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No início do século XX, mais precisamente por volta do ano de 1920, os estudos dos gêneros ganharam nova relevância com a escola de crítica literária denominada de Formalismo Russo, liderada por Victor Shklovsky. De acordo com Vaz Ferreira (2011), tratava-se de uma escola influenciada pelo estruturalismo de Saussure e pela noção simbolista de autonomia do texto. Os formalistas concebiam a literatura como uma unidade complexa formada por partes que poderiam ser analisadas como um sistema formal.

Assim como os românticos, os formalistas consideravam os aspectos evolutivos dos gêneros em uma compreensão histórica. Para eles, os gêneros evoluíam em seus aspectos constitutivos, forma e função, ou seja, ambos evoluíam ao longo do tempo e uma nova forma surgia quando fossem esgotadas as possibilidades de cumprir a função na velha, de modo que o olhar enfatizava a função (DUFF apud BREURE, 2001).

Segundo Todorov, os gêneros ocorriam de forma dinâmica. Para ele, “um gênero surge de outros gêneros, um gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros antigos, por inversão, por deslocamento, por combinação” (apud PINHEIRO, 2002, p. 264). Essa assertiva revela a dinamicidade e variabilidade dos gêneros. Vale esclarecer que essa evolução passou a ser compreendida a partir da sua realização em contextos reais, considerando que os gêneros incorporam e refletem transformações sócio-históricas.

Em meados do mesmo século, em contraposição à visão sistêmica, Mikhail Bakhtin (1895-1975) escreveu sua obra Marxismo e filosofia da linguagem,

publicada em 1929. Para ele, as tendências linguísticas vigentes não compreendiam a verdadeira concepção da língua. Com isso, centrado-se em um único gênero, o romance, Bakhtin ampliou o campo de estudos dos gêneros para além da literatura.

Os estudos sobre os gêneros dessa corrente se baseavam em critérios não exclusivamente linguísticos, pois buscavam as condições específicas e as finalidades de produção discursiva de cada uma das esferas das atividades humanas, diferentes dos adotados pelas abordagens literárias e linguísticas8, que os viam como imutáveis e fixos, com regularidades textuais de forma e conteúdos, e classificados em categorias claras e esgotáveis.

Para Bakhtin, a função comunicativa da linguagem foi colocada em segundo plano na linguística do século XIX, haja vista que se considerava apenas o ponto de vista do falante, sem levar em conta o aspecto dialógico da linguagem, ou seja, as implicações impostas pela presença do outro no processo complexo da comunicação. Na compreensão de um enunciado vivo, de natureza ativamente responsiva, o ouvinte se torna falante, mesmo que a resposta aconteça de forma silenciosa. Com isso, ele faz uma crítica aos esquemas da linguística geral, ressaltando a questão da abstração na compreensão passiva da língua como um código fixo, em que o falante é visto de forma artificial e idealizada. Passa-se, então, a analisar a relação existente entre o ouvinte e o processo da comunicação verbal e a inexistência da passividade nesse processo.

Nesse sentido, vale destacar a importante contribuição dos estudos sócio- históricos da linguagem de Bakhtin para o desenvolvimento da teoria dos gêneros na linguística, ressaltando mais do que o seu papel como precursor o seu imenso potencial heurístico, como ressalta Faraco (2001). Nesses estudos9, a compreensão da linguagem se situa nas relações sociais entre os indivíduos, caracterizando-a como prática discursiva de natureza social.

Os escritos de Bakhtin apresentam a linguagem como um processo de interação entre sujeitos sócio-historicamente situados, diferentemente da concepção estruturalista de língua, que a vê como um sistema abstrato, composto por regras estáveis e completamente isolada de seu contexto de produção. O estudo da linguagem, sendo assim, deveria ir além da análise das estruturas linguísticas ou

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Referimo-nos aqui à Linguística Geral, que se preocupava com a análise da língua enquanto um código, um sistema, em um recorte sincrônico.

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Esses estudos, denominados Círculo de Bakhtin, compreendiam um grupo de intelectuais russos, Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, que se reuniu no século XX.

formas da língua, buscando o sentido construído/negociado nas situações de interação verbal entre os sujeitos do discurso.

De acordo com essa compreensão, o sujeito assumiu papel central na enunciação, determinando a organização e a função do discurso. A palavra, produto da interação, varia de acordo com vários fatores relacionados ao contexto e a produção de sentido se manifesta nas diversas possibilidades propostas tanto pelo locutor (de quem procede a palavra), quanto pelo interlocutor (a quem se dirige).

Essa possibilidade de sentidos não deveria ser pensada apenas de modo restrito, como um diálogo entre falantes em uma situação de conversação, mas de modo mais amplo, em uma relação entre enunciados, em que o sentido é construído/negociado na relação de um enunciado com o que já foi e com o que será dito sobre o mesmo assunto. Tem-se aqui mais um aspecto fundamental para a compreensão da linguagem na concepção de Bakhtin: o dialogismo.

Para Bakhtin (apud TODOROV apud CUNHA, 2010), um enunciado é sempre constituído de outros que lhe antecederam sobre o tema, de modo que a primeira palavra caberia apenas a um Adão mítico, parte de um mundo virgem e ainda não dito, capaz de, dessa forma, evitar a relação dialógica inerente ao discurso, em que todo falante é também respondente, já que ele não é o primeiro falante.

O dialogismo como corrente ininterrupta da comunicação verbal (Bakhtin, 2010), responsável pela construção de sentido nesse processo, pode ser compreendido de acordo com dois aspectos. Primeiro, fazendo referência à interação verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto, que consiste nas relações entre os participantes da enunciação inseridos em uma situação social. Segundo, referindo-se à questão da intertextualidade no interior do discurso, que corresponde ao jogo de vozes presente na constituição do discurso.

Neste último caso, o dialogismo pode apresentar-se de dois modos, conforme aponta Moirand (apud CUNHA, 2010), o dialogismo mostrado e o dialogismo constitutivo. O dialogismo mostrado ocorre quando um discurso apresenta, explicitamente, por meio de marcas tipográficas ou formas verbais, formas de representação de um outro discurso. O dialogismo constitutivo, quando o modo de construção de um discurso dar-se por meio da incorporação de outros sobre o mesmo objeto, podendo ou não ser percebido como tal pelos participantes da enunciação.

Bakhtin (2010) afirma que considerar enunciado como unidade real da comunicação discursiva torna possível olhar para a língua como algo vivo que integra a vida. Ao mesmo tempo, o estudo do enunciado, nessas condições, permite compreender melhor as unidades da língua, enquanto sistema; no caso, as palavras e as orações.

É preciso esclarecer a diferença básica entre enunciado e oração, pois todo enunciado possui a determinação de um início e de um fim, que correspondem, respectivamente, aos enunciados dos outros, antes do início, e aos enunciados responsivos de outros, depois do término. No caso da oração, ela não possui a característica discursiva, de modo que seus limites, enquanto unidade da língua, nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso, pois as relações entre esses sujeitos só ocorre entre enunciações de diferentes sujeitos do discurso. Daí, a oração ser desprovida da capacidade de determinar a posição responsiva do falante. Para Bakhtin, o fato de os linguistas confundirem oração e enunciado se devia, provavelmente, ao desconhecimento dos gêneros do discurso.

Quanto à palavra, assim como a oração, por ser isolada, é neutra e em si mesma não tem expressão de sentido. Adquire-o quando é inserida em condições de uso real da língua, ou seja, em um enunciado concreto. Assim, quando se escolhem as palavras, parte-se do conjunto projetado de uma enunciação, ou seja, do seu uso em outros enunciados, de acordo com as especificidades do gênero discursivo. É importante observar que, assim como algumas orações, determinadas palavras necessitam da expressividade dos gêneros, como absorvem com certa facilidade a expressão individual.

Desse modo, o enunciado se apresenta como fenômeno complexo, por estar em contato direto com a realidade, por ser um elo na cadeia da comunicação discursiva, estabelecendo uma relação com outros enunciados.

No processo comunicativo ativo e complexo, que naturalmente envolve o desenvolvimento de enunciados, o ouvinte se torna falante (Bakhtin, 2010, p. 271), uma vez que toda compreensão plena real exige uma atitude responsiva do ouvinte. Isso não significa que essa resposta ocorrerá imediatamente ao pronunciado e que será em voz alta. Ela poderá realizar-se através de uma ação imediata ou não, ou até mesmo corresponder a uma compreensão responsiva silenciosa, porém de efeito retardado.

Como disse Bakhtin (2010), cada enunciado se constitui pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva, ao mesmo tempo em que constitui um novo acontecimento, um evento único, singular e impossível de ser repetível, somente citado. O enunciado isolado representa apenas uma fração discursiva, com limites precisos, determinados pela alternância dos sujeitos do discurso. Ele é um elo na cadeia complexa e contínua da comunicação discursiva, e não pode ser o primeiro nem o último, pois é resposta a outros enunciados, do mesmo modo que é provocador em relação ao surgimento de novos enunciados, pressupondo a compreensão responsiva ativa. Assim, é interessante destacar a importância do papel dos outros na construção do enunciado. Essa compreensão responsiva ativa do enunciado vai determinar a escolha do gênero, dos procedimentos composicionais e dos meios linguísticos, a fim de construir um enunciado de maneira ativa, procurando antecipar as respostas que dele virão (BAKHTIN, 2010, p. 301).

Bakhtin apresenta três peculiaridades constitutivas do enunciado: 1. a alternância dos sujeitos do discurso; 2. a expressividade; 3. a conclusibilidade específica do enunciado. No caso da última, ela é específica e determinada por três critérios: a possibilidade de responder ao enunciado, a interpretação da intenção discursiva ou da vontade discursiva do falante e a vontade discursiva do falante que se realiza na escolha do gênero discursivo.

A noção geral de gêneros discursivos apresenta-se em vários trabalhos do Círculo de Bakhtin, mas essa discussão é realmente aprofundada e sistematizada no ensaio “Os gêneros do discurso”10

no livro Estética da Criação Verbal. É nesta obra que Bakhtin apresenta a definição dos gêneros discursivos.

Para defini-los, Bakhtin explora a noção de enunciado entendido como o uso da língua em situações específicas determinadas pelas condições do campo de atuação. Para ele, essas situações são recorrentes na comunicação e acabam gerando tipos relativamente estáveis de enunciados (2010). Esses tipos são, no caso, os gêneros discursivos. Esses enunciados refletem as condições e as finalidades específicas de cada esfera de atuação humana, de modo que se

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Conforme Faraco et al. (apud SILVEIRA, 2005), Bakhtin escreveu este ensaio entre 1952 e 1953, mas sua publicação data de 1979, juntamente com outros trabalhos, no livro Estetika Slovesnogo

Tvorchestva. No Brasil, esta obra foi publicada em 1992, com o nome Estética da Criação Verbal,

configuram a partir de três dimensões essenciais e indissociáveis: um tema, que corresponde ao conteúdo temático; forma composicional, que são os elementos das estruturas comunicativas e semióticas compartilhadas pelos textos pertencentes ao gênero; e estilo, que diz respeito aos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua.

Bakhtin afirma que não se deve minimizar a heterogeneidade e complexidade dos gêneros do discurso. Em razão disso, ele não estabelece categorias. A esse respeito, ele aponta uma sistematização mínima, porém possível quando estabelece a distinção entre gêneros primários e secundários, que ressalta não se tratar de uma diferença funcional. Os gêneros primários, considerados simples, possuem uma relação imediata com a realidade, constituindo-se na comunicação espontânea. E gêneros secundários são considerados complexos e aparecem em situações de comunicação mais complexas e evoluídas do ponto de vista cultural, geralmente envolvendo a escrita. Devido à extrema heterogeneidade dos gêneros, essa classificação não se dá de modo tão simplificado, uma vez que, na sua maioria, os gêneros secundários absorvem e assimilam os primários.

Para Bakhtin (2010), é indispensável a todos os estudos que investigam a língua, enquanto material concreto, uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular, ou seja, dos diversos gêneros do discurso. E, ainda, estudos que desconhecem questões relacionadas ao enunciado resultam em formalismo e abstração. Dessa forma, os gêneros devem ser compreendidos relacionados às esferas de atividade e comunicação humana, especificamente, à situações de interação dentro de determinada esfera social. Assim, são determinados basicamente por três fatores: 1. situação na qual estão envolvido; 2. a posição social dos participantes da enunciação; 3. relações interpessoais entre eles. Esses fatores combinados vão provocar grande variedade de gêneros, uma vez que cada esfera social tem gêneros próprios que se diferenciam e se multiplicam à medida que a própria esfera se desenvolve e se “complexifica”.

Conforme Bakhtin (2010), existem gêneros mais livres e mais criativos, como por exemplo, os da comunicação discursiva oral. Por outro lado, existem gêneros com alto grau de estabilidade e coação, gêneros oficiais ou padronizados, que permitem menos liberdade de estilo. Nesses gêneros, a vontade discursiva se limita,

praticamente à escolha do gênero como, por exemplo, os documentos oficiais e outros gêneros próprios dessa ordem.

Bakhtin afirma “quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos (...); em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso” (2010, p. 285). No entanto, é humanamente impossível dominar todos os gêneros discursivos, porque isso implicaria conhecer bem todas as esferas sociais, além da heterogeneidade de composição e dimensão.

É interessante a comparação que Bakhtin faz entre o emprego dos gêneros e da língua materna. Ele afirma que em ambos os casos, mesmo quando desconhecemos a sua teoria, costumamos aplicá-los de forma habilidosa e segura na prática, porque as formas da língua e as formas de enunciados chegam à nossa experiência em conjunto e estreitamente vinculadas entre si. Isso leva-o a afirmar que a comunicação seria impossível se não existissem os gêneros do discurso, ou seja, se tivéssemos que inventar formas linguísticas e discursivas cada vez que precisássemos interagir.

Para ele, os gêneros não são simplesmente um conjunto de regras e convenções, mas maneiras de conceituar a realidade, formas de ver e interpretar aspectos particulares do mundo.