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Folheto III “Do Riso-a-Cavalo ao Galope do Sonho”

III.IV Os romances carolíngios chegam ao Brasil

De vultos históricos a personagens de ficção, Carlos Magno e os seus Pares de França mantêm-se vivos, na memória daqueles que conhecem

e transmitem seus feitos históricos através do romanceiro, principalmente na península ibérica e nos países colonizados por Portugal e Espanha, com destaque para o Brasil, para onde, a partir de agora, vamos direccionar a nossa atenção para o desenvolvimento deste trabalho. Em terras brasileiras, o romanceiro ibérico, inicialmente, manifestou-se na dinâmica do folclore, concebendo assim, os chamados romances de cantoria264, que, em um segundo momento, atingiram a forma

escrita e impressa constituindo os romances da literatura de cordel. Assim como as histórias carolíngias, no século X, interessavam à camada popular da sociedade, sobretudo no que diz respeito à sua componente rural e agrária, no Brasil, também esta será a forma de transmissão literária mais comum entre o povo brasileiro, principalmente nas comunidades rurais e sertanejas. Os romances carolíngios, rapidamente, tornaram-se conhecidos pelo povo que continua, ainda hoje, a cantar os romances ibéricos, o que garante a supervivência265 do universo configuracional carolíngio. Essas histórias são, sobretudo, cantadas nas feiras e fazendas sertanejas do Nordeste brasileiro, e têm o interesse centrado nas figuras de três dos doze Pares de França, a saber: Oliveiros, Roldão e Reinaldos, bem como no próprio Carlos Magno. É certo que estes romances, lendas e cantigas chegaram ao Brasil pelas bocas dos colonizadores portugueses que traziam na sua bagagem o romanceiro carolíngio. Estes romances, em uma primeira instância, foram transmitidos oralmente, entretanto acredita-se que foi de facto através da História de Carlos Magno e dos Doze Pares de

França, cuja primeira parte foi publicada em Lisboa em 1728266, a partir de uma tradução do castelhano feita por Jerónimo Moreira de Carvalho, que a história do Imperador dos Francos disseminou-se por terras brasileiras, onde foi editado no século

264

Ver no Folheto I deste trabalho: página 5 nota nº 10, definição de repente; página 24, romances de cantoria.

265

Em linha com o pensamento do professor João David Pinto-Correia (Op. Cit. p. 13), que por seu turno, extrai o conceito de Rafaelle Corso, bem como de R. Menéndez Pidal, neste estudo usaremos a palavra ‘supervivência’, em detrimento de ‘sobrevivência’.

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A essa primeira parte, sucederam-se uma segunda em 1737, publicadas, ambas, em 1750, às quais seria ainda acrescentada uma terceira parte que tratava não mais um dos Pares, mas do peninsular Bernardo del Cáprio, publicada em Lisboa por Alexandre Gomes Flaviense em 1745. Estas três partes viriam depois a ser editadas em conjunto. Não se sabe ao certo em que data, mas em 1799 a terceira parte já se encontrava integrada ao conjunto. Fonte pesquisada. PINTO-CORREIA, João David. Op. Cit. vol. 1. p.179.

Capa Folheto de João Melchíades. Imagem da Pedra do Reino. p. 66

XIX. Segundo o escritor e ensaísta português, Teófilo Braga267, em fins do século XIX, este foi o livro mais lido e reproduzido em Portugal, sempre merecendo atenção pelo público das comunidades rurais. Assertiva ratificada do outro lado do Atlântico por Luís da Câmara Cascudo, escritor e folclorista brasileiro, que informa: “A História de Carlos

Magno e dos Doze Pares de França foi, até poucos anos, o livro mais conhecido pelo

povo brasileiro do interior. De escassa popularidade nos grandes centros urbanos, mantinha seu domínio nas fazendas de gado, engenhos de açúcar, residências de praia, sendo, às vezes, o único exemplar impresso existente em casa. Raríssima no sertão seria a casa sem A História de Carlos Magno268, nas velhas edições portuguesas. Nenhum sertanejo ignorava as façanhas dos Pares ou a imponência do Imperador de barba florida (…). Em Currais Novos ou Acarí, um cego, cantando o agradecimento da esmola na feira, desejou-me coragem como Deus deu a Roldão”269.

A História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França é uma obra muito

extensa, com cerca de cento e cinquenta e sete capítulos que não chegam a realizar o que se promete no título, ou seja, a história ou a biografia do Imperador dos Francos e dos seus paladinos. Ao contrário disto, o livro apresenta uma conjunção de episódios, intrigas, acontecimentos, todo um enredo, ou se preferirmos, histórias, sem a preocupação de um encadeamento cronológico. Por conta da sua extensão e baseadas principalmente nos Livros 2 e 4 da sua Primeira Parte270, originaram-se condensações,

267

BRAGA, Teófilo apud PINTO-CORREIA, João David. Op. Cit. vol. 1. p. 179. 268

Quaderna, em A Pedra do Reino (Op. Cit. p. 375), cita o folheto: “- Sou sim senhor! Sou da Esquerda

Régia, ou se Vossa Excelência prefere, um Monarquista da Esquerda! – Por que essa cotnradição? – Porque acho Monarquia bonito, com aquelas Coroas, tronos, cetros, Brasões, desfiles a cavalo, bandeiras, punhais, cavaleiros e Princesas, como no folheto de Carlos Magno e os Doze Pares de França!”

269

CASCUDO, Luís da Câmara apud PINTO-CORREIA, João David. Os Romances Carolíngios da

Tradição Oral Portuguesa. Op. Cit. vol. 1. p. 181.

270

Como já dissemos, A História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, é composta por três partes, entretanto só as duas primeiras dizem respeito ao conteúdo carolíngio, a última é de matéria peninsular, logo só nos interessa as duas primeiras. A primeira parte é composta por cinco livros e a segunda por quatro. Resumidamente, o Livro 1 da primeira parte diz respeito às origens da monarquia franca até Carlos Magno, seu retrato e viagem a Jerusalém, donde o Imperador trouxe as Santas Relíquias; o Livro 2 é considerado o mais importante por transmitir a matéria que mais tarde será aproveitada pela literatura popular tradicionalista portuguesa. Relata as guerras entre os exércitos franco e turco, com destaque para a luta entre Oliveiros e Ferrabrás e a conversão deste último ao cristianismo, bem como a prisão de Oliveiros e mais quatro Pares em um cárcere escuro; o Livro 3 trata da lenda de Santiago de Compostela, desde o sonho do Imperador até a construção da Igreja de São Tiago, bem como dos novos combates com turcos que tinham conquistado lugares cristãos; o Livro 4 ocupa-se da morte dos Doze Pares de França, com destaque para a de Roldão, Oliveiros e Galalão, que teria traído o Imperador dos Francos. Fala também do retorno de Carlos Magno à França e à Alemanha; o Livro 5 aborda o nascimento, infância e juventude de Roldão. E aqui constata-se a primeira incongruência, se assim quisermos chamar, da História de Carlos Magno que, como dissemos, não obedece a uma ordem cronológica, pois, se no Livro 4 Roldão já havia morrido, como é que no Livro 5 poderíamos falar da sua infância? Para isso só nos serve a explicação de que ao ser composta por Livros, essa obra permite que a leitura seja ordenada pelo leitor. Cada livro, torna-se, assim, independente do outro. Na segunda parte os

adaptações, resumos e “estórias” que estariam na base da produção de textos orais e/ou escritos, os autos e folhetos narrativos em prosa ou em verso que adoptaram como suas personagens os heróis carolíngios dos séculos VIII e IX. No amplo território brasileiro, destacam-se algumas composições inspiradas na História de Carlos Magno e dos Doze

Pares de França, como, por exemplo, os folhetos dedicados a Oliveiros, da autoria de

Leandro Gomes de Barros271, Batalha de Oliveiros com Ferrabraz e A Prisão de

Oliveiros, que são, ambas, adaptações inspiradas no Livro 2 da primeira parte de A História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, traduzido por Jerónimo

Moreira de Carvalho. Assim também o é o folheto de outro grande cordelista brasileiro, António Eugénio da Silva, O Cavaleiro Roldão ou História Completa do Cavaleiro

Roldão, que se inspira no Livro 5 da primeira parte. Há ainda O Casamento do Príncipe Roldão com a Princesa Angélica, de João Melquíades Fereira272, onde sintetiza em verso os quatro livros da segunda parte da História de Carlos Magno e dos Doze Pares

de França; outro folheto alude a Reinaldos, um dos paladinos de Carlos Magno, é a Batalha de Carlos Magno e dos Doze Pares de França com Malaco, rei de Fez,

atribuído a José Bernardo da Silva, que em cento e dezanove estrofes narra as desventuras de Reinaldos por conta da falta da desconfiança que o Imperador dos Francos depositava sobre si, e as suas demonstrações de bravura e fidelidade para com Carlos Magno. Por fim, mais dois folhetos merecem menção: primeiro, A História de

Carlos Magno e dos Doze Pares de França, de João Lopes Freire, uma condensação de

alguns dos livros da primeira parte de A História de Carlos Magno e dos Doze Pares de

França, de Jerónimo Moreira de Carvalho; o último que vamos citar é A Morte dos Doze Pares de França, cujo autor não explícito deve ser Marcos Sampaio273. Este três primeiros livros formam um conjunto que pode ser considerado como as novas aventuras de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Assim, no Livro 1, os Pares têm de vencer o gigante, sobretudo Roldão; no Livro 2, Carlos Magno, não socorrendo Roldão, entra triunfante em Toledo, vence Abderramã; no Livro 3, a acção ocorre em Córdova, Roldão e Oliveiros matam dois gigantes terrríveis, por fim, o Livro 4 leva-nos até a Itália, onde Carlos Magno vai ajudar o Pontífice contra Aliadús. O Imperador dos Francos volta à Espanha onde vence Abderramã e o livro acaba com a narração da conversão de Galafe, Angélica e Galiana e dos casamentos de Roldão e Carlos Magno. Fonte pesquisada: PINTO-CORREIA, João David. Op. Cit. vol. 1. p. 182-183.

271

Ver nota nº 27. 272

É o mesmo João Melchíades, mestre de Quaderna na sua Escola de Cantoria, citado por Ariano Suassuna na PDR, como também no Folheto II deste trabalho, na página 90. Conhecido pela alcunha de o

cantor da Borborema, ou, como prefere Quaderna, o cantador da Borborema (SUASSUNA, Ariano.

PDR. Op. Cit. p. 64). João Melquíades nasceu em Bananeiras, na Paraíba a 7 de Setembro de 1889 e morreu em João Pessoa, Paraíba, a 10 de Dezembro de 1933. Foi também militar e participou na Guerra de Canudos em 1897.

273

Dizemos que deve ser Marcos Samapio o autor, pois o seu nome consta em acróstico nas últimas estrofes. Esta informação, bem como o nome dos folhetos de cordel citados neste parágrafo foram retirados do livro de PINTO-CORREIA, João David. Op. Cit. vol. 1. p. 195-201.

folheto deriva do Livro IV da primeira parte da História de Carlos Magno e dos Doze

Pares de França, de Moreira de Carvalho, com algum conhecimento da Chanson de Roland ou de uma das suas adaptações.

À semelhança do que ocorreu com as cantigas de gesta que se fragmentaram originando os romances carolíngios, estes, já no espaço da cultura e literaturas brasileiras, por sua vez, também se vão fragmentar em composições muito mais curtas destinadas à leitura, à representação, ao canto, aos jogos, adaptadas à encenação de festas populares, ao folclore e à cultura, principalmente, nordestina e sertaneja do Brasil. Contudo, há de se chamar a atenção para o facto de que as histórias carolíngias prevalecem, sobretudo, em verso e em composições para serem cantadas pelos cantadores, violeiros ou repentistas, os poetas populares, assim como acontecia com os romances tradicionais de origem ibérica que eram considerados narrativas cantadas com acompanhamento musical274. Estas cantorias, ou cantigas, mencionam sempre os heróis da épica francesa quando há a necessidade de aludir a personagens exemplares de coragem, fidelidade e dotados de valor guerreiro, ou quando se fala em traição, astúcia, doutrinas religiosas, aí não mais inspirados apenas nos heróis francos, mas no universo configuracional carolíngio como um todo. Os folhetos de Cordel brasileiros são considerados como o último privilegiado domínio onde o universo carolíngio tem podido transmitir-se e perpetuar-se. São muitas as versões dos romances carolíngios onde encontramos, praticamente, uma ocorrência para cada romance do ciclo, entretanto não nos interessa neste trabalho fazer um levantamento ou uma abordagem destes romances. A nossa intenção é tão-somente pontuar a sua existência, pois será a partir da presença do romanceiro carolíngio na literatura tradicional brasileira que o autor em estudo nesta dissertação, Ariano Suassuna, vai construir boa parte da estrutura narrativa e semântica de O Rei Degolado. Válido é dizer que não só os romances carolíngios encontram eco na literatura popular brasileira, o romanceiro ibérico como um todo está representado, escritores e pesquisadores já fizeram o registo de ocorrências dos

romances novelescos, como Bela Infanta, um dos mais comuns no território brasileiro; A Delgadinha, La Condessa, bem como outros de assuntos vários como a Nau Catarineta, que também afigura-se como um dos mais comuns, e a Donzela Guerreira,

dentre outros275. Como já dissemos no Folheto I deste trabalho, o romanceiro ibérico,

274

Acreditamos que este assunto foi devidamente tratado no Folheto I deste trabalho. 275

Para quem quiser aprofundar-se neste assunto indicamos: CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do

Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1954.

com o Movimento Armorial, passa a ser revisitado pela literatura institucionalizada, propondo a todo o conteúdo de matéria carolíngia da tradição portuguesa, um percurso inverso à medida que é aproveitado pela literatura institucionalizada - fonte inicial da história carolíngia - que se utiliza dos elementos fornecidos em sua narrativa, alterando- os profundamente. É exactamente o que faz Ariano Suassuna na sua obra – inserida na literatura institucionalizada -, quando se beneficia do material da tradição oral e popular para a construção da sua narrativa276.