.4).

Novo invasor:

Quando nós viemos pra cá, tinha esse confl ito aqui e nós já tínhamos vencido a batalha lá no Varzão e a gente tinha sofrido muito. Eu não achei ruim aquele so- frimento, nem risco de vida pra mim, coisa e coisa, porque eu fui criado sofrendo mesmo. Até hoje eu não conheci vida boa, aquilo pra mim vida é uma só, eu não tenho melhora, eu não conheço o que é bom, nem o que é ruim, pra mim não tem desvio nenhum. Aí esse povo (fazendeiro e seus pistoleiros) encomendava mesmo, matava gente direto, aí ele [sindicalista assassinado] morreu, aí viemos enfrentar. [sic]

No depoimento acima, o novo invasor explicava a causa de sua opção em participar de confl itos agrários em diversas áreas. A argumentação dele é direcionada para uma “solidariedade” em relação aos posseiros, que ele considerava pessoas que respeitavam e ajudavam aos demais posseiros. O confl ito com o fazendeiro é visto como uma “batalha”, na qual ele se coloca como uma espécie de soldado que cumpre seu dever. Um dever encarado como uma sina (“aquilo pra mim vida é uma só, não tem me- lhora”) e sob esse aspecto, quase “natural”. O fato de cumprir uma função social necessária ao grupo, como uma espécie de justiceiro, vai provocar, em relação a uma parte do grupo, o “reconhecimento” e o respeito que ele almejava.

Tornar-se um justiceiro é uma forma de ocupar um lugar dentro do grupo social. Embora sua existência, como indivíduo portador de um nome próprio, seja desconhecida para a maioria das pessoas, suas ações e conseqüências não o são. Ele se torna dessa maneira “útil” ao grupo com o qual convive.

Ao examinar os “atos de justiça sumária” praticados por camponeses e índios, Almeida conclui que não se pode afi rmar que sejam próprios de uma fase pré-sindical ou mesmo pré-política. “Mesmo com a criação difusa dos STRs, essas noções de justiça e essas formas de organização mantém sua efi cácia. Para além da sindicalização, os camponeses continuam vi- vendo situações em que as relações confl ituosas são mediadas pela força” (Almeida, 1989b, p.12).

Na citação abaixo, de um sindicalista do STR de Eldorado, é descrita uma tocaia armada contra um fazendeiro. A estratégia é a mesma utilizada em confl itos agrários nos quais uma solução legal não se mostra justa ou viável do ponto de vista dos posseiros.

As faces ocultas de um confl ito

Quando nós [velhos posseiros] cuidamos que não, ele [fazendeiro] já estava adiantando a cerca dele, pra tomar isso aqui nosso. E aí a briga foi aumentando e nós fomos esquentando, e nós íamos pra Justiça e nós perdíamos, nós voltávamos pra área, nós voltávamos pra Justiça, nós tornávamos a perder, que tal? E aí nós começamos a atirar em gado pra ver se chegava a uma conclusão. Até que um dia ele foi lá ver, armado. Aí quando chegou lá, a turma [novos invasores] estava esperando. Quando eles [fazendeiro e seus três empregados] viram que estavam cercados, diz que este homem fora do carro com duas 65 na mão, atirando à toa pensando que eles corriam, não sabe? E eles atirando nele só no nível. Ele [fazendeiro] atirando sem falhar momento: Tá Tá Tá! Uma na mão e outra na outra. E a turma atirando tudo entocado, né? Até que ele foi fracassando e caiu. Os pistoleiros sumiram tudo, aquilo lá foi de um jeito que eles destruíram tudo. [sic]

A expressão “andar com a cerca” ou “adiantar a cerca” está relacionada a uma prática de apropriação indébita de terras públicas e privadas. No caso mencionado acima, tratou-se de uma área particular, mas o fato mais comum, comprovado pelo Incra e denunciado por entidades como a CPT, refere-se à apropriação de terras devolutas limítrofes a fazendas particula- res, que são regularizadas em cartórios por meio de títulos fraudulentos.

As cercas das fazendas são afastadas para anexar terras da União à pro- priedade original. Para que o título falso adquira a aparência de envelhecido, os falsifi cadores colocam o papel dentro de uma gaveta com um grilo. O contato com o inseto, que come as bordas do papel e altera sua coloração para o amarelo, causa o efeito desejado. Foi em virtude dessa prática que surgiu o termo “grileiro”.

José de Souza Martins defi ne grileiro como uma fi gura que se tornou muito comum na história rural brasileira nos últimos cem anos, como o homem que se apossa de uma terra que não é sua, sabendo que não tem direito a ela e “através de meios escusos, suborno e falsifi cação de docu- mentos, obtém fi nalmente os papéis ofi ciais que o habilitam a vender a terra a fazendeiros e empresários” (Martins, 1983, p.103).

Assim como os novos invasores, o fazendeiro também não acreditava em uma solução legal e ágil para os confl itos fundiários, embora por razões diferentes. Para ele, os juízes eram “petistas” (simpatizantes ou fi liados ao Partido dos Trabalhadores), o que signifi cava que sempre dariam razão para os posseiros.

Fazendeira:

Olha, de início, a primeira reação sempre é a revolta, entendeu? Aí de repente você toma consciência de que você não está batendo de frente só com o posseiro, você está batendo de frente com uma Justiça que não te ajuda, que é morosa, não te ampara em porcaria nenhuma. Aí já vem a terceira fase que é a da indignação. Então são três fases que culminam no abandono, entendeste? [sic]

Sindicalista do STR de Eldorado: “Os posseiros começaram a se revoltar, a Justiça não resolvia, as autoridades hoje não garantem aquilo que a lei diz que é pra fazer, né?”.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Almeida já havia observado que a crítica à “morosidade” da Justiça é usada por fazendeiros, empresas do sul, madeireiros e mineradoras, como forma de justifi car a ação da força (pistoleiros e métodos de coerção) contra os camponeses. “A celeridade da resolução que objetivam pressupõe, no mais das vezes, a ‘efi ciência’ pela utilização da força, mesmo que violando dispositivos legais” (Almeida, 1992b).

Nos dois depoimentos acima aparece a incredulidade de posseiros e fa- zendeiros em relação à aplicabilidade das leis; elas não estariam atendendo aos seus interesses. Esse argumento geralmente é seguido por um discurso que justifi ca atitudes de “caráter autônomo”, ou seja, fora do conhecimento e da interferência de órgãos públicos. Entre essas atitudes, o uso da violência é a mais comum. A violência é usada, por exemplo, por meio de pistoleiros, para retirar posseiros de uma determinada fazenda. Também é usada pelos posseiros para “afugentar” fazendeiros e pistoleiros de uma área de confl ito.

Não se entrará aqui em uma discussão mais ampla sobre as causas da “morosidade da Justiça”. Parte-se do princípio de que ela realmente existe e que os diversos agentes procuram determinar suas ações no confl ito, ten- do por base esse fato. Em se tratando dos posseiros, apesar das iniciativas de “justiça autônoma”, geralmente pelo uso da violência, eles levam uma grande desvantagem do ponto de vista econômico e técnico em relação aos fazendeiros. Estes últimos contam com a possibilidade de comprar armas e contratar pistoleiros sem que isso interfi ra sobremaneira no orçamento doméstico. Além disso, os fazendeiros podem contar também com o apoio da polícia, como se verá a seguir.

A IMAGEM NEGATIVA DA POLÍCIA PARA