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Cartilhas como fonte de pesquisa

No documento História da alfabetização e suas fontes (páginas 58-61)

Refl exões sobre o recurso didático cartilha não podem ser empreendidas à revelia de uma discussão sobre o signifi cado de livro didático ou livro escolar, área em que se situa, em função de sua natureza. Esse artefato cultural, o livro, somente nos últimos trinta anos tem sido objeto de estudo e tem merecido as mais diferentes abordagens de análise e críticas, tanto em nível internacional, como nacional. Para nossa refl exão, tomaremos, de início, alguns autores que se destacam por suas preocupações relacionadas ao livro escolar.

Lajolo e Zilberman (1996) abordam a questão do livro didático, afi rmando que talvez esse instrumento seja uma das modalidades mais antigas de escrita, visto que se constitui em uma condição para o funcionamento da escola. Ilustrando, as autoras mencionam a Poética de Aristóteles (século IV a.C.) e a Institutio Oratoria de Quintiliano (século 1 d.C.) como ancestrais do livro didático. De acordo com as autoras, o livro didático, apesar do berço ilustre, é o primo-pobre da literatura, tendo em vista sua natureza descartável, com “prazo de validade” determinado (Lajolo; Zilberman, 1996, p.120). Todavia, é o primo-rico das editoras, altamente vendável, com mercado cativo sempre crescente. Vender livros para o Ministério da Educação é um excelente negócio para qualquer editora, pois os livros didáticos são adotados em todas as etapas de escolaridade e é grande a quantidade de alunos a serem atendidos. Nada mais rendoso, para autores e editoras, do que atender as exigências das políticas públicas que defi nem as regras de produção, compra e distribuição de livros didáticos.

Embora com sua história minimizada e sua existência efêmera, o livro didático não interessa apenas às editoras e tipografi as que, desde Gutenberg, dominam os processos de sua produção. Para as autoras supracitadas, o livro didático interessa também, e muito, para a história da leitura, pois forma o leitor que, em última instância, vai tê-lo em mãos durante toda sua trajetória escolar.

Voltando alguns séculos na história da educação, Alves (2005) menciona Comenius, o bispo morávio que expressou a posição de vanguarda da Reforma protestante, contribuindo para a construção de uma concepção de escola moderna, em meados do século XVII, com a produção de sua Didactica Magna, que visava à simplifi cação do ensino e maior alcance do trabalho didático. De acordo com Alves (2005, p.70), “[...] a organização do trabalho didático, produzida por Comenius, representava uma ruptura com o conhecimento cultural signifi cativo e a instauração do império do manual didático no espaço escolar.”

Para Comenius, o uso do livro era um instrumento de democratização da escola, permitindo “ensinar tudo a todos”, pois com um pequeno número de professores muitos alunos poderiam aprender. Comparando o professor a um organista, que executa qualquer sinfonia olhando para a partitura, acreditava que também esse profi ssional poderia ensinar na escola todas as coisas, visto estarem escritas como que em partituras (Comenius, 1985, p.457). Alves apresenta argumentos relacionados ao estudo da constituição da escola no passado, concluindo que a escola atual guarda muito dos fundamentos presentes nas concepções de Comenius. Para o autor, a forma de organização do trabalho didático dominante na escola tornou-se anacrônica, o que a impede de cumprir uma função social adequada aos dias atuais (Alves, 2005, p.1-40), já que o que ainda predomina é o conjunto de práticas sugeridas pelo manual didático. O autor chama a atenção para um compromisso com o presente, deixando o domínio ideológico perpetuado por séculos.

Alain Choppin (2002, 2004) aborda aspectos do (atual) interesse de historiadores pelo estudo do livro escolar, destacando a riqueza e a complexidade dessa fonte histórica. Para o autor, esse tema foi negligenciado por muito tempo, em função de diversos fatores ligados ao próprio status desse recurso. Para Choppin (2002, 2004), a presença do livro escolar no cotidiano familiar, passado de uma geração a outra, seu baixo custo em função das grandes tiragens e a desatualização rápida frequentemente o tornam extremamente perecível. A proliferação de títulos, produzidos em larga escala, é também uma das maiores causas da banalização e desvalorização desse objeto de consumo pedagógico, obrigatório na maioria dos sistemas educacionais modernos.

Entendemos que esses fatores de desvalorização que atingem o livro didático ou os manuais escolares de todas as áreas do conhecimento também podem/devem ser considerados na análise das cartilhas de alfabetização, o primeiro livro didático apresentado à infância no seu processo de escolarização, pelo menos para os que se matricularam nas escolas brasileiras antes de 1996, ano em que o instrumento denominado cartilha foi substituído pelo Livro de Alfabetização.4

4 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), no formato atual, foi criado em 1985 e teve suas características

bastante alteradas a partir de 1996 devido, em especial, à instituição de um processo de avaliação prévia dos livros, que se orienta por critérios de natureza conceitual, política e metodológica (BATISTA; COSTA-VAL, 2004).

Considerando-se as muitas críticas ao uso dos livros didáticos na década de 1980, concomitantemente à defesa de novas concepções sobre alfabetização, esse marco de transição parece querer nos dizer que as cartilhas, usadas até então, eram representativas de concepções e métodos de ensino ligados epistemologicamente a correntes que valorizavam aspectos mais técnicos e mecanicistas, criticados em favor de novas concepções de ensino e de sujeito de aprendizagem, com destaque para uma alfabetização com base nas relações interpessoais de construção do conhecimento.

A utilização de cartilhas na alfabetização de crianças, como mostram vários estudos (nacionais e internacionais) e é do conhecimento de grande parte dos professores, sem nenhum exagero, chegava a absurdos relatados até mesmo na literatura pedagógica (final do século XX) e também memorialística (início do século passado).5 A transposição da linguagem cartilhesca para a sala de aula e seus

exercícios rotineiros e cansativos (desde as primeiras aprendizagens) faziam um triste e confuso papel nos momentos de ensino e explicitação da constituição da língua escrita. O uso desse recurso didático, presente nas salas de alfabetização, caracterizou o que Mortatti (2000b) denominou de Cartilhas: um pacto secular.

Não será exagero de nossa parte buscar em Anne-Marie Chartier (2001, p.9-26) mais uma qualifi cação para a cartilha de alfabetização, tomando-o de empréstimo à autora francesa, que, no texto “Um Dispositivo sem Autor: cadernos e fi chários na escola primária”, refl ete sobre e discute o conceito de dispositivo, baseando-se em Foucault, que o analisa como dispositivo de controle. A autora adota o termo para referir-se à utilização de cadernos e fi chários na escola primária, que acabaram por ser incorporados de tal modo às práticas escolares que parecem fazer parte do cotidiano da sala de aula desde sempre. Como se, naturalmente, lá estivessem de modo inofensivo. Sobre a presença da cartilha nas salas de aulas brasileiras durante um século aproximadamente, pode-se atribuir a ela a mesma função de dispositivo, este com autoria defi nida.

Tal dispositivo:

é uma realidade heterogênea, na qual se encontram entrelaçados “discursos, instituições, agenciamentos arquiteturais, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científi cos, proposições fi losófi cas, morais, fi lantrópicas, em suma: o dito tanto quanto o não dito” (Chartier, 2002, p.12).

Essas características abrem incontáveis possibilidades de estudo deste objeto da cultura escolar. A seguir, nos deteremos na sistematização dos trabalhos acadêmico-científi cos sobre cartilhas encontrados em dois dos principais bancos de dados do Brasil.

5 Lembramos aqui relatos de alguns memorialistas, como Graciliano Ramos (1955) e José Lins do Rêgo (1986). E de

alguns estudiosos do tema em pauta, como: Cagliari (1998), especialmente capítulo 4; Betthelheim, Zelan (1984), terceira parte; Macedo (1985); Dietzsch (1990, p.35-44). Até a fi gura cômica de Mafalda, usada por Quino (1989, p.112- 113), apresenta crítica a essa linguagem.

No documento História da alfabetização e suas fontes (páginas 58-61)

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