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5.2 Análise das categorias

5.2.1 Cuidado da criança com condição crônica no domicílio

5.2.1.9 Caso da criança M9 e do cuidador C7

M9 é uma menina de sete anos, com condição crônica grave, que mora com o pai C7, com o avô e a avó paternos, dois tios e uma prima. M9 é parcialmente dependente do cuidador C7, que não trabalha fora do lar e é o principal cuidador de M9 desde que ela tinha cinco anos de idade.

C7 relatou que se separou da mãe de M9 e a criança ficou sob seus cuidados. O discurso de C7 revela o seu entendimento de que há possibilidade de relação entre a depressão pós-parto sofrida pela mãe da criança e o posterior “abandono”:

[...] eu terminei com ela [mãe de M9] tem mais ou menos uns dois anos, aí ela foi pra casa da mãe dela, aí na casa da mãe dela ela ficou uns três meses, aí vinha, pegava a menina, ficava uma semana lá, ficava uma semana aqui, só que de repente ela sumiu da casa da mãe dela também; então, às vezes ela entra em contato de dois em dois meses pela rede social, conversa, mas nem pergunta da menina direito. Ninguém sabe onde que ela tá, pelo menos a mãe dela fala que não sabe também. Então ela abandonou a menina, isso tem um ano, que a menina não vê ela, não conversa com ela e nem nada. [...] Ela teve depressão pós-parto, não quis cuidar também, eu não sei se isso influenciou, então ela decidiu. Aí eu falei “Não, então vamos terminar já que não tá dando certo”. Aí ficou três meses de boa, vindo e vendo a menina, levava e tal, tudo tranquilo, aí surtou e sumiu [...]. Por causa dessa depressão pós-parto ela já num era tão ligada à menina, cuidava e tudo, mas às vezes era muito estressada. Tanto que eu até falo sempre fiz papel de mãe, porque ela era muito assim... (E7.12).

Segundo C7 a criança sentia falta da mãe, mas com o tempo parou de chamar por ela:

Só que até que no começo [que a mãe foi embora] a menina sentia falta dela, falava o nome dela, sei que deve sentir, é lógico, ela é mãe, mas ela fala pouco. Ultimamente ela não tem falado o nome dela, que ela a chama ela pelo nome, olha pra você ver, nem chama ela de mãe [...] (E7.13).

O cuidador relatou a rotina de cuidado com a criança expondo os cuidados que realiza no domicílio. Verificou-se que C7 organiza a sua vida em torno dos cuidados demandados pela filha e se organiza para cuidar da criança e das atividades domésticas como lavar louças, limpar a casa, preparar a comida (Ob7.13.1) e levá-la aos acompanhamentos com profissionais de saúde. Ao relatar a rotina de cuidado, C7 falou sobre as necessidades de M9, tais como utilização de fraldas devido à incontinência fecal e urinária, e sobre a necessidade de alimentação pastosa:

Ela por enquanto usa fralda ainda, tem a fisioterapia, terapia dela, ela vai toda quinta-feira. Ela não tá na escolinha ainda, então mais é médico porque ela é tranquila, põe desenho assiste, brinca [...] (E7.1).

Eu que levo ela pros acompanhamentos [...] aí tem a T.O., essa [fisioterapia] motora e a fono. Por enquanto só tá na quinta-feira mesmo [...] (E7.10).

Em relação à utilização de fraldas, o cuidador relatou que já tentou ensinar M9 a utilizar o urinol infantil e que a criança “até que sentou, só que ela não entende, a gente explica que é pra fazer xixi, mas ela não entende” (Ob7.20).

Outra necessidade de M9 apontada pelo cuidador refere-se à alimentação. Segundo C7 a criança possui dificuldade de mastigação e ingere alimentos amassados ou processados no liquidificador, salvo algumas exceções, conforme pode ser verificado no relato a seguir. O cuidador afirmou que ele mesmo prepara a alimentação da criança e esporadicamente sua mãe ou sua prima preparam (E7.5):

[...] Ela ainda come amassadinha porque ela retirou a sonda tem uns três anos, só que ainda eles [médicos do Hospital Público de Ensino] ainda não olharam [...]. Algumas coisas só ela come sólido que é banana, biscoito, pão, esses trem, mas arroz, feijão e carne não, tem que ser amassado ou batido (E7.2).

[...] carne não tem como, ovo a gema ela já come, macarrão ela come. Só tipo assim o arroz, o feijão é a casquinha que pode agarrar, e o arroz ela ainda não tem aquela mastigação boa, mas a fono falou que ela tá muito bem mesmo. A sopinha ela come, macarrão ela come. Ela é boa pra comer, agora tem que sentar com ela, ficar conversando. Agora, quando ela quer, ela come sozinha. Frango, bife, se arroz já é difícil, carne é mais complicado, então tem que bater mesmo (E7.6).

Durante a observação foi possível acompanhar C7 preparando a alimentação da manhã para M9: o cuidador conversou e interagiu com a criança, lhe ofereceu o alimento, ela não aceitou e depois se aninhou no colo do pai:

C7 me diz que M9 acabou de acordar e vai preparar o leite dela. O pai sai da sala, se encaminha para a cozinha, vejo que ele pega uma caixa de leite na geladeira, coloca em um copo e depois coloca no micro-ondas. Ao fechar o micro-ondas C7 chama pela filha para apertar os botões do aparelho. Ele olha para mim e diz que a criança adora apertar os botões e que ele sempre a chama. M9 vai até a cozinha e aperta os botões indicados pelo pai. Ela olha para dentro do micro-ondas através do vidro e sorri quando o copo começa a girar. Depois ela retorna para a sala, se deita no sofá e olha fixamente para a televisão. C7 mistura cereal infantil com o leite, coloca a mistura em um copo de transição - copo que possui alças e um bocal largo e macio que facilita na transição da mamadeira para o copo -, tampa e traz para a sala. C7 oferece o copo para M9, ela balança a cabeça em negativa e franze o cenho. O pai coloca o copo sobre o raque e se senta ao lado da filha. M9 abraça o pai, se deita no colo dele e continua olhando para a televisão (Ob7.5).

Após aproximadamente 10 minutos C7 ofereceu novamente a alimentação para M9, que aceitou, se deitou no colo do pai e tomou a mistura. Depois que a criança tomou todo o líquido C7 preparou outro copo da mesma mistura e ofereceu para M9, que não aceitou,

balançando a cabeça em negativa. O cuidador relatou que oferece o segundo copo, mas que nem sempre a criança aceita(Ob7.6).

Observou-se C7 oferecendo o almoço para M9, mas a criança franziu o cenho, balançou a cabeça em negativa e continuou brincando. C7 relatou que M9 almoça até as 14:00 ou então não almoça, somente janta, mas que todos os dias ele oferece a ela o almoço e inicia a oferta às 12:00 e que “às vezes ela aceita” (Ob7.18).

Ainda em relação à alimentação C7 relatou que cuida para que a criança não coma somente o que ela deseja, mas também os outros alimentos. Segundo ele, “Se for pra deixar beber leite, ela bebe o dia inteiro, às vezes ela almoça e quando ela tá muito assim pra comer eu dou ela um iogurte com biscoito, aí eu deixo pra dar ela comida na janta” (Ob7.17.1). Além disso o cuidador relatou que é necessário estimular M9 a se alimentar dizendo, por exemplo, que vai dar sorvete ou vai levá-la para visitar os primos após almoçar(Ob7.17.2).

O cuidador relatou que M9 tem dificuldades de audição, fala e visão (Ob7.13.2). Segundo C7 a filha sabe reclamar quando a fralda está suja, fazendo gestos com as mãos, mas não compreende diálogos. Exemplificou: “Ontem ela fez um desenho e falou que era o cachorro. Só que eu fui perguntar: ‘O que é isso?’, ela vai e repete ‘O que é isso?’, ela não sabe que a gente tá perguntando pra ela”. O cuidador relatou ainda que M9 aprendeu a falar

“eu não” quando perguntam para ela se quer algo (Ob7.16). Observou-se que em relação à

audição e à fala de M9, pai e filha utilizam a estratégia de se comunicarem por gestos:

C7 oferece biscoito e água, a criança franze o cenho, faz gestos com as mãos e o pai diz que não está entendendo o que ela quer. Ela então se levanta do colo do pai, vai até a televisão e aponta para alguns DVDs que estão sobre o raque. C7 diz “Ah, então você quer os seus DVDs?”, e M9 sorri (Ob7.8).

No que diz respeito à visão de M9, o cuidador relatou que há diminuição da visão devido ao coloboma e que ela iria iniciar o uso de óculos. Segundo C7, somente um dos olhos foi afetado pela síndrome de Charge e os profissionais de saúde ainda “não sabem o quanto ela enxerga” (Ob7.9.3).

O cuidador relatou também a cirurgia a que M9 foi submetida, há aproximadamente três anos para retirada da gastrostomia, e a indicação do cirurgião para que a ferida cirúrgica fechasse sem intervenção. Dessa forma, há uma fístula no abdome da criança, da qual extravasam líquidos após a ingestão, principalmente de leite (Ob7.9.2). Segundo o cuidador não há cuidado específico com o local:

Não tem que ter algum cuidado onde que fez a gastro. Tranquilo, não põe nada, ele [cirurgião] falou que não precisa colocar nada, entendeu? Ele esperou pra ver se fechava sozinho, mas ainda não fechou, mas é tranquilo, nenhum problema (E7.4.2).

O pai manifestou receio de que a filha fique “nervosa” quando crescer, devido à síndrome de Charge, e disse que tem esperança de que isso não ocorra quando M9 estiver frequentando a escola (Ob7.15.1).

O cuidador relatou que parou de trabalhar quando assumiu os cuidados de M9 e que as suas despesas e as da criança são providas com o auxílio da mãe, que trabalha fora do lar, do pai, que é aposentado, e com o Benefício de Prestação Continuada: “O problema é porque agora eu não posso trabalhar, eu tenho que ficar por conta dela, aí é só isso” (E7.3).

Destaca-se o papel do pai como cuidador principal da criança. Esse se constitui em um achado novo quando comparado com outros estudos sobre criança com condição crônica (TAVARES, 2012; NISHIMOTO; DUARTE, 2014; SILVA et al., 2010; NÓBREGA et al., 2010; BARBOSA, D. C. et al., 2012). A família neste caso constitui-se uma considerável fonte de apoio para que o pai possa assumir integralmente o cuidado da criança, abdicando de vários aspectos da vida pessoal, tal como trabalhar fora do domicílio.

No processo de produção do cuidado o pai se divide entre as responsabilidades do cuidado demandado pela criança e as tarefas do domicílio. E é nessa dinamicidade da vida cotidiana que ele se depara com dificuldades que vão além da complexidade de cuidar de uma criança com condição crônica, envolvendo sentimentos como o medo e a incerteza em relação ao futuro da criança.