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Quando se efectua uma análise histórica do panorama educativo português, durante o século XX, facilmente se conclui que a nossa realidade se distancia da sequência de

acontecimentos ocorridos em outros países e, nomeadamente, nos de orientação democrática. Em Portugal, não podemos deixar de considerar duas fases distintas, caracterizadas por realidades sociais, económicas e mesmo culturais, diametralmente opostas, fruto dos regimes políticos que vigoraram no país durante o século passado. De facto, há que olhar para o fenómeno da educação, considerando, não só “a problemática da governabilidade da educação e da sua articulação política com a construção da democracia” (Correia, 2000:8), mas também recolocando nesse olhar as perspectivas que emergiram do movimento revolucionário de 25 de Abril. A primeira fase, intimamente associada a um regime ditatorial e autoritário, caracterizado pela apologia da homogeneidade cultural e desvalorização das culturas diferentes, e a segunda fase, que vigorou a partir do último quarto do século, onde a diversidade cultural e o regime político democrático se foram, paulatinamente, afirmando, associada também à entrada do país, como membro de pleno direito, na Comunidade Europeia.

1.2.1.1. - Antes do 25 de Abril

Antes do 25 de Abril de 1974, altura em que ocorreu a revolução popular, embora com pequenas variações, a situação sociopolítica portuguesa, típica de um regime ditatorial, condicionou de sobremodo o contexto educativo nacional, fruto do carácter doutrinador e disciplinador que o regime fazia passar através das estruturas de ensino, bem como do isolamento do país, gerando um imobilismo quase total nos currículos escolares (Roldão, 1999b:18).

Ao longo de quase meio século, durante os períodos de ditadura de António Salazar e, mais tarde, do regime de Marcelo Caetano, o país foi governado com base no conservadorismo, no autoritarismo e na anti-democracia onde “a educação obedecia aos preceitos de Deus, Pátria e Autoridade” (Stoer & Dale, 1999:67). Assim, durante grande parte do século passado, vigorou nas escolas a exortação do espírito nacionalista, cristão, moralista e controlador da acção pedagógica, baseada na promoção do padrão cultural português. A escola passou a ser considerada a instituição privilegiada para a formação do homem submisso que os novos princípios exigiam.

Os discursos evangelizadores e civilizadores de Portugal, assim como as políticas educativas, tinham uma concepção estadocêntrica e homogeneizante “que determinava tanto a acção didáctica dos professores como a administração do seu trabalho” (Correia, 2000:19). Para melhor concretizar a ideologia dominante, no Portugal do Estado Novo, segundo Cortesão (2000:24), os professores eram formados e estimulados a trabalhar numa escola que se assumia como selectiva, concebida para a classe média e média alta urbana ou, em oposição, para os filhos da classe operária, destinados a frequentar as escolas técnicas e comerciais (Gomes, 1999:136). Como tal, no dizer de Leite (2003:60), à escola e aos professores estavam associados papéis de meros transmissores do saber, tendo em consideração a preparação da vida futura, entendendo-se que o futuro não era distinto do presente. Evidentemente, neste contexto, a planificação escolar dos professores limitava-se a distribuir os conteúdos programáticos no espaço temporal e o processo de avaliação dos alunos não ia além da quantificação dos testes realizados de tempos a tempos, assentes em processos de memorização com vista à consecução de objectivos definidos.

Paradoxalmente, nos últimos anos deste regime, pela via da reforma Veiga Simão, os discursos políticos passam a associar a educação à democracia, defendendo a “democratização do acesso à escola que não só legitimasse e naturalizasse uma ideologia educativa meritocrática como também assegurasse uma modernização do sistema educativo português” (Correia, 2000:6), seguindo os países do centro da Europa. Apesar desta retórica de justiça social, este facto não provocou alterações educacionais significativas, continuando a promover uma educação homogeneizante, alicerçada na oportunidade de acesso à escola, na qual todos os alunos eram culturalmente uniformizados, típicos do paradigma da modernidade.

Nessa época, apesar de, no campo educativo, tender-se a associar as concepções de ciência integrada e a reforçar-se a interdisciplinaridade na vertente científica, o currículo era organizado numa lógica de colecção (Bernstein, citado por Silva, 2000), elaborado centralmente e em função da cultura padrão. Neste fazia-se a apologia da aprendizagem dos conteúdos, com a finalidade única de formar indivíduos padronizados segundo os trâmites sociais e, nele, o professor era um mero dissipador do currículo, veículo de promoção de uma cultura uniforme, traduzida na existência de um manual escolar único.

Em função deste panorama, podemos afirmar que nas escolas portuguesas, até 1974, de um modo geral, o processo educativo era organizado com base num paradigma racionalista académico tradicional, típico dos países ocidentais, que vigorou na primeira metade do século XX. Neste contexto, Leite (2003:63) refere que durante esse século, apesar de terem existido pequenos salpicos inovadores ao nível da educação, “eles representaram acções isoladas e, por isso, talvez se compreenda termos chegado aos anos 70 com uma escola e um currículo que se continuava a orientar pelo paradigma da mera instrução”.

1.2.1.2. - O pós 25 de Abril e a entrada de Portugal na Comunidade Europeia

A Revolução de Abril veio acordar o povo Português para uma alvorada de liberdade, esperança e alegria. Aos poucos, embora com sobressaltos próprios da vontade por vezes incontrolável de mudança, os sustentáculos estruturais do regime fascista foram- se demolindo, dando lugar à construção dos alicerces da democracia - a elaboração e aprovação da nova Constituição da República, em 1976, pela Assembleia Constituinte, permitiu configurar uma forma livre e democrática de viver. Passados os conturbados anos do pós-revolução, o país vai interiorizando a nova ordem democrática, traduzida numa maior maturidade ao nível dos diferentes intervenientes sociais, e, progressivamente, a estabilização do regime político e a consolidação da vida em democracia permitem que Portugal retome, por mérito próprio, o seu lugar no conserto das nações e integre, como parceiro efectivo, um espaço europeu que se pretende de partilha de valores humanos de liberdade, igualdade, justiça e solidariedade.

Todas estas mudanças, verificadas a nível político, social, económico e cultural, provocam alterações significativas nas políticas educativas consubstanciadas na Lei n.º 46/86 de 14 de Outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada na Assembleia da República. Segundo Teodoro (1996:370), “Normalizada a vida política portuguesa a questão de uma Lei de Bases do Sistema Educativo ganhou de novo relevo no debate educativo do nosso país. Tratava-se de, nas novas condições de uma sociedade democrática, retomar a ideia de um desenvolvimento do sistema educativo, coerente,

articulado e planificado, que respondesse aos desafios de modernização resultantes da integração de Portugal na Comunidade Europeia”.

A Lei de Bases do Sistema Educativo Português pretende, assim, responder ao desafio das tendências sociais da pós-modernidade, ao defender a identidade nacional; ao realçar a importância da formação pessoal, moral e cívica assim como a realização pessoal e comunitária do indivíduo; ao pretender proporcionar uma formação apropriada à integração na vida activa; ao defender a flexibilização das estruturas e acções educativas; ao assegurar a igualdade de oportunidades para todos e ao contribuir para o desenvolvimento do espírito e da prática democráticas, dando oportunidade a que todos os agentes educativos possam participar na vida da escola em todas as suas vertentes.

De facto, a Lei de Bases do Sistema Educativo veio consagrar, nos seus princípios gerais (artigo 2.º), um novo conjunto de finalidades que orientarão toda a acção educativa futura e de que, entre outras, importa destacar:

- a democratização do ensino e a efectiva igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolar;

- o respeito pelo princípio da liberdade de aprender e ensinar;

- o incentivo à formação de cidadãos livres, responsáveis, autónomos e solidários; - a promoção do desenvolvimento do espírito democrático e pluralista;

- o empenhamento na transformação progressiva do meio social em que os cidadãos se integram.

Estes princípios revelam uma forte determinação de mudar radicalmente os pressupostos ideológicos que suportavam a política educativa do regime anterior e lançam bases para uma reforma educativa que privilegie, na construção do novo sistema educativo, os valores humanos e sociais emergentes da revolução de Abril. Como a Lei de 1986 expressa: “O sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação, que se exprime pela garantia de uma permanente acção formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade” (Lei n.º 46/86 de 14 de Outubro, artigo 1.º, ponto 2).

A sociedade portuguesa, na figura dos seus representantes políticos, entendeu que uma nova política para a educação requeria, também, professores novos, professores com

uma qualificação elevada em termos culturais, científicos e pedagógicos, capazes de responder, com sucesso, aos renovados e interessantes desafios educativos. Em conformidade com este entendimento, a Lei de Bases do Sistema Educativo, no seu artigo 30.º, define os princípios gerais a que obedece a formação de professores, de onde parece importante realçar algumas das intenções enunciadas:

- Uma formação inicial de nível superior para todos os professores;

- Uma formação contínua que complemente e actualize a formação inicial numa perspectiva de formação permanente;

- Uma formação que favoreça e estimule a inovação e a investigação; - Uma formação participada que conduza a uma prática reflexiva constante.

Estas mudanças profundas na sociedade portuguesa, associadas às elevadas taxa de insucesso e de abandono escolar culminam com a reforma educativa, que se seguiu à aprovação da Lei de Bases de 1986, e que não teve uma implementação pacífica.

Nessa altura, os normativos prevêem, à luz de uma teoria construtivista e, de certo modo, crítica2, uma profunda mudança pedagógica no campo educativo, com a utilização de pedagogias centradas no aluno e a possibilidade, mediante a elaboração do projecto educativo a nível da escola, da gestão de currículos alternativos de âmbito local, a fim de ser alcançada uma melhoria na qualidade da educação. Assim, ao nível das intenções declaradas, passa a dar-se mais importância à forma como se ensina em detrimento do que se ensina, havendo uma preocupação com a diversidade cultural e social dos alunos, com a ligação da escola com a comunidade envolvente e com os projectos de escola numa perspectiva interdisciplinar (através de uma componente curricular não disciplinar – Área Escola e Área de Formação Pessoal e Social). No entanto, na prática, a extensão dos programas, a ausência de articulação vertical e horizontal entre as diferentes disciplinas, a inexistência de sequencialidade entre os três ciclos do ensino básico, a deficiente ou inexistente formação dos professores, associada à introdução precipitada da reforma educativa, traduziram-se na inexistência de alterações profundas, consubstânciadas num

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Pacheco (2001:160) defende que apesar desta Reforma Educativa ter sido elaborada segundo princípios construtivistas, o facto de ser dada grande importância ao cumprimento das actividades previstas por parte do professor, torna-o num executor do currículo.

“modelo centralizado e prescrito, com laivos de desconcentração, determinado por uma lógica burocrática” (Pacheco, 2001:163-166).

Assim, talvez devido à existência de uma panóplia de contradições e paradoxos associados aos processo da Reforma Educativa iniciado nos finais dos anos 80, apesar das intenções políticas, a acção pedagógica e as metodologias utilizadas pelos professores e, principalmente, a organização curricular do acto educativo, mantiveram-se sensivelmente inalteradas e uniformizadas, embora o espectro cultural nas salas de aulas começasse a ser progressivamente mais amplo.

Apesar disso, parece existir, entre os professores, a ideia generalizada de que a reforma introduziu aspectos positivos e alguns até bastante inovadores na sua prática pedagógica, como é o caso da Área-escola, mas que nem sempre foram acompanhados de meios, de natureza diversa, imprescindíveis à sua concretização no terreno (Brazão & Sanches, 1997). As orientações futuras, em matéria de política educativa em Portugal, para além de tomarem em consideração os dados de avaliação produzidos pelos mecanismos de regulação do próprio sistema educativo, deverão ser, essencialmente, determinadas pela política educativa desenhada ao nível do espaço comum europeu.

A passagem da Comunidade Económica Europeia a União Europeia veio alargar e institucionalizar uma prática de políticas comuns que abrange todos os sectores de actividade humana e social. A educação e a formação profissional terão, neste contexto, um papel determinante como garantia de apropriação, pelas futuras gerações, de valores comuns que, no respeito pelas identidades nacionais, corporizem e reforcem uma cultura europeia (Patrício, 1989; Martins, 1996). Os mesmos autores identificam valores de caracter universal que constituem a matriz cultural/educativa europeia: a liberdade, o pluralismo, a justiça social, a solidariedade e a paz, e sublinham a importância que os mesmos devem ter na concepção dos programas de formação de professores.

Em síntese: tivemos como objectivo central deste discurso apresentar as características essenciais da sociedade em geral e da escola/educação, em particular, para, a partir destas, perspectivarmos e explicitarmos a actual função docente que será alvo do nosso estudo no próximo capítulo deste Enquadramento Teórico.

Capítulo 2