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O termo gênero, que vem do latim genus, tem suas raízes na Antiguidade Clássica, a partir do estudo sobre os usos do discurso pela retórica, iniciado pelos gregos. A princípio, conforme Reboul,

os gregos inventaram a ‘técnica da retórica’ como um ensinamento distinto, independente dos conteúdos, que possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois, inventaram a teoria da retórica, não mais ensinada como uma habilidade útil, mas como uma reflexão com vistas a compreensão (2004, p.1).

A retórica não nasceu propriamente em Atenas, e sim em colônias gregas da Sicília, não com base no campo da literatura, mas no campo do judiciário, uma vez que seu desenvolvimento está atrelado às origens da democracia grega, quando os cidadãos exerciam a participação direta em assembleias públicas para defenderem seus direitos.

Por volta do século V a.C, quando os gregos conseguiram expulsar os tiranos da região, muitos eram os conflitos judiciários devido à privação de seus bens. Tratava-se de reclamações referentes à restituição de terras subtraídas aos legítimos proprietários pelos tiranos. Como não existiam advogados, era o próprio cidadão quem tinha a tarefa de defender sua causa e expor sua opinião diante de uma platéia, buscando o seu convencimento. Dessa forma, precisavam desenvolver a habilidade de raciocinar, falar e argumentar corretamente em público.

Em razão dessa necessidade, surgiu a figura dos instrutores, que eram oradores dedicados à defesa das vítimas dos arbítrios cometidos pelos tiranos. Esses instrutores passaram, então, a se preocupar em ensinar preceitos básicos às pessoas para ajudá-las a recorrer à justiça na busca por seus direitos. Córax e seu discípulo Tísias, dois oradores de destaque, publicaram o primeiro tratado de retórica “arte oratória” (tekhné rhetorike), com o fundamento filosófico assentado na crença de que o verossímil é mais estimável que o verdadeiro (FERREIRA, 2010, p. 41). Tratava-se de uma coletânea de regras práticas com exemplos para que as pessoas se guiassem ao recorrer à justiça. Nela, consta a primeira definição de retórica como ‘criadora de persuasão’ (REBOUL, 2004, p. 2). Nesse primeiro momento, conforme Reboul (2004), a retórica situava-se apenas no campo judiciário sem alcance literário ou mesmo filosófico.

Com o passar dos tempos, a técnica da retórica foi sendo cada vez mais aprofundada e desenvolvida como um estudo da linguagem voltada para si mesma. Foi então que um siciliano chamado Górgias ganhou grande visibilidade por espalhar em muitas partes da Grécia a arte retórica, preocupado com os aspectos ornamentais do discurso. Ele defendia a existência de um conhecimento relativo, fazendo desaparecer o critério da verdade como uma realidade absoluta e irrefutável. Os discursos que proferia eram elegantes, recheados de figuras, ritmos e efeitos. Com isso, conquistou muitos discípulos que, com vocação pedagógica, resolveram didatizar a retórica, promovendo o desenvolvimento da eloquência. Esses homens eram denominados sofistas e, com eles, o discurso passou a

apresentar-se como sedutor e belo, surgindo assim uma retórica estética, propriamente literária: a prosa eloquente.

Diante de um mundo sem verdade, sem realidade objetiva, os sofistas tornaram-se alvo de críticas, como as proferidas pelo filósofo Platão, que rejeitava completamente a confiança atribuída à linguagem, admitindo que seu valor situa-se a serviço do pensamento, a fim de atingir as ideias. Com críticas severas, os sofistas passaram a sofrer grande desgaste, uma vez que foram acusados “de utilizar a retórica com o intuito de ‘ocultar a verdade, oferecer armas desleais e práticas à oposição inferior em um plano lógico’” (BARILLI apud SOUZA, 2008).

Com Platão, em A República, o termo gênero começou a circular para falar sobre pintura e poesia, concebendo os três gêneros literários nas modalidades lírica, épica e dramática. Foi Aristóteles quem primeiro teorizou sobre gêneros em uma abordagem sistemática em Tópicos, quando analisou e definiu, sob o ponto de vista da linguagem, os quatros predicados como elementos constitutivos das proposições: a definição, o específico de qualquer coisa, o gênero e o acidente; e em Retórica, Livro III, quando discorre sobre a expressão e os gêneros de discursos. Na primeira obra, Aristóteles apresenta o que seria a primeira definição de gênero (PAVIANI et al., 2008):

O gênero é o que se predica por essência de múltiplos sujeitos que diferem em espécie e cumpre haver como predicados essenciais todos os termos, de uma forma tal, que se adequem com propriedade à questão: Que é o sujeito que está na nossa frente? [...]. Uma vez demonstrado, na controvérsia, que um animal é o gênero de homem, e também de boi, teremos demonstrado que ambos pertencem ao mesmo gênero, mas se mostramos que animal é o gênero de um, e não de outro, teremos demonstrado que eles não são do mesmo gênero (TÓPICOS, 5, 20-30, 102a).

Ao contrário de Platão, que condenava a retórica por questões ligadas à ética, Aristóteles procurou conferir-lhe autonomia, desvinculando-a da vigilância da filosofia. Assim, com a visão de universo organizado segundo uma hierarquia rígida, Aristóteles, em Retórica (Ars rhetorica), propôs que a oratória, a arte da persuasão, fosse organizada em tipos, com o intuito de capacitar escritores e oradores a produzirem diferentes gêneros, de acordo com dois aspectos: o propósito da enunciação e a audiência. Assim, a retórica foi transformada em uma disciplina com um corpo unificado de conhecimentos, conceitos e ideais. Por considerar a fala (o

discurso) como ‘forma de ação’ - ação específica e particular de persuadir -, ele acaba dividindo os gêneros discursivos na busca por dar conta de três instâncias de atuação do cidadão na polis grega (SILVEIRA, 2005, p. 49).

Definidos pelas circunstâncias em que são pronunciados, os gêneros da retórica aristotélica dividem-se em três, de acordo com o auditório a quem o orador se dirige, a saber: deliberativo, forense ou judiciário e o demonstrativo ou epidítico. De acordo com os auditórios, cada gênero retórico apresentava características específicas quanto ao tempo, ao ato, à finalidade e aos valores, como apresenta o seguinte quadro:

Quadro 3 - Os três gêneros do discurso de acordo Aristóteles

GÊNERO AUDITÓRIO TEMPO ATO VALORES ARGUMENTO

Judiciário (genus indiciale) Juízes Passado Acusar Defender Justo Injusto Entimema (dedutivo) Deliberativo (genus deliberativum)

Assembleia Futuro Aconselhar Desaconselhar Útil Nocivo Exemplo (indutivo) Epidíctico (genus demonstrativum)

Espectador Presente Louvar Censurar

Nobre Vil

Amplificação

Fonte: Adaptado de REBOUL, 2004, p. 47.

Concomitante ao desenvolvimento da retórica, o termo gênero também era usado na literatura, por iniciativa de Platão. Como dito anteriormente, a retórica aristotélica foi a primeira concepção de gênero com caráter discursivo, no entanto ao mesmo tempo circulavam as primeiras ideias sobre os gêneros literários apresentadas pela obra A República de Platão, mais especificamente no livro III, quando ele estabelece a divisão da literatura em três gêneros, concebida posteriormente como a divisão clássica da literatura, base para o desenvolvimento da teoria dos gêneros literários: épico, lírico e dramático. Conforme Staiger (apud BRANDÃO apud VAZ FERREIRA, 2011), é possível estabelecer uma interpretação temporal desses gêneros, em que o lírico estaria relacionado ao tempo presente, correspondendo à categoria “recordação”; o gênero épico estaria relacionado ao passado, correspondendo à categoria “apresentação”; e o dramático ligado à perspectiva de futuro, correspondendo à categoria “tensão”.

Para Pinheiro (apud VAZ FERREIRA, 2011), essa definição de gêneros está associada à representação do autor e dos personagens nas obras. Desse modo, estariam relacionadas ao gênero lírico as obras em que apenas o autor fala; ao dramático, as obras que apresentassem vozes apenas dos personagens; e no caso do gênero épico, ambos, autores e personagens, falariam. Essa divisão apresenta- se fundamentada no modo de enunciação dos textos.

Estudiosos literários reconhecem que a teoria dos gêneros deu-se a partir de Platão, no entanto atribuem a Aristóteles o mérito de introdutor dessa teoria, uma vez que este dedicou-se a estabelecer distinções referentes à arte, especialmente à arte poética, e a formular um conceito de gênero literário em consonância com a filosofia, com base na literatura grega, a partir da observação, resultando o seu caráter empírico-racionalista (SOUZA, 2008).

Aristóteles, em sua visão sistêmica, fundamentou a teoria dos gêneros literários na forma, no conteúdo e na hierarquia dos textos. Ele também considerou a evolução dos gêneros quando, em Arte Poética, afirmou: “A tragédia, dizíamos, evoluiu naturalmente, pelo desenvolvimento progressivo de tudo que nela se manifestava. De transformação em transformação, o gênero acabou por ganhar uma forma natural e fixa” (1988, p. 292).

Assim como Aristóteles, outros autores se dedicaram ao estudo dos gêneros literários. Entre eles, merece destaque Horácio, pela influência que exerceu tanto na poética quanto na retórica dos séculos XVI, XVII e XVIII. Em sua obra Epístola de Horácio, dedicou-se à evolução e classificação dos gêneros.

Durante o Renascimento, os autores Aristóteles e Horácio tiveram suas obras cultivadas como verdadeiros dogmas de fé ou leis imutáveis que os escritores, sem fazer qualquer consideração, só acatavam e as punham em prática. Esses autores, conforme Moisés (2003, p. 50), compreendiam os gêneros “como fórmulas e formas fixas, sustentadas por doutrinas expressas em regras diante das quais só restava aos escritores um caminho: aceitá-las e praticá-las”.

No século XIX, sob influência das ideias evolucionistas de Darwin sobre a espécie, o Romantismo, liderado por Victor Hugo, passou a questionar a incapacidade de compreensão da literatura quanto à evolução histórica dos gêneros literários. Para ela, conforme a tradição da Antiguidade, os gêneros apresentavam- se de forma estática para classificar as obras literárias, sem permitir qualquer pretensão de alteração através do tempo. Não concordando com essa visão, Victor

Hugo atacava as impropriedades da doutrina e classificação dos gêneros, enquanto Brunetière, influenciado pelo positivismo naturalista e adaptando o dogmatismo da doutrinas clássicas à teoria evolucionista de Darwin, encarava o gênero em um processo evolucionista (CUNHA, 2012).

A maneira como era tratada a questão dos gêneros, até então, atingia diretamente os ideais românticos que buscavam a livre e máxima expressão individual e original. Os românticos, sem a preocupação de se encaixar em padrões pré-definidos, resolveram modificar vários gêneros, da mesma forma que criaram outros tantos, colocando a aplicabilidade do conceito de gênero em dúvida e obrigando a classificação genérica a reconhecer o caráter histórico dos gêneros, tornando-se mais abrangente para se adaptar às modificações de época.

Essa resistência romântica teve como seu maior representante o filósofo italiano Benedetto Croce, que em sua obra Estética (1902) chegou a negar o conceito de gênero, defendendo o seu abandono. Toda essa aversão, ao invés de invalidar o conceito, serviu para provocar ainda mais a discussão sobre o tema, culminando, alguns anos depois, em um fato que atesta com clareza sua importância nos quadros da problemática literária - o III Congresso Internacional de História Literária, realizado em Lyon, na França, no período de maio a junho de 1939 -, um evento voltado exclusivamente para discussão do problema dos gêneros (MOISÉS, 2003).

O maior legado romântico para o conceito de gênero foi a dúvida sobre sua aplicabilidade. No entanto, vale destacar, conforme Bazerman (2006), que estudos literários atuais no que diz respeito a gêneros ainda apresentam uma visão antiga, com avaliações de trabalho de acordo com as suas espécies, retomando a tradição aristotélica. O autor chega a afirmar que “mesmo entre os críticos literários que superaram tais estigmas, os estudos literários continuam se preocupando, conforme a tradição, com um número limitado de gêneros literários que já estão encaixados dentro das práticas e dos pressupostos do sistema literário” (BAZERMAN, 2006, p. 25).

Quanto à retórica, em meados do século XX, houve uma redefinição, proposta por dois estudiosos, Chaim Perelman e Stephen Edelston Toulmin, centrada na negação da visão lógica da linguagem e na valorização do auditório como componente da argumentação, sendo esta compreendida através de construções históricas e sociais específicas. Dessa forma, a lógica passa a ser a do razoável,

baseada em valores construídos socialmente. Com o foco na argumentação circunscrita no ambiente jurídico, não se busca a negação da perspectiva clássica da retórica, ao contrário, busca-se aprofundar algumas teses de Aristóteles, visando combater o racionalismo descartiano.

Desse modo, apesar de a teoria de gêneros desenvolvida na Antiguidade Clássica ser considerada restrita diante das tantas formas discursivas atuais, os estudos de Aristóteles continuam servindo como base para o avanço dos estudos sobre gênero, seja na literatura ou na retórica.

2.2 Da Teoria Literária à Linguística - influências bakhtinianas na concepção de