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Folheto II O Castelo Sertanejo

II.II De mãos dadas com Quaderna

Esclarecida a obra, é hora de falar do homem, se bem que uma coisa não se faz sem a outra, visto que (homem e obra) se constroem mutuamente. Muito já foi dito sobre o narrador e personagem principal da demanda novelesca suassuniana, que para além de se revelar e erigir-se através da obra, é a linha que tece a trilogia, tornando-a uma só história. É Quaderna quem define o tom da narrativa e é através dos seus olhos e com sua permissão que o leitor adentra o universo suassuniano e por que não dizer agora, quaderniano? A genealogia de Quaderna tem uma importância cabal para

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Na Nota do Autor de O Rei Degolado, Ariano Suassuna diz que em conversa em sua casa, o crítico e amigo Maximiano Campos disse que este livro “é mais do que violento: é um livro que chega a ser

convulso”. In. ORD. Op. Cit. p. 134.

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SUASSUNA, Ariano. ORD. Op. Cit. p. 130. 215

“Ilumiaras são anfiteatros ou conjunto-de-lajedos, insculpidos ou pintados há milhares de anos pelos antepassados dos índios Carirys no sertão do Nordeste brasileiro e que, como ‘A Pedra do Ingá’, na Paraíba, forma lugares de cultos. Por isso, normalmente têm como núcleo uma Itaquatiara, isto é, um Monólito central, lavrado por baixorrelevos, ou decorado por pinturas rupestres”. SUASSUNA, Ariano.

Apud SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Op. Cit. p. 303. 216

SUASSUNA, Ariano. ORD. Op. Cit. p. 134/135. 217

Ariano Suassuna inspirou-se em João Cabral de Melo Neto para dar o nome da sua personagem, pois

Quaderna é o título do quarto volume de poemas de João Cabral de Melo Neto, que reagrupa textos

escritos entre 1956 e 1959. Informação extraída em: SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Op. Cit. p. 307.

aprofundar-mo-nos no universo suassuniano, pois ela é que vai indicar o caminho pelo qual o texto envereda.

Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna, ‘O Decifrador’, como se auto-define218, nasceu em 16 de Junho de 1897, é o “mesmo Dom Pedro IV, Rei do Quinto Império e

do Quinto Naipe, Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do Brasil (…) consta na minha certidão de nascimento ter nascido eu na Vila de Taperoá”219. Aqui está registada a primeira informação sobre Quaderna, nome, nascimento e já podemos fazer uma primeira inferência quanto à sua data de nascimento que é no mesmo dia e mês do seu criador, Ariano Suassuna. A diferença faz-se no ano de nascimento, Quaderna é trinta anos mais velho que Ariano. Desta forma, criador e criatura, ainda que com o hiato de 30 anos comemoram aniversário no mesmo dia – é como se Suassuna quisesse com isso registar duas coisas: primeiro - que o seu nascimento, ou renascimento, dá-se com essa obra; segundo – que este número (30) funciona como uma insígnia, um algarismo cabalístico, pois Trinta é o ano e o nome da Revolução que marcou a sua história pessoal e ficcional, é o ano em que seu Pai foi morto. “ (…) aqueles que ao ouvir a palavra ‘Trinta’, sabem que ‘trinta’ não é somente

um número; 30 é o nome de uma Revolução; o nome do ano glorioso, sangrento e terrível; um tempo no qual nós, sertanejos, não podemos pensar sem ouvir de novo o estalejar das balas nos tiroteios sem sentir de novo o sangue do ódio e do sofrimento”220. Os 30 anos que separam Quaderna de Suassuna também sugerem uma possível actualização do romance. Em 1930, Quaderna tinha 33 anos, ao passo que Ariano, três. Suassuna precisava de Quaderna para poder estar presente nos factos de 30. Quaderna funciona, assim, como uma máquina do tempo, que permite a Suassuna revisitar os acontecimentos de 1930 e imprimir sobre eles a sua verdade. Já dissemos que o tom autobiográfico nesta obra é intenso e, obviamente, isso só pode acontecer através de Quaderna que permite uma leitura como um alter-ego de Ariano. Muitas serão, assim, as similitudes entre a vida e os caminhos literários de um e de outro. As que forem importantes para a compreensão da obra em análise serão aqui registadas.

Voltemos então a Quaderna que é um “descendente em linha masculina e direta,

de Dom João Ferreira-Quaderna, mais conhecido como El- Rei Dom João II, o Execrável, homem sertanejo que, há um século foi Rei da Pedra Bonita (…). Isto significa que sou descendente, não daqueles reis e imperadores estrangeirados e

218

SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino. Op. Cit. p. 5. 219

Idem. 220

falsificados da casa de Bragança (…), mas sim dos legítimos e verdadeiros Reis brasileiros, os Reis castanhos e cabras da Pedra do Reino do Sertão, que cingiram, de uma vez para sempre, a sagrada Coroa do Brasil, de 1835 a 1838, transmitindo-a assim a seus descendentes, por herança de sangue direto e divino”221. Essa passagem, ao primeiro olhar, permite uma leitura de Quaderna como um louco, que imagina ser descendente de uma família real, mas ao analisarmos com atenção, e à medida que o conhecemos, vemos que entrou conscientemente em estado de loucura romanesca, de leitura desenfreada, principalmente do romanceiro brasileiro e ibérico, buscando neles não só modelos de comportamento e acção, mas modelos para a criação da sua obra, que será alicerçada na literatura popular, o que o permitirá tornar-se o Génio da Raça Brasileira. No rastro deste pensamento, não é gratuita a opção, feita por Suassuna, de dar a Quaderna, como um dos seus traços, a epilepsia. Em teoria da literatura, sintomas patológicos estão intimamente ligados à fruição literária e assim também acontece com Quaderna, um ser que está em constante acto de criação literária. A sua epilepsia é considerada um ‘mal-sagrado’ que é detonado através da beberagem litúrgica do Vinho da Pedra do Reino que melhora “a cegueira poética e profética que me possui durante a

maior parte do tempo (…) se o bebesse [o Vinho] no almoço, seria infalivelmente atacado pelo ‘mal sagrado do Génio’: teria visões e visagens, como Poeta-épico, visionário e Profeta que sou; reviveria aventuras e cavalarias que já vivera, em minhas batalhas e emboscadas sertanejas; possuiria em sonho todas as mulheres que desejasse; por fim, dormiria um curto, mas profundo sono enxaquêquico; e acordaria com uma lucidez terrível, divino-demoníaca, fundamental para a solução de Enigmas e logogrifos (…) preparei tudo e comecei a beber liturgicamente o Vinho que tinha levado. Assim que acabei, deitei-me em cima da alta pedra, para esperar a parte mais violenta do ‘acesso’, a primeira. Nunca vi tal coisa em mim, porque, quando a gente bebe o Vinho, cai, no mesmo instante, no sagrado sono-de-ataque da Poesia escumejante. Mas já vi Lino Pedra-Verde222 atacado da embriaguez sagrada do Sertão, de modo que sei como é terrível: a gente cai no chão, escabujando e espojando-se, babando pela boca, com os olhos torcidos e revirados”223. Está feito e descrito o acesso - sagrado sono-de-ataque da Poesia escumejante – nada mais é que o ataque epiléptico

221

SUASSUNA, Ariano. PDR. Op. Cit. p. 5. 222

Lino Pedra-Verde é uma personagem que aparece em A Pedra do Reino como um dos alunos e colegas de Quaderna na Escola de Cantoria da Onça Malhada.

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que leva a nossa personagem a enveredar pelo processo criador, tendo como elemento adjuvante o Vinho224 sagrado da Pedra do Reino.

Vale então chamar a atenção para quais são as suas veredas. Quaderna revela-as no trecho acima transcrito, quando fala das suas visões e visagens como Poeta-épico, visionário e Profeta, revivendo aventuras, cavalarias, batalhas e emboscadas sertanejas o que faz parte do universo poético do romanceiro, fonte que alimenta o seu processo e projecto literário, já que é no universo da literatura popular que os seus sonhos de reinado, cavalaria e aclamação como Génio da Raça podem concretizar-se. É ao manifestar o seu desejo em ser o Génio da Raça que Quaderna mais dialoga com a tradição ibérica, diálogo esse revelado nos temas escolhidos e na estrutura proposta dentro do seu projecto literário em construir uma Crónica-epopeica, uma novela de cavalaria, onde o Sertão será o Reino por onde caminharão seus cavaleiros, guerreiros e batalhas. As lacunas de transposição das características medievais ibéricas serão preenchidas não só pelo repertório íntimo de Quaderna, como pelo adquirido através das suas leituras dos romances de cavalaria. Sua obra terá essa base adaptada ao universo sertanejo. Quaderna usa a sua família e os acontecimentos a ela sucedidos como tecido para alimentar a sua grande Obra. Seu projecto inclui narrar durante o depoimento ao Corregedor todos os seus dramas, tragédias, infortúnios, alegrias e cavalgadas, tendo como mote o seu Padrinho, não só por ter sido assassinado, mas por representar, para Quaderna, “uma figura de herói, de Príncipe e Cavaleiro”225. E aqui mais uma vez o tom de romanceiro faz-se presente. Romance de cavalaria sem lutas não é possível, portanto, resolve a questão com a escolha da descrição dos 20 anos de Guerra sertaneja.

“O facto de eu sentir na boca, de vez em quando, o gosto de sangue dos sonhos, vem da minha ‘sina’ de Garcia-Barretto226 e de Quaderna, um descendente, portanto de velhas famílias e velhos sangues sertanejos, nos quais se acumulou um estranho testamento de afetos e rancores ancestrais, dívidas de sangue a cobrar e a pagar, heranças de ódios e lealdades ilanienáveis (…). Sinto pulsarem dentro de mim os sangues que, através deles [os seus ancestrais], vieram para minhas veias. O dos Garcia-Barrettos, sangue visigodo, de altos homens agalegados do Norte de Portugal, tocado aqui pelo sangue

224

Sobre o Vinho, Quaderna revela na p. 123 de ORD que quando sua mãe teve a notícia do assassinato do seu marido, o seu desespero foi tão grande que não coube “em sua garganta sufocada (…). Tia Filipa

dava a ela um cálice de vinho e foi talvez por isso que o Vinho se tornou para mim, daí em diante, um elemento de vida, ligado à consagração e aos rituais da Morte – e, portanto, aos de Deus”.

225

SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 88. 226

Embora Quaderna não tenha o apelido Garcia-Barretto, era descendente desta família pela parte materna, como esclare na p. 116 de ORD. Op. Cit.

judaico (…). Quanto ao sangue dos Quadernas, é mais Deserto – é árabe, cigano, negro-espanhol, cariri e mameluco (…). Vejo então, esse pétreos rostos castanhos e ibérico-mamelucos dos meus antepassados (…), pertencentes à ‘bárbara Arsitocracia do Couro’”227.

Quaderna sonha alto e quer ser membro não só da Academia Brasileira de Letras, como também da Academia de Letras dos Emparedados do Sertão da Paraíba228, para assim conseguir ser o ponto de intersecção entre as duas literaturas que cada uma dessas Academias representa: a erudita e a popular, respectivamente. E aqui Suassuna retoma o cerne do Movimento Armorial que, através da reescritura e da recriação, busca transformar a arte popular em erudita sem, contudo, perder o que há de popular no popular. Para ser o Génio da Raça, Quaderna, dentre outras coisas, frequenta a Escola de Poesia da Onça Malhada, onde aprendeu com seu mestre de poesia, João Melchíades, que “havia dois tipos de romance: ‘o versado e rimado’, ou em poesia; e o ‘desversado

ou desrimado’, ou em prosa”229. Esse é apenas o começo e se dá ainda na Pedra do

Reino, mas em O Rei Degolado, Quaderna já tem o seu mundo mítico delineado e

esclarece assim a sua genealogia e projecto literário: “Samuel e Clemente costumam

falar mal da ‘embasbacada admiração’ que eu tenho por José de Alencar230 (…) para me entender é preciso levar em conta que José de Alencar não era o Génio da Raça – era apenas um dos Precursores dele. (…). Pressentia ele que existem dois tipos de Poetas – os da Cidade e os do Deserto: mas não passou daí (…) os Poetas da Cidade têm que fazer uma opção: ou idealizar e inventar heróis elevados acima da condição humana, como fazia José de Alencar; ou apresentar os homens do Povo embrutecidos e degradados pela miséria, como Aluísio Azevedo231; ou então baixar seu vôo, como Machado de Assis, criando seus personagens a partir de caracteres mesquinhos de

227

SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 77/78. 228

Academia ‘criada’ por Quaderna e seus mestres Samuel e Clemente no Folheto XXVII da PDR. O termo ‘emparedados’ é sugerido por Quaderna que assim o justifica: “-É o único nome em tono do qual

podemos nos unir. Eu sou ‘emparedado’ porque, segundo vocês, vivo assim, murado entre o enigma e o logogrifo. Clemente porque vive ‘agrilhoado entre as paredes do grifo e do mundo, entre os elos de ferro do preconceito e da injustiça social’. Quanto a Samuel, ‘anjo decaído nas paredes de pedra da prisão terrena’ é também emparedado, porque vive aqui, ‘exilado neste bárbaro Deserto africano e asiático que é o Sertão’ (…) nós três somos ‘emparedados’ porque, com as andanças e extravios políticos que o Brasil vai vivendo, nós todos temos cara de quem com culpa ou sem culpa, vai ser encostado à parede e fuzilado!”. SUASSUNA, Ariano. PDR. Op. Cit. p. 133/134.

229

SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 56. 230

Escritor brasileiro. Maior expoente da prosa no período Romântico (séc. XIX). Sua obra divide-se em ciclos, assim o primeiro seria o indianista, onde destacam-se O Guarani e Iracema; no urbano, temos

Lucíola; no regional, O sertanejo e O Gaúcho e, por fim, o ciclo histórico, com destaque para A Guerra dos Mascates.

231

Escritor brasileiro, oriundo do estado do Maranhão. Foi o responsável por inagurar o estilo Naturalista, no Brasil , em 1881. Dentre as suas obras destacam-se O Mulato e O Cortiço.

burgueses – comerciantes, doutores, industriais, funcionários públicos, banquerios, mulheres venais e adúlteras-a-furto, enfim, toda essa corja onde pulula o que o carácter humano tem de desprezível. Eu não faço nenhuma dessas opções. Não tendo outro jeito, parto do mofo mesquinho das ruas aqui da Vila, e dos personagens cruéis, corruptos e sem grandeza que fazem a maioria dos homens. Rio deles e de mim mesmo, mas meu riso não é o sorriso irónico, corrosivo, mesquinho, mofado e encasacado de Machado de Assis. É o riso-a-cavalo, grosseiro e macho, que permite reunir corajosamente as injustiças, as feiuras e os destroços da vida real para, com eles, empreender o galope do Sonho, e manter, assim, a chama da minha Epopéia, da minha insurreição permanente, contar as feiuras e injustiças do real”232. Mais adiante Quaderna continua: “sou uma dessas pessoas que procuram tornar a loucura da vida

alguma coisa de suportável e de literariamente aceitável e epopeicamente belo”233. Essa última parte vem por ratificar o que dissemos quanto ao estado de loucura romanesca do nosso narrador. Quaderna sabe que a vida é triste, dura, feia, áspera, e lança mão do folheto e dos espectáculos populares como defesa, lucidamente.

Por fim, fica o registo de que devemos perceber que o percurso de Quaderna, “o

modesto Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão”234, em O Rei

Degolado, não se realiza apenas com a construção da sua Obra, seu Castelo Sertanejo.

Esse projecto está em linha com o desenvolvimento de um plano político de base monarquista, o que possibilitaria executar na plenitude as suas duas maiores ambições: ser o Génio da Raça e o Imperador, o Rei do Brasil “não um Império mofado e

encasacado, mas uma imensa fraternidade do Povo castanho com todos os Brasileiros convocados ‘a serviço’, vestidos de caqui e mescla azul numa média da nossa pobreza honrada, e unidos aos Soldados em torno do nome sagrado de Deus. E só assim (…) é que eu teria ambiente propício para erguer meu rouco Cantar castanho, este Castelo bandeiroso e cavalariano que é a Obra genial da Raça Brasileira”235.