• Nenhum resultado encontrado

Reconstrução do passado através dos vestígios dos documentos ofi ciais: evidências sobre o ensino de leitura

No documento História da alfabetização e suas fontes (páginas 172-175)

em Minas Gerais na Reforma Afonso Pena, 1892

Gabriela Marques de Sousa Rogério Justino

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classifi car as pistas infi nitesimais como fi os de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira de ciladas (Ginzburg, 1989, p.151).

S

em fontes, não há escrita histórica. Ponto de partida da pesquisa – “[...] o ponto de apoio da construção historiográfi ca que é a reconstrução, no plano do conhecimento, do objeto estudado [...]” (Saviani, 2006, p.29) –, elas são os registros dos fatos, que permanecem calados se o historiador não souber questionar, e exprimem, em suas entrelinhas, uma história a ser revelada. São os vestígios de um tempo que já passou, em sua dimensão diacrônica. Esse último aspecto diferencia a ciência histórica das outras ciências humanas que estão “[...] interessadas, de perto ou de longe, pelos homens que vivem em sociedade [...]” (Prost, 2008, p.95).

As fontes históricas devem ser compreendidas como produções humanas, uma vez que foram constituídas com alguma fi nalidade, de maneira intencional ou não, fi cando a cargo do historiador reconstruir o passado do qual não fez parte, ou seja, “em contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria necessariamente ‘indireto’” (Bloch, 2001, p.51). Essa ideia esteve associada ao movimento1

1 Consideramos que o termo “movimento dos Annales” é mais apropriado que Escola dos Annales, corroborando a

posição de Burke (1991, p. 8), que atribui, ao termo “escola”, a concepção frequente de um grupo monolítico, com práticas históricas uniformes, quantitativa no que tange ao método, determinista em suas concepções, hostil, ou, até

dos Annales, em que a crença sobre o alargamento das fontes contribuiu para a problematização da história, assinalando uma nova possibilidade de se compreender o passado e dando um novo sentido para o papel do historiador.

Igualmente, a proposta historiográfi ca vinculada aos Annales não rejeitou o método do uso das fontes documentais, mas reconheceu que a reconstrução do passado se faz no tempo presente, a partir dos vestígios2 deixados ao longo da existência do homem (Bloch, 2001, p.68). O historiador, nesse contexto,

assume o papel de observador, incapaz de reproduzir novamente os fatos acontecidos, devendo se apegar aos testemunhos deixados pelos sujeitos que viveram naquele contexto. Esses testemunhos, apontados por Bloch (2001), são de natureza escrita, elevados ao status de fontes, e, portanto, importantes para as novas interpretações feitas pelos historiadores dos Annales.

As proposições do movimento dos Annales surgiram em contraposição a uma história historicizante e à cientifi cidade das verdades dos fatos, colocadas a partir da perspectiva positivista da história. Os percursores da revista tinham, como preocupação central, os “modos de pensar e sentir”, propondo uma história problematizadora, o que os levou a compor o princípio da história-problema,

preocupada com as massas anônimas, seus modos de viver, sentir e pensar. Uma história de estruturas de movimentos, com grande ênfase no estudo de vida material, embora sem qualquer reconhecimento da determinância do econômico na totalidade social, à diferença da concepção marxista de história. Uma história preocupada não com a apologia de príncipes e generais, em feitos singulares, senão com a sociedade global, e com a reconstrução dos fatos em série passíveis de compreensão e explicação (Vainfas, 2002, p.17, grifos do autor).

Embora a revolução dos Annales tenha sido signifi cativa para os estudos históricos, a inovação não está ligada ao método, mas aos objetos e às questões formuladas, isto é, “as normas da profi ssão foram integralmente respeitadas por L. Febvre e M. Bloch: o trabalho a partir dos documentos e a citação das fontes [propôs] uma história amplamente aberta, uma história total, empenhada em assumir todos os aspectos da vida humana” (Prost, 2008, p.39). Tratava-se, então, de compreender o todo e a parte.

Sendo o historiador aquele que procura saber algo (Le Goff , 1984), cabe-lhe compreender o passado para tentar atribuir signifi cações ao presente, em um movimento pendular, em que o primeiro é buscado para entender o segundo. Assim, “a história é fi lha do seu tempo”, como dizia Febvre, “[...] cada época elenca novos temas que, no fundo, falam mais de suas próprias inquietações e convicções do que de tempos memoráveis [...]” (BLOCH, 2001, p. 6). Essa nova postura adotada diante da história reverberou na análise

mesmo, indiferente à política e aos eventos, entendendo que esse estereótipo ignora tanto as divergências individuais entre seus membros quanto o desenvolvimento no seu tempo.

2 Diferente de Ginzburg (1991), que compreende a existência dos vestígios históricos dentro do documento, cabendo ao

historiador estar atento às entrelinhas para entender os detalhes de determinado fato, para Bloch (2001), os documentos se constituem como o próprio vestígio do passado, com indicação de pistas daquilo que ocorreu, fi cando a cargo do historiador compreendê-lo através do seu tempo, modifi cando as análises historiográfi cas e, consequentemente, produzindo novos conhecimentos de determinado período.

de documentos, não considerados mais como uma fonte intocável e verídica, mas que possibilitam entender o movimento historiográfi co, permeado de rupturas e continuidades. Desse modo, o passado

era uma “estrutura em progresso” [e] o mais claro e complacente dos documentos não fala senão quando se sabe interrogá-lo. É a pergunta que fazemos que condiciona a análise e, no limite, eleva ou diminui a importância de um texto retirado de um momento afastado (Bloch, 2001, p.6).

Desse modo, por mais longínquo que seja o passado, as fontes não representam a totalidade ou a veracidade do acontecido, mas parte dele, sendo possível utilizá-las independentemente do momento em que foram produzidas. No caso das fontes ofi ciais, dentre as quais consideramos as produzidas por órgãos ofi ciais do Estado, entendemos que elas compõem a parte de um todo, ou seja, tais documentos são fruto do pensamento de uma época, embebecidos da “verdade” defendida por cada grupo que estava, momentaneamente, no poder; logo, suas marcas são importantes para a compreensão do todo.

Por meio dos documentos ofi ciais podemos entender algumas das estratégias políticas adotadas pelo governo. No ensino primário, por exemplo, saber ler e escrever, durante a Primeira República, eram os elementos essenciais para levar a sociedade brasileira ao progresso e à civilização, e a educação era entendida como o remédio necessário para afastar o Brasil das moléstias do atraso (Nagle, 1971). Ao mesmo tempo, a utilização das cartilhas, nos processos de ensino-aprendizagem, nesse período, funcionou como um importante instrumento para a concretização de métodos e conteúdo de ensino atrelados ao ideário republicano, “contribuindo signifi cativamente para a criação de uma cultura escolar e para a transmissão da(s) tradição(ões)” (Mortatti, 2000; 2006).

Neste trabalho, preocupamo-nos, no primeiro momento, em evidenciar quais as ferramentas que disponibilizam esses documentos ofi ciais, demonstrando que a maneira de fazer história acompanhou as novas tecnologias que estão à nossa disposição, isto é, de que forma o surgimento de banco de dados online, responsável pela digitalização, compilação e divulgação de fontes, contribui para a escrita da história. Assim, ao lado de cartilhas, fontes orais, manuais, entre outros, a História da Alfabetização tem-se munido de fontes para corroborar seus conhecimentos no campo mais amplo da História da Educação Brasileira.

Em segundo lugar, este capítulo objetiva demonstrar como os documentos ofi ciais produzidos pelo Estado contribuem para a compreensão do ensino de leitura em Minas Gerais, durante a Primeira República. Para tanto, elegemos duas fontes da primeira fase do sistema republicano brasileiro: a primeira, o Relatório da Instrução Pública, Correios e Telegraphos, publicada em maio de 1891; e a segunda, em âmbito estadual, a Lei nº 41, de 03 de agosto de 1892.

O trabalho está dividido em dois momentos: o primeiro trata da localização dos documentos ofi ciais e o segundo busca fazer apontamentos sobre as potencialidades e limites das fontes ofi ciais, a partir de um ensaio sobre tais documentos, que infl uenciaram as práticas de leitura instituídas nas escolas primárias mineiras no início da Primeira República.

No documento História da alfabetização e suas fontes (páginas 172-175)

Outline

Documentos relacionados