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Destrancando as gavetas, abrindo os álbuns, remexendo nos baús: primeiras palavras

No documento História da alfabetização e suas fontes (páginas 90-95)

E

m tempos de selfi e e da expansão da tecnologia, a imagem se tornou uma linguagem comum e ágil na comunicação. No whatsApp, há os conhecidos emojis que expressam sentimentos, substituem objetos, palavras, expressões, locais etc. Esses ícones constituem, na contemporaneidade, uma língua universal.

O aparelho celular é um dos artefatos que permitiu ao campo visual ganhar cada vez mais espaço, modifi cando costumes, posturas e modos de interação e socialização. Na “linha do tempo” das redes sociais, o ambiente privado se tornou cada vez mais público; compartilhamos sentimentos, curtimos fotografi as, comentamos os vídeos e conhecemos, a cada postagem, a vida do outro, sem sair de casa. Todas essas circunstâncias provocam debates acerca do uso das tecnologias de informação e comunicação. Ainda que de forma tímida, no Brasil, as discussões geraram a aprovação da lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet, além de modifi car, por exemplo, os editais do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático)1 e do Prêmio Jabuti2 (CBL – Câmara Brasileira do

Livro). O primeiro edital incentivou, a partir de 2012, as editoras a inscreverem obras didáticas acompanhadas de conteúdos multimídia, seja audiovisual, jogo eletrônico educativo, simulador e/ou infográfi co animado; já o segundo edital permitiu a inscrição, desde 2015, de livros digitais na categoria denominada de “infantil digital”.

1 Programa Federal voltado à distribuição de obras didáticas aos estudantes da rede pública de ensino brasileira.

Atualmente, o PNLD abrange a educação básica, excetuando a etapa da Educação Infantil.

2 Prêmio organizado pela CBL (Câmara Brasileira do Livro), é “o mais tradicional e prestigiado prêmio literário do

Brasil, conferindo aos vencedores o reconhecimento da comunidade intelectual brasileira” (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, 2016, p.1).

Acompanhando esse progresso, a baliza entre o hábito de descartar e preservar fi cou ainda mais tênue. Baús, álbuns de fotografi as, armários foram substituídos pelos bytes das memórias dos celulares, dos discos rígidos (HDs). Quando estas memórias estão cheias, o jeito é apagar os arquivos obsoletos. Logo, em contexto de multiletramentos, escutamos frequentemente que a veloz evolução digital instaurou uma crise. Nora (1993) nos adverte que a aceleração da História, própria da atualidade, colocaria em risco a Memória, o que nos impele a um esforço na produção de “lugares de Memória”. O autor acrescenta que a esses lugares são atribuídos três sentidos coexistentes, o material, o simbólico e o funcional, fundando os museus, arquivos, cemitérios, coleções, exposições, festas, comemorações cívicas, monumentos, lendas, cantigas, álbuns, dentre outros.

Diante disso, podemos questionar: Quais serão os desafi os dos historiadores do futuro quanto ao estudo das recordações do tempo presente? Como terão acesso aos documentos históricos de hoje, se estão criptografados em nuvens e o acesso a programas, serviços e arquivos está aprisionado em senhas e códigos de entrada? Essas perguntas são questões que merecem atenção da historiografi a moderna e nos motivam a refl etir sobre o futuro da disciplina histórica e do ofício do historiador.3 Distante de cumprir

esse desafi o, mas ciente dessas imperativas provocações, neste trabalho discutiremos o uso da imagem como evidência histórica, legitimamente, como “lugares de Memória”.

O uso da imagem no campo historiográfi co remonta aos antiquários e aos seus colecionadores: as inscrições nas moedas e nos vasos de cerâmicas são representações de eventos do passado muito utilizadas nos estudos históricos; a compreensão da vida e cultura das primeiras civilizações foi realizada também a partir de imagens nas pedras, cavernas, túmulos, construções etc. Essa tradição, contudo, foi rejeitada pela pesquisa histórica que, a partir do século XIX, em busca do objetivismo científi co, garantiu a supremacia das fontes escritas. A hegemonia do positivismo e do historicismo e o advento da escola metódica silenciavam todo e qualquer documento que não fosse inscrito sob a égide da neutralidade e da objetividade. A análise de um documento restringia-se à sua crítica externa e interna.

A partir do início do século XX, sobretudo, o trabalho empreendido por Febvre e Bloch, na fundação dos Annales d’histoire économique et sociale, insatisfeitos com os rumos e a preeminência da História Política, possibilitou a plasticidade das fontes documentais. Há que se considerar que o movimento conhecido por Escola dos Annales integrou as diferentes áreas das ciências e incentivou a inovação temática. A História passa a ser vista como ciência “dos homens, no tempo” (Bloch, 2001, p.55) e os documentos são resultados da seleção e do questionamento do historiador:

O historiador os reúne, lê, empenha-se em avaliar sua autenticidade e veracidade. Depois do que, e somente depois, os põe para funcionar... Uma infelicidade apenas: nenhum historiador, jamais, procedeu assim.

3 Sobre isso, Burke afi rma que “nos próximos anos, será interessante observar como os historiadores de uma geração

exposta a computadores, bem como à televisão, praticamente desde o nascimento e que sempre viveu num passado saturado de imagens vai enfocar a evidência visual em relação ao passado” (BURKE, 2004, p.16). Para aprofundar as refl exões acerca da intersecção entre História e Informática, ver: Figueiredo (1997) e Tavares (2012).

Mesmo quando, eventualmente, imagina fazê-lo. Pois os textos ou os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-los (Bloch, 2001, p.79).

Na confl uência desse pensamento, a renovação dos estudos historiográfi cos reverberou na chamada História Nova. Na década de 70 do século passado, Le Goff e Nora (1976) copilaram ensaios numa obra organizada em três volumes, propondo novos problemas, novas abordagens e novos objetos na escrita da História. No terceiro volume dessa coletânea, está publicado o artigo “O Filme: uma contra-análise da Sociedade?”, de Marc Ferro (1976). Embora Ferro se ocupe da convergência entre cinema e História, tratando da imagem em movimento, ele esboça o método de análise para a leitura de fi lmes russos e consagra o estudo da imagem como parte do métier do historiador.

A iconografi a, a partir de então, volta com grande impulso à Academia, originando diversos trabalhos emblemáticos, que demonstram, em cada época e sobre objetos diferentes, a vivacidade e a dinamicidade dessa fonte. Não podemos deixar de mencionar a vasta contribuição da História Cultural, a partir dos conceitos de representação, imaginário, narrativa, fi cção e sensibilidade, que permitiu “a renovação das correntes da história e dos campos de pesquisa, multiplicando o universo temático e os objetos, bem como a utilização de uma multiplicidade de novas fontes” (Pesavento, 2005, p.69). Afi nal, a proposta da História Cultural é “decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar àquelas formas, discursivas e imagéticas, pelas quais os homens expressam a si próprios e o mundo” (Pesavento, 2005, p.42).

Segundo Kossoy (2001), no Brasil, na década de 1990, o interesse pela fonte iconográfi ca aumenta, e a fotografi a, por exemplo, é utilizada nas diversas áreas da História, abarcando, desse modo, a História da Educação. O mesmo autor ainda afi rma que a fotografi a não pode ser considerada um testemunho real e direto dos fatos sociais. Vista assim, ela se investe das mesmas características que a História Metódica empreendeu na análise dos documentos escritos. A preocupação era de verifi car a autenticidade das fontes, colocá-las numa ordem serial, imperando a crença de que elas falavam por si mesmas, numa dada naturalidade do conhecimento histórico. Em contraposição, o paradigma emergente da historiografi a concebe a imagem como conteúdo cultural socialmente construído e com alto caráter conotativo.

A fotografi a, na concepção positivista, era um objeto do tempo presente e, como a História só se preocupava com o estudo do passado, as imagens capturadas pelas máquinas dos fotógrafos eram descartadas como fonte para a pesquisa histórica. A perspectiva de Langlois e Seignobos (1992) infl uenciou a edição de vários Manuais de História não somente na França, e as imagens, quando utilizadas, o eram para confi rmar o conteúdo dos documentos escritos, evidenciando os objetos materiais e sua aparência externa, especialmente nos estudos da civilização material. Segundo Borges (2008), no fi nal do século XIX, quando a fotografi a foi incorporada aos livros didáticos, usavam-na para reproduzir as obras de arte de cenas de feitos heroicos, que estavam em museus e nos palácios. Para Benjamin (1987), as invenções dos métodos de reprodução das obras de arte, paulatinamente, transformaram os modos de o homem perceber e sentir o mundo. Embora sensibilidade e percepção sejam conceitos subjetivos e terminologicamente ligados à ordem do psiquismo, são construtos de um movimento histórico e não de uma ordem natural da evolução do ser humano.

A aproximação da fotografi a do campo historiográfi co foi acompanhada de uma evolução gradual das câmeras fotográfi cas e das técnicas dos fotógrafos. A fotografi a permitiu um outro olhar sobre o mundo, como nos aponta, metaforicamente, Benjamin (1987, p.107): “é à luz dessas centelhas que as primeiras fotografi as, tão belas e inabordáveis, se destacam da escuridão que envolve os dias em que viveram os nossos avós”. Ou seja, a imagem fotográfi ca clarifi cou a nossa visão sobre as coisas que nos cercam, pois a captura de uma cena permite-nos observar detalhes imperceptíveis a “olho nu”. Nesse sentido, Benjamin assevera:

A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá o passo. A fotografi a nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografi a revela esse inconsciente ótico [...] (Benjamin, 1987, p.94).

Sabemos que o universo iconográfi co é demasiadamente extenso, envolve inúmeros tipos de imagens e grande quantidade de técnicas usadas para sua produção. Dada a amplitude das iconografi as, e diante dos diversos recursos audiovisuais disponíveis hoje no mercado, focaremos, neste trabalho, apenas as imagens visuais planifi cadas. Portanto, ao nos referirmos às iconografi as, no contexto desse artigo, empregaremos essa palavra como sinônima de desenhos, pinturas, fotografi as.

Feitas essas considerações, este texto objetiva compreender a história do ensino de leitura e escrita, especialmente no estado de São Paulo, no fi nal do século XIX e início do século XX, direcionando nosso olhar ao uso das iconografi as como fonte na historiografi a e instrumento para condução dos métodos de alfabetização no Brasil.

O trabalho está organizado em três tópicos, inspirados nos versos do poema “Procura da Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade:

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície inata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. [...]

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave? [...] (Andrade, 2007, p.106).

Do mesmo modo que esse poema suscita a descoberta das faces secretas das palavras, que se escondem sob a expressão neutra, aparente e usual dos signos linguísticos, no primeiro tópico deste texto, intitulado “Penetra surdamente no reino das imagens: o uso das iconografias nas pesquisas em História da Alfabetização”, evidenciamos, por meio de um levantamento no Banco de dados da Capes, como a imagem tem sido explorada nas teses e dissertações do campo temático da História da Alfabetização, ao mesmo tempo que apresentamos os principais cuidados do pesquisador no tratamento e crítica da iconografia; no segundo tópico, “Chega mais perto e contempla: as imagens na alfabetização do início do Século XX”, apresentamos os argumentos que sustentaram o uso da imagem em cartilhas destinadas ao ensino de leitura e escrita,4 produzidas no início do século XX, constituídos no debate empreendido

nos artigos da Revista de Ensino – Órgão da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, entre os anos de 1902 e 1918, acerca de qual seria o melhor método de ensino de leitura e escrita para a formação do cidadão republicano; por fim, em “Palavras finais: trouxeste a chave?”, refletimos sobre a potencialidade do uso da imagem nas pesquisas históricas do ensino primário, em especial, do ensino inicial de leitura e escrita.

Estudar imagens, assim como qualquer outro documento, requer do pesquisador saber localizá- las, tratá-las e analisá-las. Saindo da esfera pública dos arquivos, museus e dos outros lugares públicos de memória, há várias imagens testemunhas oculares do cotidiano escolar, que se escondem nos álbuns familiares; estão em locais mais privados – gavetas, caixas, baús –, embaladas de afeto e repletas de resistência ao modelo ofi cial de escola. Essas iconografi as ainda precisam ser descobertas, e mesmo às que já estão expostas e acessíveis, se requer um olhar mais sensível, ao estilo que Chauí (2000) tão bem caracterizou: um olhar refl exivo e despido de convenções, de modo que “a visão depende de nós, nascendo em nossos olhos – e em sua passividade – a visão depende das coisas e nasce lá fora, no grande teatro do mundo” (Chauí, 2000, p.34).

4 Embora o termo que impulsionou a coleta de dados no Banco da Capes tenha sido História da Alfabetização,

esclarecemos que as fontes utilizadas nas análises aqui empreendidas estão situadas num período em que a terminologia usual era ENSINO DE LEITURA E ESCRITA. Para compreender o surgimento do termo alfabetização, ver: Mortatti (2004).

Penetra surdamente no reino das imagens: o uso das

No documento História da alfabetização e suas fontes (páginas 90-95)

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