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DEPENDÊNCIA RECÍPROCA E RELAÇÕES DE CONCORRÊNCIA

Em suas manifestações nos espaços públicos, as autoridades governamen- tais, sobretudo as do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra, e os representantes dos movimentos tendem a entreter uma retórica belicosa, como se suas relações fossem de enfrentamento permanente. Assim, nos últimos dez anos, a mídia vem divulgando, com bastante freqüência, decla- rações de autoridades nas quais se afi rma que a reforma agrária será feita nos termos da lei e que não serão aceitas violações da ordem constitucional (as invasões de propriedades privadas). Da parte dos movimentos, são ha- bituais as acusações de que o Governo não realiza a reforma agrária e as ameaças de novas ondas de ocupações de terra. O tom das hostilidades foi elevado durante os oito anos do governo Fernando Henrique e amenizou-se bastante no governo Lula. Ora, essa retórica, ainda que remeta a tensões entre as partes, oculta as relações de estreita cooperação e dependência entre Estado e movimentos.

Até o presente momento, o Estado brasileiro não colocou em marcha uma política, nem tópica, nem massiva, de desapropriação de terras im- produtivas, que a Constituição e a regulamentação de 1993 autorizariam implementar. Na ausência de uma política própria para proceder às desapro-

19 Essa hierarquia de legitimidades foi identifi cada no acampamento de Mamucaba. Cf. Sigaud

A engrenagem das ocupações de terra

priações, tem dependido dos movimentos, que lhe indicam, por meio das ocupações e acampamentos, as fazendas a serem objeto de sua intervenção. Nesse sentido, pode-se afi rmar que os movimentos têm fornecido as dire- trizes para a política do Estado brasileiro em relação à questão fundiária: as fazendas desapropriadas são aquelas que foram ocupadas. Basta cotejar as listas de desapropriações feitas nos últimos três governos (Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula), e fornecidas pelo Incra, com as das ocupações e acampamentos fornecidas pelos movimentos para constatar a relação estreita entre desapropriações e ocupações. Os funcionários do Estado justifi cam as desapropriações alegando tratar-se de “áreas de confl i- to”. Trata-se seguramente de uma linguagem que sobreviveu de um tempo no qual eram efetivamente desapropriadas áreas onde havia um confl ito preexistente, como tendeu a ocorrer na Amazônia, onde foram registrados nos anos 70 e 80 enfrentamentos sangrentos entre posseiros e grileiros. Ora, como já foi visto aqui, quem cria o confl ito são os movimentos. A ocupação e o acampamento caracterizam uma situação de confl ito e lhe dão visibilidade. A linguagem das áreas de confl ito tem efeitos eufemizadores, que ocultam o caráter arbitrário do confl ito.

O Estado depende ainda dos movimentos para selecionar os destina- tários da redistribuição das terras desapropriadas, escolhidos entre os que participam das ocupações e que foram reunidos pelos movimentos. Con- trariamente ao senso comum, não existe uma massa de sem-terra ansiando pelo acesso à terra; os movimentos criam a demanda ao convidarem os tra- balhadores para ocupar as fazendas. São eles que lhes abrem a possibilidade de ter acesso a uma terra com a qual muitos nunca haviam sonhado, como foi possível constatar em larga escala na pesquisa feita entre os assentados

após a desapropriação nos engenhos da mata pernambucana.20 Ao aceita-

rem o convite e se instalarem nos acampamentos, os indivíduos se tornam

sem-terra porque passam a reivindicar a terra para si. Começam então a se

identifi car dessa forma, que é a modalidade apropriada de se representar no espaço dos acampamentos, e passam também a ser vistos pelos demais, do campo e da cidade, como sem-terra. Não se costuma considerar sem-terra o trabalhador que vive nas pontas de rua, sobrevivendo de trabalhos even- tuais e de biscates, ou os trabalhadores contratados nos engenhos: eles não estão envolvidos em ocupações e acampamentos, condição indispensável para serem identifi cados dessa forma. Os movimentos criam, portanto, não apenas a demanda como as condições de possibilidade de se tornar um sem-terra e vir a ser contemplado pela reforma agrária.

20 Foi no âmbito de uma pesquisa em curso, sobre os assentamentos de Rio Formoso e em

Tamandaré, que constatei que os trabalhadores que participaram dos acampamentos nunca pensaram na possibilidade de ter sua própria casa e um pedaço de terra dentro dos engenhos dos patrões.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

De sua parte, os movimentos dependem fortemente do Estado para levar adiante seu programa de ocupações de terras, pois os benefícios a serem obtidos constituem um poderoso argumento para chamar as pessoas para as ocupações. Em seus relatos a respeito do convite de que foram alvo, os trabalhadores referiam-se com freqüência ao fato de lhes ser dito que o Incra estava dando terras; que as terras para onde iriam eram improdutivas e, portanto, seriam desapropriadas; que se fossem para o acampamento re-

ceberiam cestas básicas dadas pelo mesmo Incra;21 que quando houvesse a

desapropriação teriam acesso a créditos para fazer uma casa, se sustentarem por algum tempo até poderem começar a produzir e ainda teriam recursos para tocar a produção. Cada desapropriação de um engenho ocupado e cada liberação de créditos para áreas de assentamentos confi rmam a justeza do que é anunciado e favorecem a aceitação de novos convites para futuras ocupações. Assim, a dinâmica das ocupações é tributária da política de Estado. Sem ela, os movimentos não teriam esperanças fundadas a oferecer a seu público-alvo e encontrariam difi culdades para reunir pessoas para as ocupações. Não teriam também se fortalecido, nem se multiplicado, como ocorreu na mata pernambucana, onde são contabilizados nove movimentos (Rosa, 2004, p.172-3).

Incra e movimentos estão assim vinculados por laços de dependência recíproca e de cooperação tácita. Como essas relações se inscrevem numa fi guração, nos termos de Norbert Elias, na qual há indivíduos vinculados a outros poderes da República, como o Judiciário, a outros movimentos e também a outros atores, como os proprietários, elas tendem a ser complexas e tensas. Assim, a maioria das desapropriações na mata pernambucana foi feita após uma intensifi cação da pressão dos movimentos sobre o Incra, por exemplo, as de Sauezinho, Saué Grande, Coqueiro, Cocal e Cocalzi- nho (engenhos da Usina Santo André localizados em Tamandaré), que só se efetivaram, em fi ns de 1999, após um acampamento de mais de 45 dias de cerca de cem trabalhadores daqueles engenhos em frente à sede do In- cra, no Recife. Contra essas desapropriações se interpunham os donos da Usina Santo André, com o apoio de políticos de peso no cenário nacional. Via de regra, o que aparece, por ser objeto de atenção da mídia, é a tensão. Procurou-se aqui colocar em relevo a dimensão oculta da dependência e cooperação que têm contribuído fortemente para entreter a engrenagem da forma acampamento.

Finalmente, caberia destacar que a generalização da forma acampamen- to tem sido tributária também das relações de dependência que vinculam cada movimento com as pessoas que mobilizou e conduziu com sucesso

21 Nos acampamentos pesquisados houve, em algum momento, distribuição de cestas básicas.

Embora a distribuição fosse intermitente, a possibilidade de ter acesso a ela constituía um atrativo importante para os trabalhadores que, fora dos acampamentos, não seriam con- templados.

A engrenagem das ocupações de terra

à obtenção da terra, bem como das relações de concorrência entre os mo- vimentos. Os indivíduos que obtiveram a terra e acesso aos créditos, por intermédio de ocupações, se sentem devedores ao movimento que tornou isso possível. A dívida implica obrigações, como lealdade e cooperação, as quais são descritas como um compromisso. Os movimentos contam, portan- to, com os antigos acampados, e hoje detentores de uma parcela, quando há marchas e manifestações a promover e, sobretudo, quando se trata de fazer novas ocupações. Eles vão para fazer número, ensinar a técnica de ocupar, animar os neófi tos e, com seu exemplo, mostrar que a esperança na lona preta tem fundamento. Em todas as ocupações havia um núcleo

constituído por assentados.22 O capital simbólico (prestígio) e o poder rela-

tivo (posição na correlação de forças) dos movimentos são constituídos por aquilo que é reconhecido como seus feitos e suas vitórias: as ocupações e desapropriações. Os movimentos competem para acumular cada vez mais capitais, o que se constitui em elemento decisivo para entender a espiral de ocupações (cf. Smircic, 2000; Sigaud, 2000; Sigaud et al., 2006; Rosa, 2004).

CONCLUSÃO

As ocupações de terra no Brasil são reconhecidas como um fato notável dentro e fora das fronteiras nacionais. São freqüentemente encantadas, em um registro positivo, como uma nova manifestação da “luta por terra” por parte da massa de “pobres” errantes pelo país, ou, em registro negativo, como o produto demoníaco da manipulação das massas por agitadores. Não busquei neste texto entrar em tais debates sobre o caráter das ocupações, mas tão-somente explicar e compreender como se tornaram possíveis. Para tanto, fi z determinadas opções metodológicas. Parti da etnografi a dos acampamentos e da comparação entre eles, o que permitiu identifi car a existência de uma forma. Em seguida, problematizei as condições de possi- bilidade de implantação de tal forma. Para tanto, inscrevi os acampamentos na história das relações sociais em que ocorriam e, sobretudo, procurei compreender a motivação dos que lá se encontravam. Como chamou a atenção que a reivindicação pela terra tivesse que passar por toda uma performance de barracas de lona preta e bandeiras hasteadas em mastros, perguntei-me sobre o que estava em jogo na montagem do acampamento

22 O compromisso com o movimento foi encontrado também nos acampamentos estudados

por Ernandez (2003) no estado do Rio de Janeiro, por Loera (2006) em São Paulo e por Bren- neisen (2003) no Paraná. A participação de assentados em ações dos movimentos tem sido interpretada equivocadamente por alguns estudiosos como resultante do mandonismo dos dirigentes das organizações (ver em especial NAVARRO, 2005). Tal interpretação resulta, por um lado, do desconhecimento da lógica na qual se inscreve o compromisso e, por outro, de uma visão normativa a respeito do dever ser das relações entre o “movimento” e sua base.

Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas

para os movimentos e para os indivíduos: tratava-se de atos que tornavam legítimas as pretensões. Em seguida, procurei explicar a dinâmica e a insti- tucionalização da forma. Os elementos da resposta foram encontrados nas relações de dependência recíproca e concorrência que vinculam o Estado, os movimentos e os indivíduos.

Na Zona da Mata de Pernambuco, as ocupações não resultaram de uma demanda preexistente por terras. Os movimentos criaram a demanda e ela tem sido alimentada pelas práticas do Estado. Como houve indivíduos dispostos a atender aos convites dos movimentos, e a crer na possibilidade aberta de “melhorar de vida”, eles passaram a participar de ações que os estudiosos costumam classifi car como expressões da “luta pela terra”. Vários são os efeitos dessa “luta”, dentre eles destacam-se a condição de possibi- lidade da política de desapropriação do Estado brasileiro nos últimos vinte anos, a criação e o fortalecimento de dezenas de movimentos de ocupação de terra e, sobretudo, o fato de que, graças a ela, centenas de milhares de indivíduos lograram obter a atenção do Estado brasileiro, benefi ciando-se do acesso à terra e de políticas de crédito. Não fosse essa “luta”, tenderiam a permanecer ignorados, como boa parte da população, ou apenas seriam alvos de programas pontuais e emergenciais. É certo que a base da análise é o caso da mata pernambucana, mas um caso bem estudado ilumina o estudo de outros, coloca em questão idéias bem estabelecidas e fornece pistas para novas pesquisas e um modelo de análise.

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