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Folheto III “Do Riso-a-Cavalo ao Galope do Sonho”

III.V Supervivência dos romances carolíngios

Em alguns momentos durante este capítulo, citamos que a transmissão e perpetuação dos romances carolíngios dá-se, sobretudo, nas comunidades populares, e, no caso do Brasil, principalmente, no sertão nordestino. O que parece ter-se tornado uma norma para esse romanceiro, visto que desde as suas primeiras ocorrências e constituição, ainda em solo europeu, era na camada mais popular da sociedade, no seu elemento rural e agrário que os romances encontravam terreno fértil para a sua criação e reprodução. O porquê disto é uma questão que interroga a todos os pesquisadores que se debruçam sobre o estudo do romanceiro. Esta é uma demanda complexa de se responder, variados são os factores que corroboraram e corroboram para tal. Vamos tentar agora, elucidar os com os quais concordamos. Das respostas já aventadas, se pensarmos na origem europeia, parece-nos lícito o facto destas composições dramáticas conterem as condições para serem aceitas por uma comunidade rural, a saber: o carácter polémico da intriga entre cristãos e infiéis e o enredo sentimental. No Brasil, a predominância da oralidade na transmissão da informação no meio natural e social do Sertão talvez seja particularmente favorável à criação de lendas, especialmente, as lendas heróicas. É a dinâmica do “boca-ouvido”, na qual o folheto vai desempenhar um importante papel no processo de elaboração do mito ao articular dois universos: o oral e o escrito. Para registar os relatos transmitidos oralmente, o poeta popular ou o escritor ALCOFORADO, Doralice e ALBÁN, Maria Del Rosário Soares. Romanceiro ibérico na Bahia. Salvador: Livraria Universitária, 1996.

NASCIMENTO, Bráulio. Romanceiro Tradicional. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1974.

_____________________ Estudos sobre o Romanceiro Tradicional. João Pessoa: Editora Universitária,

2004.

ALENCAR, José de. Nosso Cancioneiro. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1962. ROMERO, Sílvio. Cantos Populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. 276

Idelette Muzart Fonseca dos Santos em seu livro Em Demanda da Poética Popular: Ariano Suassuna e

o Movimento Armorial. São Paulo: Editora da Unicamp, 1999. Como o próprio nome indica, dedica-se

exclusiva e exaustivamente ao estudo da obra de Ariano Suassuna, bem como faz um levantamento do romanceiro ibérico em sua obra, principalmente no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue

da literatura institucionalizada que sobre o tema se debruça, submete a narrativa oral a uma estrutura narrativa herdada da tradição, o que pouco a pouco confere ao texto a chancela da tradição. O folheto assim consegue integrar a lenda à realidade quotidiana do sertanejo. Um outro ponto que acreditamos ser fulcral para a assimilação dos romances carolíngios pelo povo sertanejo é a questão destes serem romances de cavalaria, o que funciona como um facilitador em direcção à identificação deste povo com os romances, uma vez que, no Sertão, o cavalo tem um importante papel para o desenvolvimento da sociedade: como objecto de trabalho (o vaqueiro, por exemplo); como transporte e como prestígio pessoal, participa de cavalgadas, desfiles e possui nome próprio. Nos romances tradicionais, o cavalo, inclusive, associado ao dono, pode até actuar sozinho, basta que para isso lembremos do romance Morte de Dom Beltrão, onde o cavalo agonizante, ao ser encontrado pelo pai de Dom Beltrão, narra as circunstâncias da morte de seu dono e exime-se da culpa277. Em O Rei Degolado, Ariano Suassuna, através de Quaderna, dá tamanha importância ao seu cavalo, bem como aos dos que estão à sua volta, que este passa a ser uma personagem da obra. Dedicaremos uma leitura um pouco mais pormenorizada sobre este assunto ainda no decorrer deste trabalho. Os romances de cavalaria ainda encontram no Nordeste brasileiro um outro correspondente adaptado à sua realidade, o cangaço, que, guardadas as devidas diferenças, seria o par correspondente ao cavaleiro medieval. Essa transposição da cavalaria para o cangaço, aproxima o sertanejo do romanceiro carolíngio e condiciona a visão de mundo do poeta popular, ao mostrar-lhe que o quotidiano e o maravilhoso cavaleiresco fazem parte do mesmo universo.

Outra questão que acreditamos ter colaborado para a permanência e transmissão dos romances carolíngios nas comunidades rurais, diz respeito ao facto destas sociedades - e isso tanto aplica-se à medieval europeia, quanto à sertaneja, nordestina e brasileira -, terem uma condição geográfica afastada dos centros urbanos, o que possibilita conservarem a tradição, no sentido de não estarem susceptíveis a modismos. No caso específico brasileiro, lembremos de como foi tardio o desbravamento do interior do país. O certo é que sendo caracterizadas por uma densidade secular, os romances carolíngios viram garantida a sua aceitação por parte dessas comunidades. Já se vão treze séculos desde a existência de Carlos Magno, o que nos permite a hipótese

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“- Não me tornes essa culpa,/ Que ma não podes tornar:/ Três vezes o retirei/ Três vezes para o salvar;/ Três me deu de espora e rédea/ Co’a sanha de pelejar./ Três vezes me apertou cilhas./ Me alargou o peitoral…/A terceira fui a terra/ Desta ferida mortal.” Versão de Trás-os-Montes, segundo

Garret apud, PINTO-CORREIA, João David. Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa. Lisboa: Edições Duarte Reis, 2003. p. 172.

de que para além da intriga, do enredo amoroso, da história, da geografia e, logo, da identificação que essas questões possam ter causado nessas sociedades, algo mais terá contribuído para a supervivência dos romances carolíngios. Esse ‘algo mais’, para nós, em linha com a proposta do professor e pesquisador João David Pinto-Correia278, está representado na actualização dos valores semanticamente investidos nos romances tradicionais. Valores esses considerados fundamentais para as comunidades tanto do século XV e XVI, como ainda para as do século XXI.

III.VI – Valores carolíngios semanticamente investidos no romance