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Folheto III “Do Riso-a-Cavalo ao Galope do Sonho”

III.I Carlos Magno: o Imperador

Os romances carolíngios, como o próprio nome indica, dizem respeito ao Imperador Franco Carlos Magno e os seus doze Pares. Nascido em 747252, filho legítimo de Pepino e Bertrade, e herdeiro, com Carlomano, do reino de Pepino III, em 768, Carlos Magno foi, desde 771, o único soberano dos Francos. Três anos depois, em 774, acompanhado pelos Doze Pares de França, companheiros de batalha, começa a sua conquista pelo Ocidente e torna-se rei dos Lombardos; entre 793 e 796 alarga o território franco em direcção ao leste da Europa em campanhas decisivas contra os Saxões e contra os Ávaros, respectivamente. Em 800, quando se encontra em Roma, é coroado, pelo Papa Leão III, como Imperador do Ocidente, e realiza, assim, o seu sonho, ao ver, reconhecida pela Igreja – e vale a pena dizer que o Imperador era um homem cristão, devoto, praticante, que chegou a intervir em concílios, onde impunha a sua decisão em matérias de doutrina de fé – a sua autoridade política e religiosa, o que para si significa mais um passo em direcção à execução da sua maior pretensão: reunificar grande parte do Ocidente, assim como fizera o Império Romano. Apesar do território do Império Franco não coincidir com o do Império Romano, que foi muito mais extenso, muito dele se aproximava, no que diz respeito a uma nova Pax Romana, real ambição política e espiritual do Imperador. Por fim, no início do século IX, há as últimas incursões militares que terminam na conquista de Barcelona e na expedição da Boémia; em 812 é estabelecida a paz entre o Ocidente e o Oriente, em um acordo feito por Bizâncio e Carlos Magno que, aos 67 anos, morre no dia 28 de Janeiro de 814.

A figura de Carlos Magno ganha com isso uma perspectivação centrada nas suas realizações que foram fundamentais para a Europa daquele tempo e para a que hoje se mantém. Para a execução do seu projecto, O Imperador cercou-se de bons executantes, competentes colaboradores (os Doze Pares de França) e daqui já percebemos a perspicácia e a qualidade de governante de Carlos Magno na escolha dos seus

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A literatura tradicional e/ou literatura popular tradicional “abrange toda a produção que, recolhida no passado ou chegada até ao presente, foi reproduzida ou aceita como sua pelo povo, tendo sido profundamente marcada pela acção de transmissão ao longo do tempo (…) faz parte do património colectivo e está arraigada na memória popular, que toma a como sua, inserida no seu tesouro intelectual”. PINTO-CORREIA, João David, Os Romances Carolíngios da Tradição Oral Portuguesa. Op. Cit. p. 153.

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Esta é a data mais aceite, entretanto alguns estudiosos apontam o ano de 742, como o do seu nascimento.

companheiros. O ambicioso plano, de certeza, foi modesto em relação ao resultado final e o seu sucesso deve-se em muito ao facto de não ter sido um plano global, mas progressivo: uma vez conquistada uma etapa, avançava-se para outra e para isso contava com a sua excelente performance como político, administrador, fomentador de cultura e reformador religioso; pilares, esses, também do seu Império. O facto de ter sido coroado pelo Papa Leão III como Imperador do Ocidente, de alguma forma facilita o seu projecto, uma vez que ao conferir-lhe a dignidade sacerdotal, guardião do poder e da ordem religiosa, estende isso aos Francos que passam a ser vistos como o “povo de Deus”, o que acentua o carácter mítico e místico de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Durante o seu Império estabelece uma aliança com a Igreja de modo que política e religião vão sempre andar juntas, a ponto dos cargos de fiscais do Império serem ocupados por condes e bispos. Na verdade há uma confusão desses dois domínios: o espiritual e o político. Toda a organização administrativa, diplomática e socioeconómica do Império e a sua visão de prosperidade era cuidadosamente erigida sob uma ordem religiosa e o desenvolvimento do espírito era uma questão que se impunha não só a Carlos Magno, mas a qualquer governante medieval como condição para o bom funcionamento da sociedade, ainda mais se pensarmos na amplitude do projecto e do Império carolíngio. Sobre os alicerces da religião, o espírito e a cultura desenvolvem-se, visto que, nos fins do século VIII e no século IX, como em toda a Idade Média, a cultura estava intimamente ligada à teologia e à religião que se constituíam como disciplinas fundadoras dos domínios da arte e do saber. Aos nobres competia administrar e combater; aos religiosos, sobretudo, estudar e ensinar.

Carlos Magno é considerado pelos seus biógrafos, como um dos reis que mais se interessou pelos sábios e mais criou meios para filosofarem, o que permitiu às ciências, às letras e às artes um novo incremento. Não terá sido um governante culto, mas em busca de aprender, e assim como acontecia em outras áreas, como no campo guerreiro ou diplomático, soube cercar-se de homens competentes e que se encarregaram de reorganizar a cultura e de promover a reforma da religião durante o seu Império, a ponto deste período, na história da cultura europeia, ser conhecido como o “renascimento carolíngio”. Este ponto para nós é importante, pois é inspirado no Império de Carlos Magno, que a personagem suassuniana, Quaderna, quererá construir o seu Reino. Lembremos que esta personagem tem dois sonhos principais: tornar-se Imperador e ser o Génio da Raça Brasileira, o que denota toda a sua preocupação com as Letras e com as artes, no caso específico, sertanejas. Assim, pedimos licença para nos estendermos

um pouco mais sobre esta questão durante o Império de Carlos Magno. Assim, já no começo do seu Império, em 774, após a conquista da Lombardia, o Imperador chama para junto de si mestres como o gramático Pedro de Pisa e o teólogo Paulino Diácono; após 782, chega o poeta e teólogo visigodo, Teodulfo e depois Alcuíno253, que é considerado o mais importante intelectual da corte carolíngia e do seu tempo. Criam-se escolas, bibliotecas e exige-se do clero um melhor nível intelectual e cultural, concede- se a importância à escrita e introduz-se a minúscula carolíngia. Por fim, mais duas implementações no âmbito das artes e das letras merecem a nossa atenção: o desenvolvimento da iluminura nos manuscritos da época, técnica que inspirou Suassuna para a confecção das iluminogravuras254 utilizadas em seus poemas; e a criação, por Alcuíno, da Aula Palatina de Aix-la-Chapelle, uma espécie de Academia das Artes, na qual eram ensinadas as sete artes liberais: o trivium, gramática, lógica e retórica; e o quadrivium, aritmética, geometria, astronomia, e a música. Todos os membros da Academia Palatina apresentavam-se sob um pseudónimo bíblico ou tirado da Antiguidade Greco-Romana; o do Imperador era David, o rei bíblico, o que é revelador. Como já havíamos dito, e por isso nos demoramos mais nesta parte, algumas atitudes e opções de Quaderna assemelham-se às de Carlos Magno. A fundação da Aula Palatina encontra eco no texto suassuniano com a criação, por Quaderna, da Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba, já na Pedra do Reino, que tinha como objectivo discutir as artes brasileiras e salvaguardar os seus escritores, o próprio Quaderna, logicamente, os seus mestres Clemente e Samuel, bem como os poetas populares dos folhetos de cordel. Neste ponto há também a aproximação ao facto de, assim como Carlos Magno, Quaderna não era um homem culto, mas com sede do saber e, tal como o Imperador Franco, cercava-se de homens que dominassem os assuntos que lhe interessavam, para que deles pudesse extrair o conhecimento, o que fazia através de Clemente e Samuel. No que toca às artes, a preocupação quaderniana era em preservar as artes sertanejas, nada mais lícito, com enfoque para a xilogravura que ocupa,

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“Santo Alcuíno de York foi um monge inglês beneditino, poeta, professor e sacerdote católico. Nasceu na Nortúmbria (Grã-Bretanha), em 735, e estudou na Escola Catedral de York. Leccionou posteriormente nessa mesma instituição durante quinze anos e ali criou uma das melhores bibliotecas da Europa, tendo transformado a Escola em um dos maiores centros do saber. Foi também ordenado diácono. No Inverno de 780 foi enviado a Roma pelo Arcebispo de Iorque, Eanbaldo, para receber das mãos do Papa o pallium, uma sobrepeliz de lã, com uma cruz bordada e que era o símbolo dessas altas funções. Em Março de 781, cruzou-se com Carlos Magno em Parma, e foi convidado pelo monarca para o ajudar a instruir e reformar a Corte e o Clero do seu Reino. Convite aceite. Contribuiu bastante para a Renascença carolíngia. Foi também conselheiro do imperador. Depois de se ter retirado da corte carolíngia, foi abade de um mosteiro na cidade francesa de Tours. Santo Alcuíno tornou-se o patrono das universidades cristãs. Morreu no dia 19 de Maio de 804”. Informação extraída da enciclopédia livre Wikipédia.

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guardada as devidas diferenças técnicas e utilitárias, o papel da iluminura na Idade Média. Com relação a esta técnica já referimos que Suassuna utilizou-se dela para a criação das suas iluminogravuras.

A questão religiosa merece também um aparte, visto que este será um dos pontos fundamentais para a construção da lenda carolíngia e, logo, dos romances de conteúdo carolíngio. Segundo os biógrafos do século IX, principalmente Eginardo, em Vita

Karoli, Carlos Magno era muito religioso, já dissemos que chegava ao ponto de

participar de concílios e de impor a sua autoridade na resolução de aspectos doutrinais, mas não só isso fazia o Imperador. Construiu ou auxiliou na construção de basílicas e igrejas, a fim de possibilitar aos seus súbditos uma maior participação na vida cristã, igualmente fundou mosteiros, que, para além de serem focos da vida religiosa, eram um espaço de intenso labor intelectual. Em geral, as basílicas, igrejas e mosteiros eram dirigidos por familiares seus ou por religiosos de sua confiança. Já no fim da sua vida, em 813, fundou a Regra de São Bento. A sua cultura eclesiástica estendia-se também para os territórios conquistados, onde criava novas dioceses para as quais enviava religiosos a fim de evangelizarem os povos subjugados. É óbvio que esta era uma via de mão dupla, se Carlos Magno apoiava a Igreja, esta não se fazia de rogada e em muito colaborou ao plano de conquista de Carlos Magno, legitimando o seu poder e as suas realizações, até consagrá-lo como Imperador do Ocidente, como já registamos. Em nome da fé e da concepção de poder herdada por Carlos Magno não só da Bíblia, com a imagem do rei David sempre como norte, mas também da autocracia dos imperadores cristãos, intolerâncias foram cometidas em relação aos povos conquistados. Sua contribuição para com a Igreja foi tamanha que, no século XII, três séculos após a sua morte, Carlos Magno foi canonizado, mais precisamente no dia 29 de Dezembro de 1165, por proposta de Frederico I, o Barba Ruiva - seu confesso admirador - e do clero de Aquisgrano, sua cidade favorita. Aprovada por Alexandre III, a festa de São Carlos Magno assinalava o calendário litúrgico no dia 28 de Janeiro; o Imperador foi também por muitos anos o patrono da Sorbonne.