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Os folhetos de cordel têm a sua origem e constituição fincada no romanceiro tradicional ibérico, que se manifestou, no Brasil, modificado e adaptado às cores e à realidade brasileira, inicialmente, na dinâmica do folclore, através dos chamados romances de cantoria que atingiram a forma escrita e impressa, constituindo a literatura de cordel. Não é gratuita a escolha do folheto de cordel como bandeira do Movimento Armorial. A sua riqueza temática e expressão poética desperta o interesse do escritor erudito em explorar este material para a construção de suas obras. O folheto fornece matéria-prima para todas as áreas artísticas, oferece temas e esquemas narrativos que podem tanto ser usados em produções literárias como para a confecção de uma ópera, um balé. As cantorias que acompanham a declamação dos romances também podem ser utilizadas por ambas as áreas, bem como a sonoridade dos versos e o ritmo, permitem aos artistas armoriais experimentarem novas ‘leis’ e ‘regras’ de elaboração da expressão artística. As artes plásticas também encontram no folheto um campo frutífero para exploração através da xilogravura que ilustra os folhetos e que revela novas possibilidades para o pintor, entretanto é ao espírito do romanceiro que Suassuna chama mais atenção. Este manifesta-se nos folhetos através dos temas abordados que contam aventuras de cavaleiros, guerras, cortejos e seres encantados, adaptados à realidade sócio-cultural do Nordeste, actualizados dos romances antigos. A descoberta do romanceiro e, logo, do seu espírito mágico, para Suassuna, surge como fonte de criação e como solução estética uma vez que o romanceiro situa-se na encruzilhada de influências e componentes por conta da sua origem ibérica e “quem diz ibérico diz

mouro e ladino – ou judaico – como também recorda imediatamente a profunda influência da cultura norte-africana na Península Ibérica”55. Temos também que ter atenção que Suassuna, quando fala em romanceiro, não se limita à literatura e estende-se para as danças dramáticas e festas que condicionam a sua transmissão, tendo sempre a obra como o único ponto de partida.

Em geral, os folhetos têm uma estrutura narrativa marcada, com situações e personagens típicas, encaixadas em um segmento narrativo muito bem encadeado que deixa nítido o seu funcionamento, o que, de certa forma, facilita a transposição ou reescritura do texto popular para o texto letrado-armorial feita por um artista culto; assim trabalham os armorialistas, sejam eles literatos, músicos, coreógrafos. O folheto concede e cede matéria-prima e temas para que a arte armorial manifeste-se. Os artistas

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armoriais apropriam-se dos folhetos e criam as suas obras. Toda a obra suassuniana obedece esse recurso, do romance ao teatro, onde a arte armorial aparece na sua plenitude. Desde os entremezes, inspirados nas peças para mamulengos e, posteriormente incoporados como actos às suas peças, reelaborados ou não, Suassuna inpira-se nos folhetos para compor e desenvolver os temas das suas narrativas. Um bom exemplo é o Auto da Compadecida, onde o próprio autor assume a genealogia do texto e confessa que se utilizou de quatro cordéis para escrever a peça. São eles: O Castigo da

Soberba, de Anselmo Vieira de Souza; O Enterro do Cachorro, de Leandro Gomes de

Barros; A História do Cavalo que Defecava Dinheiro, anónimo e A Peleja da Alma, de Silvino Pirauá de Lima. Por outro lado, em 1953, Suassuna escreve um entremez também intitulado O Castigo da Soberba, o que pode ser considerado como uma etapa intermediária do processo de transposição do texto popular. Esses folhetos foram aproveitados no Auto da Compadecida da seguinte forma: O Castigo da Soberba e A

Peleja da Alma referem-se ao último acto da peça; A História do Cavalo que Defecava Dinheiro é o tema do segundo acto, sendo que o cavalo é substituído por um gato e, por

fim, O Enterro do Cachorro que foi o mote para a escritura do primeiro acto. Em entrevista a Revista Vintém Ariano Suassuna dá um depoimento revelador sobre a influência deste cordel em específico:

“No circo eu conheci também um palhaço que se chamava Gregório, que me marcou muito. Quando eu tomei posse da Academia Brasileira de Letras, em 1990, fiz um elogio a ele, como uma das pessoas que me influenciaram. Eu tenho para mim que essas coisas, junto com os folhetos de cordel, foram muito importantes na minha formação de dramaturgo. Quando eu resolvi depois ser um escritor de teatro, eu não queria imitar nem o teatro alemão, nem o francês, nem o americano, aí foi que eu parti para a literatura de cordel, para ver se por ali eu podia me inspirar. Quando eu conheci o folheto O Enterro do Cachorro eu vi que estava com o Auto da Compadecida na mão, isto é, o primeiro acto do Auto da Compadecida. Eu só fiz acrescentar o sacristão e escrever mais alguma coisa. Pois bem, agora você veja, essa história, depois, quando a peça foi encenada na França e na Espanha, eu descobri, surpreso, que um grande escritor francês do século XVIII tinha usado uma versão parecida, que foi Le Sage na obra Gil Blas de Santillana, que é uma novela picaresca. E outros escritores espanhóis

tinham escrito também essa história, que era do século V e veio do norte da África, passou pela Península Ibérica e aí passou para cá, e foi onde me baseei”.56

Se compararmos os cordéis citados ao texto final da Compadecida perceberemos facilmente o aproveitamento. Na literatura armorial, ao confrontarmos um texto letrado com o seu originário popular, a reescritura pode ser visualizada com alguma facilidade, desde que se tenha a informação e o acesso ao proto texto. A reorganização textual do texto popular procura salvaguardar o texto base, como prova de sua filiação à matéria popular. O que os armorialistas pretendem é uma recriação desta matéria, a partir de práticas artísticas realizadas de forma individual ou em grupo, transformando a arte popular em arte erudita e o folheto constitui-se como ponto de encontro para essas experimentações.