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As pesquisas sobre gênero de compreensão retórica ganharam força a partir dos trabalhos desenvolvidos por Carolyn Miller nas décadas de 80 e 90 do século XX. A sua contribuição teórica é de grande relevância para os trabalhos posteriores, principalmente para os que dialogam com a retórica, uma vez seus estudos permitiram reconhecer o gênero através de seu caráter retórico, como um “conceito classificatório estável” e, ao mesmo tempo, “retoricamente válido”, conforme preocupação explícita da autora (MILLER, 2009a, p. 22).

O texto Gênero como ação social (MILLER, 2009a)36, configura-se um marco para os estudos retóricos de gênero, pois, a partir da articulação entre os processos sociais e os usos da linguagem, o ensaio discute que “a criação de certos textos, a interpretação e os modelos hierárquicos de comunicação esclarecem a natureza e estrutura de determinada ação retórica” (TRUJILLO; TRUJILLO, 2010, p. 66). Miller redefine o conceito de gênero, visto como uma entidade instável e aberta, onde novos membros evoluem enquanto outros decaem. Isso nos leva a admitir que “o número de gêneros correntes em qualquer sociedade é indeterminado e depende da complexidade e diversidade da sociedade” (MILLER, 2009a, p. 41).

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Esse texto foi publicado em 1984, mas neste trabalho faremos referência a uma tradução em português, publicada em 2009, pela Universidade Federal de Pernambuco. Trata-se de uma coletânea organizada por Angela Paiva Dionísio e Judith Chambliss Hoffnagel, com vários textos da Miller, que tratam de gênero textual, agência e tecnologia, traduzidos para português.

Para chegar ao conceito de gênero como uma “ação retórica tipificada” (MILLER, 2009a, p. 22) que funciona como resposta a situações recorrentes e definidas/interpretadas socialmente, a pesquisadora chama a atenção para a importância de conceitos-chave: recorrência, exigência e ação retórica.

Em texto publicado posteriormente37, Miller (2009a, p. 14) esclarece que foi o foco dado ao conceito de “exigência como a principal força interpretativa e motivadora” que permitiu que a concepção de gênero se apresentasse especificamente retórica. A autora afirma que, no momento em que escreveu esse ensaio publicado em 1984, imaginava-se falando a uma comunidade de estudiosos e críticos que não lhe escutava por estarem com atenção voltada a outros aspectos. Mas, que fora, na verdade, ouvida por uma audiência diferente, por uma comunidade que não a conhecia, como Charles Bazerman e Swales. Para ela, esse texto despertou o interesse dessa nova audiência devido às alegações gerais sobre gênero que permitiram que ele fosse encarado através das práticas comunicativas cotidianas das comunidades discursivas.

Para desenvolver reflexões sobre as definições de gêneros, Miller (2009a) escreveu esse ensaio tendo como foco dois pontos importantes para guiar a discussão. Primeiro, desenvolver uma perspectiva de gênero que corrobore com áreas de concordância em trabalhos prévios. Segundo, propor que a compreensão de gênero pode ajudar a explicar a maneira como as pessoas encontram, interpretam, reagem e criam determinados textos. Com vistas a esse propósito, ela divide o texto em quatro partes: a classificação do discurso, as situações retóricas recorrentes, os modelos hierárquicos da comunicação e, por fim, as implicações dessa teoria para o estudo de gênero.

A pesquisadora inicia o ensaio desenvolvendo críticas às teorias de gênero vigentes. No caso da crítica retórica, devido à diversidade de definições nos seus estudos teóricos, Miller afirma que ela ainda não ofereceu uma teoria consistente sobre o que constitui um gênero. Ela também critica alguns teóricos que, acreditando na separação entre o texto e o leitor, pensavam que a crítica de gêneros levava a um reducionismo, preso a regras. Para ela, isso não seria interessante aos estudos retóricos.

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O ensaio de Miller (2009a) é desenvolvido a partir de diálogos estabelecidos com outros estudiosos que definem e classificam gêneros retóricos, como Karlyn Kohrs Campbell, Kathleen Hall Jamieson, Jackson Harrel, Wil A. Linkugel, Northrop Frye, Lloyd F. Bitzer, Burke, Alfred Schutz, Stephen Toulmin, entre outros. Alguns são chamados a serem confrontados, enquanto outros servem de base para o desenvolvimento e fortalecimento de suas ideias. Entre eles, a abordagem em destaque é das autoras Campbell e Jamieson, a qual é substancialmente aristotélica, por se apoiar na fusão de forma e substância com base em situações. A compreensão de gênero por essas autoras é tomada como principal referência para apoiar a ideia de que a importância do estudo dos gêneros não está relacionada ao uso de taxonomias, mas aos aspectos sociais e históricos que só a perspectiva retórica permite alcançar.

A definição dada a gênero como “ação social” aponta, então, para critérios pragmáticos como características demarcadoras dos gêneros (CARVALHO, 2005). Para Miller (2009a), uma definição retoricamente sólida deve ser centrada na ação presente no discurso e não na substância38 ou na sua forma, pois ele é visto como um complexo de traços formais e substanciais que, combinados, criam um efeito particular em uma determinada situação. Assim, Miller rejeita a noção de gênero como um padrão recorrente de uso das formas através de uma classificação simplista e reducionista.

Ela ressalta a existência de um anseio pela classificação, mas acrescenta que, no caso da classificação do discurso, um princípio útil deve ter como base as convenções da prática retórica, ou melhor, da ação retórica. Corroborando, Breure afirma:

Uma classificação do discurso poderia contribuir para uma compreensão de como o discurso funciona, isto é, refletir sobre as experiências das pessoas que criam e interpretam-no. Gêneros, como ação, devem considerar o contexto de situação e os motivos intenções e efeitos. Numa comunidade discursiva, uma situação funciona como uma construção social com significado bem definido. Gêneros são respostas para ela, ações retóricas tipificadas (2001, p.5).

Os pesquisadores de gênero devem proceder indutivamente, sem oferecer um tipo de enquadre que provoque a limitação dos gêneros, já que eles se

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Em uma referência à Retórica de Aristóteles, Miller prefere usar o termo substância em vez de conteúdo.

constituem como uma classe aberta, em constante mudança. A análise deve fundamentar o gênero na ação retórica situada. Miller (2009a, p. 25) ressalta, com base em Campbell e Jamieson, que um olhar retórico deverá enfatizar “um exame detalhado de um único texto ou número pequeno de textos para identificar a fusão de formas responsivas à situação”, pois o gênero representa não somente o que passou como o que poderá vir a acontecer.

Miller propõe uma classificação baseada na prática retórica, limitada a um tipo particular de classificação do discurso, uma classificação aberta e organizada em torno de ações situadas. “A classificação que eu estou propondo é, na verdade, etnometodológica: procura explicar o conhecimento que a prática cria” (MILLER, 2009a, p. 28). Segundo Trujillo e Trujillo, isso implica afirmar que:

os gêneros utilizados na linguagem cotidiana dizem algo importante sobre o discurso. Para considerar como gêneros potenciais o discurso simples, não se deve banalizar o estudo de gêneros; o que deve ser feito é levar a sério a retórica e considerar as situações em que são produzidos esses discursos (2010, p. 67).

Miller (2009a) destaca a importância da noção de ‘recorrência’ nas situações retóricas. Esse é um aspecto fundamental de sua teoria, que vai fundamentar toda a compreensão de gêneros, definindo-os como ações retóricas tipificadas, baseadas em situações recorrentes. Essa recorrência não deve ser compreendida no sentido materialista, já que dessa forma se levaria a generalizações científicas. Em vez disso, sua compreensão deve dar-se como um construto social, um fenômeno intersubjetivo, centrada na ação humana que, por sua vez, constitui-se de significado, realizado através do processo de interpretação. Assim, “a recorrência é inferida pela nossa compreensão de situações como sendo, de alguma forma, comparáveis, similares, ou análogas a outras situações”39 (MILLER, 2009a, p. 29). O que recorre não é a situação material (esta é única), mas a interpretação que damos a ela, tipificando-a. Assim, para que uma comunicação seja bem sucedida, é necessário que haja o compartilhamento de tipos pelos participantes.

Miller (2009a) esclarece que, antes, tanto Burke quanto Bitzer utilizaram a expressão situação retórica, no entanto com algumas distinções em relação ao uso

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de termos gerando uma diferença quanto ao foco dado à situação. Para o primeiro a expressão refere-se ao motivo; para o segundo, à exigência.

Para o claro entendimento de gênero como ação social, a pesquisadora argumenta que se faz necessária uma reconceitualização de exigência, já que esta é concebida por Bitzer como uma causa externa do discurso e independente da consciência humana. Para ela, se a situação retórica não é material, mas um construto social, a exigência faz parte desse mundo social, pois ela é uma forma de conhecimento social que se constitui através da interpretação mútua dos participantes sobre os objetos, eventos, interesses e propósitos. Ela oferece o reconhecimento social do modo como realizar uma ação por meio da linguagem, ou seja, ela é o próprio motivo social; afinal, os motivos são produtos da socialização. Com isso, ela chama a atenção para as consequências da instabilidade temporal na questão da motivação social e expõe que falta orientação efetiva para ação conjunta (MILLER, 2009a).

A partir da explicação de Sharon D. Downey sobre gêneros baseada em regras, Miller (2009a) utiliza os dois modelos hierárquicos de comunicação que apresentam o princípio das relações hierárquicas entre substância-forma-ação, desenvolvidos por Thomas S. Frentz e Thomas B. Farrel e por W. Barnett Pearce e Forrest Conklin, para elucidar sobre a natureza e a estrutura das ações retoricamente tipificadas, apesar de eles não dizerem explicitamente nada sobre gênero. Com isso, ela propõe um modelo de hierarquia similar, incluindo os gêneros.

Quadro 4 - Hierarquia dos Significados

HIERARQUIA PROPOSTA POR MILLER

HIERARQUIA DE FRENTZ E FARREL

HIERARQUIA DE PEARCE E CONKLIN

Natureza Humana - Arquétipo

Cultura - -

Forma de Vida Forma de Vida -

Gênero Encontro -

Episódio ou Estratégia Episódio Episódio

Atos de Fala Ato Simbólico Ato de Fala

Locução - Proposição

Língua - -

Experiência - Comportamento

Miller ressalta que o número exato de níveis hierárquicos de significado vai depender da ênfase que diferentes tipos de comunicação darão a diferentes níveis. Mas, em se tratando de gênero como situações retóricas recorrentes, o nível hierárquico exato em que gênero deverá ocorrer “será determinado por nosso senso de recorrência das situações retóricas; isso variará de cultura a cultura, segundo tipificações disponíveis” (MILLER, 2009a, p. 40).

Para ela, a compreensão de gênero retórico deve ser “baseada na prática retórica, nas convenções de discurso que uma sociedade estabelece como maneiras de agir junto” (MILLER, 2009a, p. 41). Ela apresenta, nesse sentido, os seguintes princípios para compreensão de gêneros:

1. O gênero refere-se a uma categoria convencional de discurso baseada na tipificação em grande escala da ação retórica; como ação adquire significado do contexto social em que essa situação se originou.

2. Como ação significante, o gênero é interpretável por meio de regras; regras de gênero ocorrem em um nível relativamente alto de uma hierarquia de regras para interações simbólicas.

3. O gênero é distinto de formas: forma é o termo mais geral usado em todos os níveis da hierarquia. O gênero é uma forma em um nível particular, que é a fusão de formas de níveis mais baixos e a substância característica.

4. O gênero serve como a substância de formas em níveis mais altos; como padrões recorrentes do uso linguístico; os gêneros ajudam a constituir a substância de nossa vida cultural.

5. Um gênero é um meio retórico para a mediação das intenções privadas e da exigência social; ele é motivador ao ligar o privado e o público, o singular com o recorrente.

Segundo a autora, a perspectiva de gênero como realidade socialmente construída tem implicações tanto para a teoria e a crítica de gêneros quanto para a educação retórica, pois prevê uma nova concepção do próprio processo de inserção humana na vida social:

quando aprendemos um gênero não é apenas um padrão de formas ou mesmo um método de realizar nossos próprios fins. Mais importante, aprendemos quais fins podemos alcançar (...). Aprendemos a entender melhor as situações em que nos encontramos e as situações potenciais para o fracasso e o sucesso ao agir juntamente. Como uma ação significante e recorrente, um gênero incorpora um aspecto de racionalidade cultural (MILLER, 2009a, p. 44).

Miller chama a atenção para a relação gênero e ensino, colocando os atores sociais na condição de aprendentes ao afirmar que “gêneros servem como chaves para a compreensão de como participar nas ações de uma comunidade” (MILLER, 2009a, p. 44).

Gênero passa a ser compreendido, assim, como um ‘artefato cultural’ (MILLER, 2009a, p. 43), já que corresponde a uma representação do raciocínio e propósitos próprios da cultura. Em texto posterior40, ela volta a discutir essa questão buscando aprofundar o assunto. Com isso, afirma que, como artefato cultural, os gêneros devem ser encarados da mesma forma que um artefato material visto por um antropólogo, ou seja, como um produto que tem funções particulares conforme as características de um povo, no seu lugar e no seu tempo, e que se relaciona com outros artefatos. Considerando-os como portadores de uma cultura, eles agregam conhecimentos próprios dessa cultura, de modo que seria possível caracterizá-la por meio de seu ‘conjunto de gênero’ (MILLER, 2009b, p. 49).

Nessa publicação mais recente, Miller se apoia na teoria da estruturação desenvolvida pelo sociólogo Anthony Giddens para refinar as noções de gênero e de comunidade discursiva. Giddens (1984) investiga como ocorre a produção e reprodução dos sistemas sociais nas interações sociais em seu tempo e espaço. Os conceitos chaves desse autor são sistemas e estruturas, sendo este último merecedor de maior atenção em virtude de se encontrar as bases que explicariam como se desenvolve a interação entre os participantes da comunicação.

Ao refletir sobre a noção de reciprocidade entre estruturação e interação na regularização das ações comunicativas individuais e no sistema social, Miller se aproxima do que propõe o sociólogo, ressaltando dois aspectos em sua teoria: a

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Texto publicado em 1994, na coletânea Genre and the new rhetoric, sob o título: Rhetorical Community: The Cultural Basis of Genre. Neste trabalho, faremos referência ao texto publicado pela Universidade Federal de Pernambuco, em 2009, na coletânea citada anteriormente.

estruturação, como nexo explicativo entre os indivíduos e a coletividade, e a recorrência, estabelecida através da reprodução (MILLER, 2009b).

Com base nessa ideia, a autora sugere que o gênero seja encarado como uma estrutura social, ou seja, “como constituinte específico e importante da sociedade, um aspecto principal de sua estrutura comunicativa, uma das estruturas de poder que as instituições exercem” (MILLER, 2009b, p. 52). Para uma compreensão mais plena dos gêneros, faz-se necessário um melhor entendimento da coletividade, no caso, da comunidade retórica. Miller (2009b) se utiliza da contribuição de Harré41 para esclarecer dois tipos de coletividades, a taxonômica e a relacional. No entanto, elege a comunidade virtual, nos termos de Giddens, como a mais próxima às comunidades retóricas que “existem nas memórias humanas e nas suas instanciações específicas em palavras: não são inventadas do zero, mas persistem como aspectos estruturadores de todas as formas de ação sociorretórica” (2009b, p. 55).

Segundo Carvalho (2005), Miller caracteriza as comunidades retóricas diferentemente das comunidades geográfica ou demograficamente delimitadas. Enquanto estas possuem semelhanças definidoras determinadas de fora para dentro, as retóricas acomodam diferenças e semelhanças porque demandam interações reais entre seus membros. Estes, por sua vez, ligam-se através de uma certa maneira de ‘ver o mundo’ e constituem-se ao passo que reproduzem a própria comunidade à medida que respondem às demandas sociorretóricas.

Podemos afirmar que esta pesquisa contribui, dessa maneira, para ampliação e redimensionamento do conceito de gênero através de uma compreensão que privilegia o contexto das ações sociais e, portanto, retóricas. Encarados por sua dimensão estrutural, os gêneros são meios convencionados e intricados para o agir do individual para o social. Na sua dimensão pragmática, eles tanto ajudam pessoas reais a realizarem seus trabalhos e seus propósitos como também ajudam na constituição de comunidades virtuais através da reprodução de si mesma para se perpetuarem (MILLER, 2009b).

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HARRÉ, R. Philosophical aspects of the macro-micro problem. In: KNORR-CETIN, K.; CICOUREL, A. V. eds. Advances in social theory and methodology: Toward an integration of micro and macro sociologies. Boston, MA: Routlege and Kegan Paul, pp. 139-160.