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Vou pegar aqui a pergunta do Gustavo sobre a saúde global versus saúde internacional. Na verdade, a saúde pública tem origem nessa questão do processo de acumulação do capital no combate de certas doenças, exportação de certas tecnologias. Nós estamos aqui na casa de Oswaldo Cruz, que saneou os portos para um capitalismo que era exportador e necessitava disso. Então, isso não é novidade. Talvez a grande novidade

seja a fraqueza dos estados nacionais e como antes essas coisas teriam que passar por

políticas nacionais em estados que eram mais reguladores e mais ou menos fortes. Já

hoje se pensa em prescindir disso na época em que você tem uma grande expansão

da desterritorialização do mercado enquanto a política está muito restrita. Então, eu acho que fortalecer o Estado nessa discussão internacional é crucial para nós e, na verdade, do ponto de vista da saúde pública, eu acho que somos muito nacionalistas, no mal sentido. Nós olhamos a questão do Estado e do território nacional e esque-cemos, por exemplo, toda discussão da saúde em relação ao Mercosul, que é funda-mental no sentido das relações bilaterais, das relações multilaterais e tudo mais. Nós temos sido muito fracos neste debate. Nós não somos as pessoas propulsoras dessa discussão quando acho que ela é absolutamente imprescindível. Talvez agora, com

esse PAC da saúde, quando se mexe num ponto em que é possível gerar contradições

com o processo de acumulação na área de medicamentos e outros insumos, possa ser que nós comecemos a nos dar conta desse espaço como um espaço fundamental da política, para o qual você está chamando corretamente a atenção.

Bem, quanto à questão da Virgínia com relação à cidadania e classe social: seguindo a linha do que o Emir falou, a cidadania é extremamente limitada na

me-dida em que ela supõe a possibilidade da compatibilização dos conflitos dentro da

igualação nesse conceito, nesse status comum de cidadania, e desconsidera na sua

concepção a questão dos conflitos de classe, por exemplo, e de outros tipos de con

-flito. Supõe que podem, de alguma maneira, ser subsumidos a um consenso, a uma

igualação. Ela tem essa marca e essa limitação; no entanto, ao supor um conceito de igualdade que não se realiza, ela abre um espaço político enorme, inclusive, para as

classes se organizarem. A luta pelo sufrágio universal é uma luta da cidadania ou da

classe trabalhadora? Das duas. É uma luta pelo marco da cidadania que tinha colo-cado que todos são iguais, portanto todos têm direitos políticos iguais. Só quem não tinha direitos políticos eram os pobres e trabalhadores. Então, a luta pelo sufrágio é uma luta pelo marco da cidadania, mas uma luta ligada à classe.

A luta pelo estado de bem-estar social e expansão dos direitos sociais é uma luta de classe ou uma luta de cidadania? As duas. É a possibilidade, naquele momen -to, de expandir a cidadania que só contemplava direitos civis e direitos políticos para uma garantia de direitos sociais. E quem precisava desses direitos eram aqueles liga-dos à reprodução da classe trabalhadora (pensão, saúde e tudo mais), então, há

pos-sibilidade de compatibilização. A classe também é um conceito articulador limitado diante da enorme problemática que nós temos. A diferenciação da nossa classe tra -balhadora é de tal ordem que é muito difícil nós podermos discutir e dizer “a classe trabalhadora brasileira”. Se você for discutir a legislação sindical trabalhista, não será

possível chegar a um acordo entre o ABC e o resto do país, porque, enquanto o ABC

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o resto do país, se você tira o papel da justiça trabalhista como poder normalizador,

corre o risco de negociar escravidão em contrato coletivo de trabalho.

Nós temos um grau de fragmentação do trabalho na nossa sociedade que só permite se falar em termos muito genéricos sobre a classe trabalhadora, incluindo aí também os excluídos. Mas essa classe trabalhadora organizada não se reconhece nos excluídos. Não se reconhece e não luta por eles. Não quer, por exemplo, que

no Conselho da Previdência Social se representem os desempregados. Acham bom

ter um Ministério do Trabalho, que é do trabalho formal, a metade do trabalho do Brasil. O Ministério do Trabalho do Brasil é o “Ministério do Trabalho Formal” que reconhece e negocia com os sindicatos, com as centrais. E o resto? O resto de todo mundo que trabalha e que está fora? Não tem ministério pra isso. Então, eu acho que a gente tem que pensar que a classe não é capaz de dar conta dessa heterogeneidade na sua forma atual de organização e nem mesmo de questões de diferenciação no

seu interior. Falo de outros conflitos que não podem ser subsumidos como conflitos de raça, conflitos etários, conflitos de gênero, que devem ser tratados também na sua identidade e constituir essa luta pelos direitos sociais. Eu penso que, hoje, se a classe

é fundamental porque basicamente essas várias diferenciações agregam à exploração que é uma exploração do capital, é preciso ter em conta também essa particularidade que vai dar a diferenciação.

E termino dizendo assim: penso que hoje, para a lógica da acumulação capitalista, especialmente do capital financeiro, mas também do capital produtivo,

abrem-se dois pontos de contradição fundamentais e com os quais nós temos que nos articular. Primeiro são as políticas sociais, porque são políticas distributivas, a

não ser que elas sejam políticas meramente corporativas, mas, se nós as universaliza

-mos, elas tendem a distribuir. Portanto, nós vamos sempre ter um conflito entre a

área da Fazenda, as áreas que representam a acumulação capitalista, o pagamento de

juros da dívida etc. e as políticas sociais, independentemente de qual governo seja. E

outra área fundamental que entra em contradição com o capital produtivo é a área de meio ambiente, com a destruição dos recursos naturais, com a especulação, em relação à terra, com a poluição do ar, contaminação da água. Então, esses dois pon-tos não podem ser subordinados imediatamente a uma discussão de classes.

Embora a relação de classe seja fundamental, a cidadania é também funda -mental, assim como o ambientalismo é fundamental. São estas outras categorias que articulam os movimentos e as identidades em torno da defesa que vai ser uma defesa de um setor público, de uma esfera pública, de bens públicos, de ambientes coletivos,

de bens coletivizados que enfrentam a ideia do particularismo. Ou seja, acho que to -das essas lutas que se dirigem para um resgate da esfera pública, do bem público, da ideia de que os direitos têm primazia sobre a propriedade são lutas muito importantes mesmo que se agreguem através de categorias de diferenciações ou de cidadania.