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A coisa mais horrorosa que eu já vi na minha vida foi aqui dentro desse Eldorado, que eu cheguei em 88. Eu nunca no mundo havia visto brincarem com cabeça de gente aqui, enfi ada num pau, a dentadura, tudo... todo aquele negócio todinho... O que ele (fazendeiro) queria era a orelha de fulano, sicrano, beltrano. Tamanha três horas da tarde, eles (pistoleiros) atirando lá. Aquele horror de pistoleiro tudo com revólver, máquinas fortes, espingarda, atirando.8 [sic]

As áreas das três fazendas, objeto da pesquisa, foram ocupadas grada- tivamente pelos posseiros a partir de 1982, quando, como constataram os próprios moradores da área em uma assembléia extraordinária convocada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Eldorado dos Carajás em 1993, “se acentuou a falência de Serra Pelada e aumentou a procura de terras na região”.

No contexto analisado, o termo ocupar signifi ca instalar-se em determi- nado lugar, tomar posse, fazer casa e iniciar uma roça, trabalhar a terra e/ ou criar algumas cabeças de gado. Esse termo é usado pelos trabalhadores rurais quando eles entram em uma área particular ou pública e possui um sentido positivo, por se tratar, na maioria das vezes, de áreas consideradas improdutivas. Fazendeiros, policiais e empregados de fazendas usam o termo invasor com um sentido negativo, ou seja, da pessoa que se apropria de algo de outrem, sem permissão.

8 Os grifos que se encontrarão nas citações deste texto foram feitos com o objetivo de destacar

palavras, categorias ou idéias que aparecem nos depoimentos. Além disso, os grifos têm a fi nalidade de chamar a atenção do leitor para a construção argumentativa dos próprios agentes sociais sobre os diferentes aspectos do confl ito tratados neste artigo. As citações buscarão reproduzir as falas originais dos entrevistados. Isso poderá signifi car algumas incorreções gramaticais, mas que não prejudicarão a compreensão do texto.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

Essa briga ou confl ito tornou-se parte do cotidiano dos posseiros que permaneceram na área e é também um forte elemento de união do grupo social, entendido aqui como coletividade de pessoas defi nidas por formas comuns de acesso aos recursos produtivos e por sua participação em rela- ções sociais similares no processo vivido. O comportamento padronizado de indivíduos em um grupo particular deriva das circunstâncias materiais partilhadas e de uma posição comum na estrutura social. “É intrínseca a estas posições um senso mais ou menos comum dos problemas a serem resol- vidos e dos objetivos a serem alcançados” (Schimink e Wood, 1993, p.13).

Um diálogo ocorrido em 1989 entre um posseiro, morador há 12 anos na área de uma das fazendas, e o então proprietário do imóvel é ilustrativo dessa briga. O diálogo foi reproduzido pelo próprio posseiro, em maio de 1995.

Ele (fazendeiro) dizia na minha cara: Ó, cara, tu não vende, mas eu vou comprar da mão da tua mulher, da viúva.

Eu digo: Compra sim, tu compra. Se ela quiser te vender. Eu mesmo não vendo de jeito nenhum. Essa terra eu adquiri para criar os meus fi lhos. Essa terra é a terra sonhada. O meu pai dizia que o governo ia dar essas terras para acabar com a pobreza.

E eu escutei isso e chegou esta terra. Se você puder você toma, ou mata, mas eu não vendo a terra para o senhor, ela prestando. Eu posso vender essa terra, companheiro, se seu preço der para mim chegar em qualquer lugar e botar um meio de vida, para criar meus fi lhos. Mas para mim trabalhar em serraria, trabalhar em terra dos outros, eu

não vou mais.

(Fazendeiro) Não, eu só tomo do meu jeito.

(Posseiro) Então pronto, eu não vendo e pronto, você dê o seu jeito. [sic]

A “terra sonhada” foi realmente prometida pelo governo federal na década de 1970, quando o presidente Médici lançou a consigna de “terras sem homens para homens sem terras”, incentivando a ocupação do que era considerado o “vazio demográfi co da região Amazônica”. Os imigrantes vieram principalmente do Nordeste, onde os confl itos pela posse da terra

preocupavam o governo militar.9 Esse diálogo revela vários elementos im-

portantes para a análise: os posseiros que chegaram a Eldorado no início dos anos 80 já haviam trabalhado, em sua maioria, como assalariados, geralmente em serviços mal remunerados e insalubres, como no garimpo, serrarias ou carvoarias. Eram pessoas que, de modo geral, foram criadas no campo, mas que saíram da terra natal em busca de novas terras. A maior parte dos posseiros que ocupou as áreas das três fazendas era originária do Maranhão, seguido pelo Ceará, Piauí e Bahia.

O confl ito foi um dos componentes de desarticulação do grupo que se instalou nas terras das fazendas pesquisadas em 1986, pois muitos posseiros abandonaram os lotes porque não agüentaram a pressão por parte dos fa-

As faces ocultas de um confl ito

zendeiros e da polícia, além da falta de infra-estrutura nas áreas. Ao mesmo tempo, o confl ito foi um elemento de união dos posseiros que decidiram lutar pela terra e dos que se juntaram a eles em diversos momentos durante o período de dez anos.

Ao analisar os confl itos de terra na Amazônia, Almeida observa que eles passaram a representar, gradativamente, para os trabalhadores rurais, uma forma de organização e uma via para garantir o acesso às terras disponí- veis e o domínio de posses já consolidadas (Almeida, 1992b, p.270). Em razão deles, os trabalhadores rurais tornaram-se interlocutores legítimos aos olhos dos organismos ofi ciais. “As ocorrências de confl ito passaram a signifi car uma maneira de se relacionarem com os aparelhos de poder, cuja característica maior de intervenção refere-se a uma ‘administração por crise’” (Almeida, 1989a, p.3).