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Folheto III “Do Riso-a-Cavalo ao Galope do Sonho”

III.VI Valores carolíngios semanticamente investidos no romance

III.VI.V Ordem Social, a dimensão religiosa

Diante de tudo que dissemos até aqui, constata-se que no universo cavaleiresco há um estatuto social bem definido, onde a aristocracia ou nobreza medieval, ou no nosso correspondente brasileiro a “aristocracia do couro”346, ocupam um lugar de destaque. Entretanto o topo da estrutura social é ocupado por entidades hierarquicamente superiores que dizem respeito à dimensão religiosa e/ou sobrenatural. À primeira vista pode parecer confuso que o cimo da pirâmide social seja ocupado pela dimensão religiosa, contudo temos que ter em mente que estamos a falar da sociedade medieval e da sociedade sertaneja, um dos principais arcabouços dos valores religiosos. Esclarecido isto, resgatemos o que foi dito no início deste capítulo sobre a relação do Imperador Carlos Magno com a Igreja Católica e da sua pretensão e conquista em se tornar um guardião dos preceitos e dogmas religiosos o que fez ainda em vida, dando- lhe, após a sua morte, inclusive o privilégio de ser canonizado. A dimensão religiosa sempre guiou o Império Carolíngio e o respeito à doutrina religiosa era ponto fulcral a

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SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 84. 345

SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 86. 346

ser cumprido pelos seus paladinos, subalternos e súbditos. O Imperador dos Francos queria unir em si o misto de Deus e Governante, como já dissemos, essa era a sua maior aspiração. Lembremos também da lenda que se criou em torno de Carlos Magno no que concerne a sua ligação com São Tiago, no descobrimento do túmulo do ‘apóstolo das Espanhas’ e na fundação da sua basílica. Em O Rei Degolado a dimensão religiosa é um dos pontos que detona o conflito e comanda a acção.

Nos romances carolíngios, as entidades superiores religiosas quase sempre ocupam o lugar de Destinadores supremos: Deus e, em alguns casos, o rei. “- Por Deus

te rogo, bom moiro / Me digas sem me enganar, / Cavaleiro de armas brancas / Se o viste aqui passar”347. Aqui o nome de Deus é rogado entre inimigos como uma forma de trégua e de solidariedade para com a busca empreendida, a procura do pai pelo filho. Outra passagem encontra-se em Floresvento: “- Não o mateis, senhor rei, / Que é o

nosso filho carnal, / Desterrai-o para longe”348. Aqui já quem assume o poder religioso é o rei que detém a autoridade para decidir sobre a vida ou a morte. Em todos os romances do ciclo carolíngio, o embate contra os mouros, os infiéis, pode também ser visto como o domínio da afirmação da dimensão religiosa. Segundo o pesquisador João David Pinto-Correia, nos romances carolíngios, algumas vezes, a dimensão religiosa é substituída pela dimensão sobrenatural, já que a entidade que comanda a acção passa a ser, por exemplo, o Amor, como acontece nos romances do Conde Claros: “Meia-noite

vai andada – e outra meia por andar, / D. Carlos, co’o mal de amores – não podia descansar / (…) / Asselai-me esses cavalos, - aquele que melhor andar, / (…) / - À porta de Cara linda – havemos de ir passar”349. Nesta passagem vê-se claramente que o Destinador é o Amor. Conde Claros, ou Dom Carlos com mal de amores não consegue descansar o que o impele a ir à casa de Cara Linda ou Claralinda. Ainda sobre a dimensão religiosa nos romances carolíngios podemos citar os romances do Conde Preso que é encarcerado e, em seguida, morto por degola, por ter violado uma donzela no Caminho de Santiago, o caminho santo.

Em O Rei Degolado a dimensão religiosa e a sobrenatural caminham de mãos dadas. Quaderna é mais sincrético do que foi o Imperador dos Francos, o que é natural uma vez que o sertão do Brasil é uma região onde a lenda e o folclore encontram terrenos férteis, o que permite a mistura dos rituais religiosos com os locais ou, em

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Romance de Dom Beltrão. Op. Cit. p. 171. 348

Romance Flores e Ventos, versão Variante da Ilha de S. Jorge – Ribeira d’Areias (Cantos, pp. 232-233) apud PINTO-CORREIA, João David. ROTP. Op. Cit. p. 184.

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Romance Conde Claros Insone. (VRP 1958 : v. 50) apud PINTO-CORREIA, João David. Ibidem. p. 213.

alguns casos, herdados da religião africana que tem grande influência no Brasil. Como em ORD o tom que permeia a narrativa é o mítico, a dimensão religiosa estará conectada a essa estrutura, logo, a entidade maior, suprema, religiosa, será a Onça Caetana, que preserva em si o sentido de Divindade Sertaneja, “o animal sagrado do

Sertão”350, como já demonstramos no Folheto II deste trabalho. O primeiro parágrafo do romance cita “uma visagem fatídica, astrosa e agoureira”351 pelo Profeta Nazário Moura, o que já situa o leitor quanto ao universo pelo qual ele acaba de adentrar. E assim o romance vai revelando-se ao leitor, misturando o sagrado e o profano, sem nunca perder de vista o tom mítico que domina a dimensão religiosa: “(…) por cima da

grande traição que governa o Mundo, havia a aspiração a alguma coisa de terrível e de belo, a alguma coisa de duro, ensolarado e imortal – o sangue da Onça do Divino para o qual temos de caminhar, como signo que é, reluzente sangrento, de uma vida mais pura, mais verdadeira e mais cheia de fogo”352. Esta última frase uma vida mais pura,

mais verdadeira e mais cheia de fogo, representa a condução da vida de acordo com os

dogmas cristãos em sintonia com valores como a pureza e a verdade que levariam o homem à iluminação a alguma coisa de duro, ensolarado e imortal que é o sangue da

Onça do Divino para o qual temos de caminhar, como signo que é, reluzente sangrento.

O que mantém o tom mítico na descrição do fervor religioso. A dimensão religiosa é um valor em si mesmo que, em O Rei Degolado será sempre axiologizado positivamente.

Quaderna é quem será responsável por actualizar os valores religiosos, e o faz, principalmente, quando se dedica aos rituais sagrados da Pedra do Reino: “Assim, logo

eu me via pronto, como todos os elementos necessários ao culto do lajedo: os alforjes estavam cheios de paçoca, e o pichel, de vinho – o Vinho Tinto da Malhada que eu levava comumente para meus almoços, mas que, agora, estava acondicionado com o outro, o Vinho secreto, sagrado e proibido da Pedra do Reino. Estava assim preparado para celebrar minha Missa católico-sertaneja e negro-tapuia, sobre a pedra-de-ara dos meus rituais”353. Percebam aqui como todo o ritual litúrgico está representado: há o vinho, - se quisermos fazer um paralelo católico, o sangue de Cristo, ou dos mortos de Quaderna, o que faz mais sentido na história de ORD -; a paçoca que pode representar a matéria; o lajedo, simbolizando o altar; e as duas pedras do Reino para serem adoradas no culto aos seus ancestrais. No Sertão suassuniano, que não é muito distante do Sertão

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SUASSUNA, Ariano. ORD. Op. Cit. p. 90 351

SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 5. 352

SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 86. 353

real, a religião está em toda parte, mas para Quaderna ela é símbolo da sua existência ao ponto de comparar a sua vida com a via crucis santa “(…) a minha própria vida foi uma

‘via crucis’ de sangue e de sofrimento”354, essa afirmação também é um recurso que aproxima a nossa personagem do mundo sagrado, etéreo e nobre que predomina nos romances carolíngios, bem como no romanceiro nordestino e brasileiro dele derivados. A prática religiosa é algo que está muito mais misturado ao quotidiano sertanejo do que ao dia-a-dia citadino. No Sertão de ORD, assim como no universo configuracional carolíngio, não há ainda uma separação entre o poder religioso e o político, por isso a actuação religiosa muitas vezes é um acto político e Quaderna não consegue desvincular-se deste raciocínio, tanto que a sua compreensão da ordem religiosa passa, necessariamente, por esse viés, bem como pelo confronto entre Deus e o Demónio que representam o que há de pior e melhor no mundo espiritual e material, sem, contudo, ser maniqueísta. “Deus e o Demônio estão em toda parte – mas assumem faces diferentes

de acordo com os lugares em que são invocados. Na cidade, exceto entre os pobres, Deus é um sopro ténue, abstrato e sentimental, que não convence mais ninguém, no qual ninguém mais acredita; e o Diabo é apenas um burguês gordo, corrompido e corrutor, que bebe nos fins de semana para esquecer as maldades que cometeu nos outros dias. Pois bem: o Sertão desértico é do Deus terrível, as cidades são do Diabo gordo. As pessoas que, vendo a nossa terra seca, áspera, pobre e pedregosa, cingida por muralhas brutais de granito, duvidam, por isso, que o Sertão seja de Deus, não sabem nada acerca de Deus, que é muito maior e mais estranho do que se pensa. Deus é parecido com o Sertão, e é por isso que a Saga que ele escreveu – a História dos homens – é tão sangrenta, risadeira, áspera, desumana e desembandeirada. Isto não quer dizer, nobres Senhores e belas Damas, que o Diabo não viva, também aqui no Sertão. Mas o Diabo que vive aqui é a Besta-fera, o Demônio, a Besta-Bruzacã, o Arcanjo luciferino e trágico-epopéico, que desafiou o Outro e foi precipitado do Sol nas chagas trevosas da Noite, onde espera seu resgate, molhado de sangue e cravado de estrelas”355. Pedimos desculpas pela longa citação, mas acreditamos que representa com clareza e fidedignidade a dimensão religiosa presente em O Rei Degolado, revelando a mistura entre a religião e as lendas locais, principalmente, no momento em que Quaderna enumera os nomes que o Diabo possui no Sertão, bem como ao fazer a diferenciação entre o sentido de Deus e o Demónio no Sertão e na cidade, elege o Sertão

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SUASSUNA, Ariano. Ibidem. p. 72. 355

como uma terra divina duvidam, por isso, que o Sertão seja de Deus e completa Deus é

parecido com o Sertão. Este excerto também ratifica, na narrativa, o poder dessas

entidades religiosas (Deus e o Diabo) como Destinador e Anti-Destinador supremos, respectivamente. É a partir da noção de Deus e do Demónio que se manifesta, no romance, o sobrenatural, encarnado, principalmente, na figura da Onça Caetana, como pontuamos.

Contudo, o romance em estudo revela ainda mais uma surpresa em relação ao valor religioso, através da presença marcada pela ausência de Sinésio, o primo e sobrinho de Quaderna, o rapaz do Cavalo Branco, Príncipe da Bandeira do Divino. A personagem de Sinésio, como já registamos neste trabalho, representa na obra suassuniana o resgate da lenda de D. Sebastião, por ter desaparecido tão misteriosamente quanto o mitológico rei português. Sinésio centra na narrativa uma aura sagrada, e os seus apostos: o Alumioso; o rapaz do Cavalo Branco; Príncipe da Bandeira do Divino do Sertão, só intensificam o seu carácter mítico-religioso. É através da sua busca, empreendida por Quaderna, que o valor religioso será actualizado com mais veemência. A trajectória religiosa e mitológica de Sinésio anuncia-se já no seu nascimento: “(…) nascera na noite de 22 para 23 de Julho de 1910, o que viria a ser de

grande importância para a sua vida, por motivos astrológicos que explicarei depois. Seu batizado, porém, fora adiado para a tarde daquele dia 8 de Dezembro de 1911. Primeiro porque a Mãe dele, Joana, tivera uns pressentimentos ruins antes do parto e fizera uma promessa a Nossa Senhora da Conceição: se tudo saísse bem com o menino e com ela, Sinésio seria batizado no dia consagrado a esta Senhora, a Virgem da Concepção, Madre nossa e padroeira da Vila de Taperoá. (…) no ano de 1910 aparecera um cometa, ‘um grande sinal no Céu’, e meu Pai, Dom Pedro Justino Quaderna, impressionado com aquilo, pedira – uma vez que o menino, seu neto, ‘nascera em ano fatídico, de cometa’ – que, pelo menos, ele fosse batizado no ano seguinte, ‘já fora dessas influências maléficas dos astros e das conjunções malignas de planetas hostis’”356. Nesta passagem vale chamar a atenção para dois factores: o primeiro, diz respeito a toda carga mística com relação ao nascimento de Sinésio, o que por si só já demonstra que esta será uma personagem a quem deveremos ter atenção. Concomitantemente os acontecimentos ocorridos aquando do seu nascimento (pressentimentos ruins por parte da Mãe; promessa da Mãe a Nossa Senhora da Conceição para salvaguardar o filho; aparecimento de um cometa no Céu; o pedido do

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avô para que não baptizassem o neto ‘em ano fatídico, de cometa’), só tiveram um único objectivo: adiar o baptizado de Sinésio. Sabemos que o baptismo é o primeiro sacramento da Igreja, logo é através dele que há a iniciação religiosa. A manifestação de fenómenos naturais e a superstição humana adiam o baptizado de Sinésio que realizar- se-ia no dia do encontro marcado na Fazenda Onça Malhada. O livro acaba sem que o baptizado se realize, essa questão fica suspensa. O que podemos supor que não acontece porque talvez Sinésio já tenha iluminação suficiente, seja ele a própria luz, um mensageiro do Divino no Sertão; ou exactamente o contrário, a falta de unção o deixou susceptível às mazelas humanas o que culminou com o seu misterioso desaparecimento; ou ainda que tenha sido elevado ao Céu. Muitas questões existem e todas elas sem respostas e, talvez, seja proposital que o leitor não as tenha, pois isso mantém a discussão sobre a dimensão religiosa acesa.

Na última hipótese Suassuna ainda vai resolver essa questão quando publicar o último livro da sua trilogia que tinha (ou ainda tem, não se sabe) como título Sinésio, o

Alumioso, Príncipe da Bandeira do Divino do Sertão. O facto é que é dado adquirido,

para quem leu A Pedra do Reino, que Sinésio desaparece aos 20 anos de idade, à época do seu baptizado teria três anos, mas nada é referido quando ao seu baptismo, sabemos só que ele e Quaderna, isso também nos é facultado em ORD, foram companheiros e que “havia uma identificação secreta entre mim e Sinésio – a parte ensolarada de mim

mesmo (…). Enquanto esperava o depoimento, eu aproveitaria o sonho onipotente que o Vinho sagrado me dava para viver as aventuras sonhosas, solares e alumiosas de Sinésio (…). Isso implicava em limitar minhas ambições, transfundindo-me eu apenas em Sinésio. E foi o que fiz. Evoquei-o e invoquei-o, com os poderes de Rei e de Profeta que o vinho me dava. Logo, com aquela identidade de sangue que havia entre mim e ele, comecei a me virar em Sinésio, o Alumioso, e, assim, através dele, a possuir aquela quimera”357. Essa passagem demonstra-nos que a identificação secreta que Quaderna afirma ter com Sinésio realiza-se a nível espiritual, dentro da dimensão religiosa. Quaderna evoca e invoca a presença de Sinésio como a de uma divindade, a ponto de

[se] virar em Sinésio, o que poderia ser visto como uma incorporação do seu espírito à

semelhança do que acontece em alguns rituais religiosos nomeadamente os concernentes à doutrina Espírita, o que corrobora para acentuar a dimensão religiosa atribuída a Sinésio e mesmo a Quaderna, pois não podemos esquecer que Quaderna evoca a presença de Sinésio com os poderes de Rei e de Profeta que o vinho me dava.

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Logo, ele também está num patamar religioso, digamos um duplo patamar, já que é Rei e Profeta. Podemos também inferir que essa é uma experiência íntima com o religioso, uma espécie de transe onde Quaderna entra em contacto com o sublime, com a parte

ensolarada de mim mesmo e com as aventuras solares e alumiosas. Se prestarmos

atenção vemos que esses dois últimos períodos unem palavras que fazem parte de uma semântica da iluminação – ensolarada, solares, alumiosas – o que mais uma vez actualiza a dimensão religiosa, já que um dos preceitos religiosos é a iluminação e elevação do ser. Sinésio ainda pode ser visto como um ‘santo’, um homem que catalisa o sofrimento do grupo e propõe uma novo caminho de realização através da fé. “(…)

reviviam em meu sangue os amores legendários e sonhosos de Sinésio e Heliana, e o Inferno sertanejo e subterrâneo de onde ele surgiu, e o Purgatório de chamas que ele enfrentou, e a Furna paradisíaca da Malhada onde ele, ao que tudo indica, se uniu à Onça do Divino, bebendo o mosto vermelho da Granada que é o sonho consciente e inconsciente de todos nós”358. Este trecho deixa-nos a dica de que talvez Sinésio tenha mesmo morrido, tornando-se divindade ao que tudo indica, se uniu à Onça do Divino. O próprio percurso por onde passa também revela um caminho de purificação: inferno e purgatório para depois alcançar a Onça do Divino, o que actualiza e espraia a dimensão religiosa em ORD.

Um último ponto onde podemos constatar a presença da dimensão religiosa é na ambição de Quaderna em construir o seu Reino, o que pode ser visto dentro de uma perspectiva de redenção, enquanto espera pelo Reino Divino. A obra de Suassuna é impregnada por um catolicismo não ortodoxo e pela herança do sebastianismo, misturados e realçados com os elementos da mitologia sertaneja, como a Onça Caetana, por exemplo.

“Para mim, o problema fundamental, o problema do qual todos os outros dependem, é o de Deus – seja que nós o afirmemos, seja que o neguemos (…). É por isso – e também pelo fato de nunca eu me colocar à altura dos Profetas que venero – que meu assunto fundamental é e sempre foi um só: Deus e a traição que diariamente faço a ele, uma traição contínua e vergonhosa, infamante”359.