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Perfeito... Então, essa “gurização” da desigualdade e do Estado a serviço de uma

cúpula cada vez mais estreita e mais poderosa, os juros da dívida que é um dado que eu não passei aqui, que foi tirado pelo pessoal da economia da saúde, é que 75% dos duzentos bilhões da dívida (ou seja, ¾) são assumidos por vinte mil famílias brasi-leiras. Passem para bilhão e vejam quanto são 3/4 de duzentos bilhões e distribuam para vinte mil famílias. O nome é transferência de renda para cima. Isso jamais foi pensado. Surgiu uma nova classe: havia credor de dívida até o final dos anos 80, mas

era marginal dentro do processo econômico de concentração de renda. Essa nova classe está aí: os rentistas das dívidas públicas que privatizaram o Estado para o seu benefício.

Nessa linha da reforma do Estado, desse Estado mínimo, parece-me que na saúde temos de concentrar esforços e, então, seria um algo a mais para acrescentar

na correlação de forças e, por enquanto, isso não está muito visível. Alguns estão levando essa bandeira, hoje, para que o setor público de saúde se modernize como

outros setores públicos, por exemplo, de países como Inglaterra, Canadá, Portugal e Espanha na contratualização dentro do setor público. Ter a autonomia gerencial na ponta da oferta de serviços preventivos, curativos e serviços integrais da saúde e ser contratualizado não como uma contratualização privatizada, mas como gestor públi-co que públi-contrata o próprio dirigente públipúbli-co de unidades periféricas mais ou menos complexas, mas com certo grau de complexidade preventiva e assistencial baseado e, aí sim, fundamental, com base em metas, em qualidade e resultados discutidos e

aprovados nos conselhos de saúde pela sociedade civil. Prioridades definidas pelos conselhos de saúde, mas não os conselhos de saúde de hoje, conselhos com real participação da sociedade civil, porque, quando se definem metas e principalmente prioridades e etapas, está se definindo do que vai se abdicar de direitos. Em qualquer cidade ou região, os conselhos só vão definir metas, prioridades e etapas, pois os recursos são finitos. Eles estão definindo automaticamente o que estão abdicando.

Quem deve falar em nome da sociedade sobre o que deve ser abdicado e que grau

de participação tem de ser conquistado ainda? Então, nessa linha, ser definido é ser

aprovado legitimamente pela sociedade. Metas com qualidade em cima das

priori-dades e etapas definidas pela sociedade em cada região. E esse processo é feito em

cada região porque as necessidades e os direitos variam qualitativa e quantitativa-mente devido às diferenças regionais no nosso país. Os dirigentes e gestores locais regionais vão ser contratados pela execução dessas metas. Não um contrato privado, mas um contrato público. Os sistemas públicos de todos os países mais

desenvolvi-dos estão fazendo isso hoje com grandes avanços. Ou seja, temos correlação de for

-ças para peitar isso? Está aí a discussão. Há alguns projetos das chamadas fundações estatais, mas, pela desvirtuação a que eles estão submetidos, já estão começando a

caminhar para serem mais apropriados pelos interesses privados.

Na terceira pergunta, há uma questão que fala do Estado democrático com a transformação das riquezas produzidas em bens, serviços, conhecimentos e tecnolo-gia. Fala mais do Estado de um modo geral, o Estado Democrático que, por delega-ção, tornou-se centralidade e tem de devolver à sociedade todo o processo produ-tor/transformador e distribuidor de riquezas, bens, serviços sociais etc. Essa terceira pergunta também me remete muito a uma coisa genérica, mas que é uma visão paradigmática, da qual não consigo fugir. Quando podemos ter umas discussões

de sociedade como um projeto nacional de desenvolvimento socioeconômico, não somente econômico? O que é esse projeto nacional de desenvolvimento discutido

e assumido pela sociedade e pelo Estado? Nesse mundo da globalização e das

com-plexidades de hoje, não se pode, num projeto desses, descartar toda a inserção in

-ternacional, inclusive a competitividade, a incorporação de tecnologia sofisticada e a

relação custo-benefício. Mas, também, tampouco se pode descartar que no processo produtivo de bens e serviços tem de se atentar para o mercado interno e para o emprego interno, mesmo sem tantas incorporações de tecnologias que lhes deem

emprego. Hoje, há vários países discutindo isso e avançando nesse ponto, elegendo

a própria sociedade do Estado, elegendo o que vai “mandar brasa” na produção tecnológica e na produção dos benefícios para nível da globalização e que pedaço

produtivo de bens de serviço internamente vai ficar a serviço da qualidade de vida

da área social. Nós nem arranhamos essa discussão, isso nem se fala.

E, na última pergunta, novamente se coloca como promover esse processo de mobilização. Eu testemunharia com vocês uma vitória que eu tive na rede de conselhos de saúde, a começar pelo Conselho Nacional, mas também nos estaduais

e municipais... Nesse aspecto, acho que existem um desafio e uma angústia muito

especial porque os conselhos de saúde, pelo próprio princípio da sua criação, pela participação na sociedade, pelos conselhos plurais, pelos trabalhadores da saúde, usuários, prestadores e governo, por esse pluralismo interno, pressupõem uma

par-ticipação muito instigante, muito tensa, conflitante e produtiva do conjunto da socie -dade no interior desses conselhos. Com o passar dos anos, não foi isso o que

acon-teceu. Não temos de fechar ou ficar contra o conselho por causa disso, mas onde

está a participação da sociedade? Onde estão os conselhos como coletivo, plural e

conflitante, onde em seus relatórios e reuniões mensais cada ponto de pauta conclui

e termina numa resolução com uma deliberação? Que questões de pauta são essas

e de que jeito são levadas para as entidades? Os conselhos, como órgãos coletivos,

por meio da sua secretaria executiva ou da aprovação coletiva, produzem o relato das suas deliberações conhecidas como resoluções e esse relato é mandado para en-tidades representadas nos conselhos para não se apropriar ou discutir. É mandado de um modo instigante, provocando as entidades para que elas saibam o que seus re-presentantes estão fazendo lá dentro. Não mandam só as deliberações ou resoluções,

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mas também as pautas que não estão oferecendo deliberação e resoluções, as que

estão causando muito conflito, muita tensão e que não são menos importantes que as

entidades, até porque está demorando para se ter pactuação, deliberação, resolução. Isso seria mais um motivo para mandá-las para as entidades. Eles não são os re-presentantes delas, os conselheiros? Está acontecendo esse vetor todo do conselho para a sociedade organizada? Quantas vezes alguns desses conselheiros voltam para as suas entidades, brigam com a diretoria para pegar a palavra para a próxima as-sembleia da entidade convocada ou na reunião da diretoria para discutir a pauta do conselho? Eu não diria que isso teria de acontecer no detalhe em todas as pautas, em todas as reuniões, mas ao menos selecionar as questões mais estruturantes. Então, os conselhos estão mantendo e legitimando a alienação e o caminho da sociedade civil para o corporativismo e para a esperteza do oportunismo, e não para a visão coletiva das necessidades.

Também por parte da sociedade, por parte dos conselhos de saúde, até onde nesses vinte anos surgiu a preocupação de que o setor saúde sozinho não vai fazer

revolução das igualdades na área de serviço e dos direitos em saúde? Até onde foi

a questão da seguridade social, que foi muito mais avançada na discussão dos anos

80, incluindo a previdência e a assistência social – e isso já é um fato que se con -cretiza e se consolida em muitos outros países –, e também a educação pública, o

ensino público, a segurança pública, que hoje estão dentro do mesmo espírito com a mesma preocupação de direitos? Até onde o setor saúde, através dos conselhos –

pois a sociedade está lá –, abriu essa discussão de direitos e cidadania, além da saúde, para fortalecer a luta e a conquista desses direitos? Nós não temos notícia disso.

Então, estou levantando algumas questões lembrando que, justamente com 18 anos

de existência e avanço dos conselhos por todos os municípios, todos os estados têm plenárias e conselhos, mas creio que a politização dos rumos do controle social está tão desviada quanto a politização dos rumos da gestão que eu coloquei na minha primeira fala. Isso não é dar elementos para os setores conservadores para acabar com os conselhos, mas dar elementos para revisões profundas de quais são os ru-mos da gestão e do controle social. Então, por exemplo, quando eu dei o exemplo daquelas grandes estratégias, os grandes mecanismos que eu chamo de “atacado” da gestão, quais são aquelas sete estratégias do governo que deixam um rastro para o

espaço do Ministério da Saúde trabalhar, um rastro extremamente estreito? Eu fiz até

uma reminiscência conversando com colegas da minha faixa etária que vivenciaram isso. Começamos a lembrar dos 12 ministros de 1990 até agora: o que foi a gestão de

cada um? Alguns duplicaram a gestão, outros ficaram numa gestão só e nós fomos lembrando os grandes feitos e os pequenos feitos de todos eles. A soma dos grandes

e pequenos feitos dos ministros deu uma faixinha estreita, ridiculamente estreita de comportamento e de atuação dos ministros. É o resto daquelas sete políticas de

verno deixadas para as políticas do setor. E aí fica até desmerecido ou desmerecedor:

os ministros variam muito de personalidade até as mais diversas extrações. Vai desde

um Adib Jatene, que está na quintessência da medicina assistencial com a qualifi -cada e alta informação tecnológica (ele tem uma versatilidade política enorme, é

privilegiado pessoalmente), até alguns ministros cujos nomes não vou citar extrema -mente apagados... Extrema-mente apagados como personalidade, mas estavam lá,

suficientemente acesos para poderem merecer o convite para ser ministro e aceitá-lo.

Mas, entre os extremos dos ministros, há extrações ideológicas, político-partidárias,

extrações tecnológicas... Seja qual for a extração, esses ministros quase foram clona -dos nessa faixinha estreita, numa clonagem do primeiro ao último. Não por questão individual de culpabilidade deles, é o próprio que resta. Eles trabalharam em cima da faixa do resto.

Voltando aos conselhos, quando eu coloquei aquelas sete políticas básicas de governo, em que os conselhos estão trabalhando? Porque na Lei Orgânica da Saúde, conquistada pela sociedade, e eu participei disso, foram discutidas duas atribuições dos conselhos: atuar na formulação das estratégias e atuar no controle da execução das políticas. E onde está a atuação na formulação das estratégias? É exatamente

onde estamos decaindo hoje! O que são esses sete exemplos de política de governo e

os outros sete exemplos de política do setor saúde senão as grandes estratégias onde tem de se atuar na sua formulação e na sua realização? O que os conselhos vêm fa-zendo? Vão atuando somente (incluindo o Conselho Nacional de Saúde) no controle da execução das políticas. Vão correndo atrás do leite derramado... Vão correndo

atrás do prejuízo. Correndo atrás do “varejo” e perdendo a visão do “atacado”, sem subir na árvore mais alta e olhar para a floresta onde estão os fatores determinantes do varejo. Há um atacado de formulação de estratégias que está conquistado na lei. A sociedade que conquistou aquilo na lei. Mas, nos 18 anos de SUS, isso não saiu do papel. Então, hoje, o que era para ser controlado e submetido à regulação, ao

controle e à auditoria não é. É o paradigma do controle. Por exemplo, quando eu estou com uma estratégia de remuneração por produção, outra é a fragmentação dos

repasses federais, outra é o subfinanciamento. Isso era para estar sendo auditado e

não ser paradigma do auditor para auditar os lá de baixo. O “atacado” é que tem que

ser auditado, é o que está contra o SUS. Esse “atacado” era para ser submetido ao controle social, à substituição de estratégias e a novos pilares do SUS. Mas não, esse

“atacado” é o paradigma doutrinário e estratégico pelo qual se vai alcançar o mundo dos trabalhadores da saúde, o mundo dos gestores descentralizados, e penalizá-los pela repressão de demanda da população. Inverteu-se. Essa discussão não está sendo travada nos conselhos, e o pior: não estou vendo rumo para vir a ser travada. Eu participei da geração onde testemunhamos que a sociedade decidiu sair da ditadura, sem um partido, sem ter um bloco... Houve mil lideranças, mil formuladores, mas

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a saída da ditadura começou depois da morte de Herzog e Manoel Fiel Filho. Isso parece que deu um start! Esse start promoveu uma rastreada no subconsciente cole-tivo da sociedade e ela se organizou rapidamente. De 1975 a 1984, ela saiu da dita-dura. Nove anos de rumo para sair da ditadita-dura. De vez em quando, a história traça o seu próprio rumo. Você não acha os grandes autores, os grandes líderes facilmente... Então, talvez no inconsciente coletivo da nossa sociedade, possamos ter uma surpresa agradável.

GILBERTO ESTRELA:

Concordo plenamente com o que a professora Virgínia colocou. No entanto, ela

disse que no capitalismo as formas de exploração do trabalho já estão dadas, e eu queria chamar a atenção de que, para o SUS, isso é muito relevante, inclusive o não trabalho também. Ou seja, ela desenhou um pouco do que é uma estratégia do capi

-talismo jogar as pessoas fora do trabalho e, portanto, fora do mercado, e esse é um grande desafio dentro do SUS. Nós temos, hoje, aproximadamente quarenta milhões

de indivíduos vivendo no Brasil abaixo da linha de pobreza e um problema sério do

SUS é a questão da iniquidade. Eu queria que a professora explorasse um pouco mais

sobre essa perspectiva. Para o professor Nelsão: ontem, na exposição de Ligia, eu

fa-lei que 94% dos municípios brasifa-leiros são municípios com população de até oitenta

mil habitantes. Portanto, me parece que são aqueles candidatos à organização do

sistema da atenção básica que se adaptam muito claramente à proposta do SUS em fazer a prevenção, porém quero afirmar também que desses quase 5.600 municípios

apenas trezentos são os candidatos (no caso, os municípios de maior população) a tocar o sistema de alto custo. Eu queria saber como podemos pensar na questão do controle social nesse debate, nessa discussão.