• Nenhum resultado encontrado

Vou me dirigir à companheira Lúcia Neves, lembrando que, de certa forma, ela

já comentou um pouco do que perguntaremos (principalmente em relação à pri-meira questão). Mas a intenção do Laboratório de Educação Profissional em Aten -ção à Saúde (Laborat), que foi responsável pela leitura do texto e pela elabora-

ção das perguntas, foi tentar dialogar com os objetivos finais do seminário, que é

in-clusive a construção de um relatório no limite propositivo de algumas possibilida- des de ação diante das questões que, desde o início desse seminário, estamos procurando enfrentar.

A primeira questão é: no texto, você se refere à concepção de Gramsci de

intelectual orgânico, ressaltando que “o modo de ser intelectual caracteriza-se por inserção ativa na vida prática como construtor, organizador e persuasor permanente, sendo que este, quer para conservação, quer para transformação, deve se constituir simultaneamente em especialista e dirigente”. Tendo por base esse pensamento, con-siderando as condições históricas contemporâneas que você também descreveu no texto e, principalmente, quanto ao papel educativo desempenhado pelo Estado na

sociedade capitalista hoje, quais seriam os principais desafios para esses intelectuais orgânicos numa escola pública de educação profissional em saúde que se pretende

exatamente ser contra-hegemônica?

A segunda interposição é: a educação profissional, sobre a qual estamos

refle-tindo desde o início, desenvolve-se no âmbito da interface de políticas públicas (que

é algo que está ficando cada vez mais visível com o discurso de todos os autores que

antecederam essa mesa de educação e saúde). Em torno dessas políticas,

reuniram-se projetos utópicos de caráter transformador ao ponto de projetarem no campo dessas políticas a possibilidade de se tornarem vetores de um projeto societário de

mudança com dimensões generalizantes. Diferentemente da educação, parece-nos que a saúde viu materializada em forma de lei e de política de Estado a proposta do movimento social que nas décadas de 1970 e 1980 reuniu vários segmentos da socie-dade brasileira, como trabalhadores, políticos, intelectuais e usuários do setor saúde, o que de uma forma representa o campo da Reforma Sanitária ou o campo de atores, se pudéssemos utilizar essa expressão. Você poderia comentar os principais dilemas

e contradições presentes no momento em que um projeto de sociedade com essas

pretensões de utopia torna-se uma política de Estado e não uma política de governo, como é o caso do Sistema Único de Saúde? E que possibilidade ou condições de

transformação você enxerga nessa transposição de um projeto em luta para a for

190 |

A última questão é que no texto você menciona três movimentos fundamen

-tais para a implementação do subsistema de educação tecnológica e profissional.

O primeiro movimento é a recuperação da educação tecnológica de nível médio, o segundo é a integração do ramo tecnológico ao sistema de educação superior e,

finalmente, a intenção de dar maior organicidade sob direção do Estado à política de formação técnica profissional privatista e fragmentária. Diante dessa problemática, como você analisa o desenvolvimento da educação profissional no Brasil hoje, à luz

da nossa luta pela politecnia?

LÚCIA NEVES:

A primeira pergunta fala sobre quais seriam os principais desafios dos intelectuais orgânicos numa escola de educação profissional em saúde que se pretende con -tra-hegemônica. Pensei muito e queria pedir licença aos colegas que formularam a questão para entrar no clima do próprio seminário e, em lugar de falar “educação

profissional em saúde”, dizer “formação profissional em saúde’. Acho que a

su-gestão é estudar para averiguar se essa diferença é só semântica ou se é uma questão

de fundo denominar educação profissional ou formação profissional.

Começaria a responder pelo próprio conceito de intelectual de Gramsci. Para

Gramsci, o intelectual não é autônomo (essa talvez seja a razão que mais me encanta no pensamento de Gramsci). Nas mais diversas sociedades e mais especificamente

nas sociedades capitalistas contemporâneas, os intelectuais têm uma função política importante de dar organicidade e coerência às ideias e práticas das classes sociais dominantes. São os prepostos das classes dominantes no desempenho de funções subalternas nas superestruturas estatais: sociedade política e sociedade civil, logo, o in-telectual orgânico pode ser conservador. Esse inin-telectual teria nesta escola pública, que

se pretende contra-hegemônica, um papel importante de reproduzir o ideário oficial e

de tentar inviabilizar as iniciativas educacionais de transformação político-pedagógica. Gramsci, no entanto, como um revolucionário, como líder político socialista, estava preocupado com a possibilidade de formação, mesmo no capitalismo, de intelectuais

orgânicos do conjunto da classe trabalhadora. A prática contra-hegemônica não se

tringe a ela e a nós. Então, recorremos ao conceito de hegemonia. Hegemonia diz

res-peito à grande política, ao projeto de sociedade e de sociabilidade. O intelectual

contra-hegemônico é aquele que tem como horizonte estratégico a sociedade socialista.

Faço questão de dizer isso porque, quando eu era militante política na Univer -sidade Federal de Pernambuco, havia colegas que eram revolucionários na escolha do prefeito, mas conservadores na escolha do reitor, para não mexer no seu dia a dia.

Ser um intelectual contra-hegemônico não significa ter alguma prática especial mais

moderna ou menos moderna dentro da escola ou utilizar um método pedagógico

mais moderno, mas é ser consciente de um projeto de classe.

Na atual conjuntura brasileira, quando o novo imperialismo seduz inúmeros

intelectuais orgânicos da contra-hegemonia, creio que um ponto fundamental para o intelectual contra-hegemônico dentro da escola que se pretende contra-hegemônica é o estudo profundo da história do país. Por que digo isso? Porque acabo de conhecer um pesquisador da Fundação Getúlio Vargas que está descobrindo que o Brasil será o país mais feliz do mundo. Ele apresenta dados estatísticos, quantitativos. Para que

não sejamos pesquisadores da nossa felicidade eterna, temos de estudar a história do país para nos lembrarmos de que um dia tivemos escravos, ficamos livres da es -cravidão há bem pouco tempo, vivemos um século de duas ditaduras, militar e civil... É preciso que possamos entender o país para podermos traçar diretrizes realistas

para uma possibilidade de transformação social. A outra coisa é muito pequena, mas

é tão importante quanto. É que procuremos na nossa prática pedagógica diária ter

como base os objetivos político-pedagógicos transformadores, mas que essa prática

não se constitua de palavras vazias mas, de atos consequentes.

A segunda pergunta diz: que possibilidades ou condições de transformação

você vislumbra nessa situação difícil em que vivemos? Vendo da perspectiva de uma instituição de pesquisa que é a Fiocruz, a primeira coisa que o pesquisador deve fazer

nesse momento é admitir que há dilemas e contradições nas políticas sociais ofici -ais. É um bom ponto de partida. Não é escondendo as falhas existentes que vamos

avançar na construção de um SUS justo, da maneira pela qual lutamos na Constitui-ção de 1988. É preciso separar o ato de amor da pesquisa histórica. Aliás, somente

a admissão das falhas existentes poderá levar à solução dos problemas que de fato existem. Não é por acaso que um dos temas centrais da campanha eleitoral do Rio de

Janeiro hoje é a criação de Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs). Estou muito assustada. Primeiro porque me parece que a educação hoje não é mais um problema;

nenhum candidato apresenta alternativas. Segundo porque todos os candidatos

apre-sentam a UPA como solução para a saúde pública. Isso pode estar indicando que está

havendo realmente problema no modelo existente de saúde e precisamos pesquisar.

Uma condição essencial para a transformação é, sem dúvida, a realização de

pesquisas bem fundamentadas teoricamente e com base empírica que deem conta de situar a realidade na sua totalidade. É preciso pesquisar sem medo de desagradar os governantes. O outro ponto fundamental é tirar as políticas sociais de seu

isola-mento, ou seja, estudar a saúde, a educação e o trabalho. Essas políticas fazem parte de um conjunto maior, que são as políticas sociais que, por sua vez, são políticas de Estado. Isso não significa tirar de cada política social a sua especificidade, mas, ao contrário, é ajudar a entender a especificidade num conjunto mais amplo das ativi -dades educadoras do Estado.

A terceira pergunta: como você analisaria o desenvolvimento da formação profissional no Brasil de hoje à luz das ideias da politecnia? Vou começar a responder

192 |

a essa questão fazendo propaganda do nosso maravilhoso Dicionário de Educação Profis -sional em Saúde. Por que isso? Porque quero responder à terceira pergunta iniciando

pela definição do que é educação politécnica.

Na página 112 do nosso dicionário, é dito que a educação politécnica pode ser vista como a concepção marxista de educação. Para Marx, a educação compõe-se de três elementos: a educação intelectual, a educação corporal e a educação poli- técnica. Esses elementos evidenciam a direção multilateral da educação preconizada por Marx. Com base nesses princípios, Gramsci desenvolveu sua concepção de escola unitária. No nosso modo de entender, não há uma discrepância do que seria uma edu-

cação politécnica e o que seria uma escola unitária, embora haja autores admitindo que exista entre as duas diferenças profundas. Acho que se trata da mesma concep -ção marxista de educa-ção. Dito isso, vamos a nossa realidade... Qualquer educador

atento observa que a proposta de massificação da educação é oposta a essa noção, mas há um consenso amplo em torno desta última. Até mesmo certos “educadores

progressistas” difundem essa nova proposta educacional. Isto porque, no Brasil, em

vez de se usar o termo “massificação”, utiliza-se o termo “democratização”, denomi -nação tão cara para uma formação social escravocrata e autoritária como a nossa.

Somente em um documento brasileiro o termo “massificação” começa a ser usado: no texto do projeto de lei da reforma universitária ou da educação superior cujo

espírito é de uma educação terciária. Dito isso, se quisermos aplicar os conceitos de educação politécnica numa escola pública na atualidade, precisamos estudar o

marxismo a fundo, já que a politecnia é um conceito marxista de educação.

Hobsbawm, em seu livro Tempos Interessantes, fala que o momento que estamos

vivendo hoje pode ser chamado de “segunda Guerra Fria”. Ele subdivide a primeira

Guerra Fria em dois momentos: o de uma Guerra Fria coercitiva até aproximada-mente 1970 e o de uma Guerra Fria consensual, que se inicia em torno de 1970 e se estende até a queda do muro de Berlim. Podemos chamar esse momento consensual de momento do Estado de Bem-Estar Social. Mas ele diz também que estamos vi-vendo agora um momento de uma nova Guerra Fria muito interessante, que não é mais contra o comunismo, e sim contra o marxismo. O papel a ser desempenhado

por aqueles que querem uma formação politécnica hoje é tentar brecar essa nova

Guerra Fria, que é exatamente contra o marxismo.

O aspecto que me chama a atenção é a necessidade de situar os preceitos marxianos e gramscianos na realidade concreta, porque estamos passando por

pro-fundas mudanças. A leitura de Marx ou do marxismo não pode ser feita como se

fosse a leitura de uma Bíblia, em termos de fé; ela deve ser feita em termos de

ciên-cia. Outro aspecto a considerar, quando se trata de construir hoje uma proposta

contra-hegemônica, é privilegiar sua discussão coletiva no âmbito da sociedade civil.

O projeto oficial se baseia no fortalecimento da sociedade civil para a formação e

consolidação de um capital humano, de um capital social e de um capital cultural.

Esse espaço social tem papel estratégico para a conservação social. O projeto de massificação da educação tem na implementação dessa pedagogia da hegemonia um dos seus pilares. Por fim, creio que incluir nas salas de aula esses debates pode ser

uma estratégia fundamental de educação politécnica.