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3.2 AS PREMISSAS DA ARGUMENTAÇÃO: ACORDOS PRÓPRIOS DE CADA

3.2.2 Apresentação dos dados e forma do discurso

3.2.2.3 Figuras de retórica e argumentação: escolha, presença e comunhão

3.2.2.3.6 Categoria do preferível: os valores, as hierarquias e os lugares

presunção referente ao caráter sensato de toda ação humana.

Para cada comportamento, há um aspecto normal que serve de base para os raciocínios, e seu efeito mais imediato é a imposição da obrigação da prova a quem quiser se opor à sua aplicação; ao contrário daquele que tem a prerrogativa da presunção e que fica dispensado de realizar qualquer prova. De uma forma mais geral, para cada categoria de fatos, especialmente para cada categoria de comportamento, existe um modo de ser considerado normal. Como uma presunção genérica, todos os auditórios admitem que, até prova em contrário, presume-se que o normal é o que aconteceu ou vai acontecer.

O normal, de acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 80), varia em diversos aspectos, mas é “uma base com a qual podemos contar em nossos raciocínios [...] abrange mais amiúde, ao mesmo tempo e de uma forma diversamente acentuada, conforme os casos, as idéias de médias, de modo e, também, de parte mais ou menos extensa de uma distribuição.” No que diz respeito ao comportamento de um grupo de indivíduos, a presunção tem mais relação com o modo do que com a média quando se procura a base para o habitual. Ademais, a noção costumeira de normal, além de ser um objeto de acordo, vai sempre depender de um acordo implícito a respeito do grupo de referência (da categoria total em consideração à qual ele se determina).

3.2.2.3.6 Categoria do preferível: os valores, as hierarquias e os lugares

São objetos de acordo que pretende a adesão de um grupo particular: (a) os valores

Os valores estão vinculados à ideia de uma multiplicidade de grupos, ao pensá-los como objetos de acordo com que permitem uma comunhão sobre os modos particulares de agir. Estar de acordo acerca de um valor, a partir de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 84), é “admitir que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma influência determinada, que se pode alegar numa argumentação, sem se considerar, porém, que esse ponto de vista se impõe a todos.” São divididos por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 87-90) em (a) concretos e (b) abstratos e

afirmam que a argumentação se baseia em ambos, de acordo com cada situação e, muitas vezes, com difícil distinção entre eles.

Os valores concretos vinculam-se a um ente vivo, a um grupo determinado, a um objeto particular, examinados em sua unicidade. Os valores

abstratos são vagos e precisam ser comparados a valores concretos para se

realizarem como, por exemplo, as noções de fidelidade, de lealdade, de solidariedade e de disciplina. Na argumentação, não se dispensa nenhum dos tipos de valores porque, de acordo com cada caso, eles serão subordinados a um ou ao outro. Para Aristóteles, exemplifica Perelman ([1977] 1997, p. 51), o amor à verdade, valor abstrato, é superior à amizade devida à Platão, valor concreto. Além disso, para Perelman ([1977] 1997, p. 51), os raciocínios fundados sobre valores concretos, parecem característicos de uma sociedade conservadora; enquanto os valores abstratos, facilmente submetidos a críticas, estariam vinculados a justificação da mudança, ao espírito revolucionário.

Uma mesma realidade (grupo social, por exemplo) será tratado ora como valor concreto e único, ora como uma multiplicidade de indivíduos que serão postos em oposição a um só ou a alguns, a partir de argumentações, por meio do número, às quais qualquer noção de valor concreto é totalmente alheia. Muitas vezes, os valores concretos são utilizados para fundar os valores abstratos e vice- versa;

(b) as hierarquias

A argumentação baseia-se, também, nas hierarquias, sendo que as admitidas apresentam-se sob quatro aspectos, seguindo a organização de Perelman ([1977] 1997, p. 52):

- as hierarquias concretas: manifestam a superioridade dos homens sobre os animais;

- as hierarquias abstratas: manifestam a superioridade do justo sobre o útil;

- as hierarquias homogêneas: baseiam-se sobre as quantidades, em que terá preferência a quantidade maior de um valor positivo e, simetricamente, uma quantidade menor, de um valor negativo; - as hierarquias heterogêneas: relacionadas a valores diferentes (o respeito à verdade é superior à amizade).

Do ponto de vista de um esquema argumentativo, a hierarquia de valores é mais importante do que os próprios valores, porque dentro de um auditório os mesmos valores são aceitos, podendo variar a intensidade com que cada um os aceita. E é justamente nesse ponto que o orador pode utilizar-se dos valores, sem justificar sua preferência a cada um. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 92) manifestam-se no sentido de que os valores, mesmo que admitidos por vários auditórios particulares, o são com maior ou menor força, e a “intensidade da adesão a um valor, em comparação com a intensidade com a qual se adere a outro, determina entre esses valores uma hierarquia que se deve levar em conta.”

A obrigatoriedade na hierarquização dos valores acontece porque a procura simultânea de valores cria uma incompatibilidade, sendo necessário fazer escolhas e, como consequência, sacrificar um deles.

(c) os lugares

Os lugares servem para fundamentar valores ou hierarquias ou para reforçar a intensidade da adesão que eles provocam. São considerados premissas de ordem muito geral, tendo a função análoga ao das presunções. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 94-95) destacam que dos lugares “derivam os Tópicos, ou tratados consagrados ao raciocínio dialético.” Chamam de lugares

comuns as premissas de ordem geral que permitem fundar valores e hierarquias

que intervém para justificar a maior parte de nossas escolhas; e de lugares

específicos, o que se refere ao que é preferível em domínios particulares107. Os lugares, de acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 90), “formam um arsenal indispensável, do qual, de um modo ou de outro, quem quer persuadir outrem deverá lançar mão”. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 97-108) explicam que determinados lugares são levados em conta por todos os auditórios sendo eles os principais:

- lugares de quantidade (alguma coisa é melhor do que a outra por razões quantitativas e mostrando eficiência): um maior número de bens é preferível a um menor número, o bem que serve a um maior número de fins é preferível ao que só é útil ao mesmo grau, um mal duradouro é maior do que um mal passageiro, o provável sobre o

107 Aristóteles distinguia os lugares-comuns (servem indiferentemente em qualquer ciência) e os lugares específicos (próprios de uma ciência particular ou de um gênero oratório bem definido).Os lugares-comuns atuais são a aplicação dos lugares-comuns aristotélicos a temas particulares. (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA [1988] 2005, p. 94-95).

improvável, o fácil sobre o difícil, ao que há menos risco de nos escapar. A superioridade do que é admitido pelo maior número fundamenta determinadas concepções de democracia e, também, as concepções da razão que assimilam esta ao senso comum. Um bem também terá sua validade geral reconhecida, quando seu uso não se tornar dispensável por qualquer outro bem.

O normal que se apresenta com frequência é objeto de um dos lugares usados com mais regularidade, permitindo a passagem do que se faz com o que se deve fazer (o normal para a norma) de forma muito natural, e a argumentação será necessária quando se trata do anormal, conforme explicam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 100):

A passagem do normal à norma é um fenômeno deveras corrente, que parece ser natural. É a dissociação dos dois e sua oposição mediante a afirmação da prioridade da norma sobre o normal, que necessita de uma argumentação que a justifique: essa argumentação tenderá à desvalorização do normal, o mais das vezes pelo uso de outros lugares que não os de quantidade.

O que é incomum, excepcional é motivo de desconfiança até que demonstre o seu valor;

- lugares de qualidade (é único ou raro, e adquire um valor qualitativo em relação à multiplicidade quantitativa do diverso): aparece na argumentação quando se questiona a qualidade do número. O valor do único, de acordo com Perelman e Olbrechts- Tyteca ([1988] 2005, p. 102), “pode exprimir-se por sua oposição ao comum, ao corriqueiro, ao vulgar”, e representa a forma de desvalorizar o múltiplo oposto ao único. O raro se relaciona, principalmente, ao objeto; enquanto o difícil, ao sujeito como agente. O valor qualitativo é a precariedade indicando que tudo o que está em risco ganha um valor superior aos demais. Esse é o lugar da oportunidade: cada coisa é preferível no instante em que tem mais importância.

O lugar do irreparável, de acordo com seus fundamentos, relaciona-se com a quantidade ou com a qualidade. Na quantidade, é a certeza de que os efeitos, intencionais ou não, se prolongarão indefinidamente: é a duração infinita do tempo que se dissipa depois que o irreparável tiver sido feito ou identificado. Na qualidade, ao acontecimento que se denomina como irreparável, será conferida a unicidade. O irreparável não pode ser repetido, pontuam Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 103), e é esse medo de não repetição que faz aparecer o seu valor.

Destaca-se que um mesmo objetivo pode ser alcançado com o auxílio de lugares muito diversos; contudo, de acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 108), “o uso de certos lugares ou de certas argumentações não caracteriza necessariamente um determinado meio cultural, mas pode resultar, o que aliás costuma acontecer, da situação argumentativa particular em que se está.” A situação argumentativa é imprescindível para tornarem certos quais os lugares aos quais serão empregados e abrange, de forma complexa, e ao mesmo tempo, o objetivo a que se busca e os argumentos com os quais há o perigo de se chocar. Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 109) explicam que esses dois elementos estão intimamente ligados visando, “[...] a um só tempo a transformação de certas convicções e a réplica a certos argumentos, transformação e réplica, que são indispensáveis ao desencadeamento dessa ação.”

As situações de relação entre os lugares de qualidade e de quantidade com os demais são apresentadas por Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 110):

- lugares de ordem: podem relacionar-se com os lugares de quantidade, nos quais o anterior é considerado mais estável, mais geral; e com os lugares de qualidade, nos quais o princípio será considerado original, com uma realidade superior, determinante das possibilidades extremas de um desenvolvimento; se o antigo for valorizado por ter perdurado muito tempo e personificar uma tradição, o novo será valorizado por ser original e raro;

- lugares do existente: podem relacionar-se com os lugares de quantidade, quando vinculados ao estável, ao habitual, ao normal e, como real, fundamentam os lugares de quantidade e dão sentido ao duradouro e ao que se impõe universalmente; e com os lugares de qualidade, quando vinculados ao único e ao precário - o valor do existente é retirado do fato de impor-se enquanto vivência, enquanto irredutível a qualquer outro objeto, enquanto atual;

- lugares da essência: podem relacionar-se com o normal: é o único a aceitar que os pensadores empiristas constituam padrões, estruturas; ou com o ideal: é o único fundamento válido de toda a normalidade para os racionalistas: o arquétipo abstrato;

- lugares da pessoa (vinculados à sua dignidade, ao seu mérito, à sua autonomia): conferem valor ao que é feito com cuidado e requerem um esforço. Os lugares a serem utilizados definem-se a partir da situação argumentativa e consideram, ao mesmo tempo, o objetivo a que se deseja chegar e os argumentos nos quais correm o risco de se chocar. Vários fatores influenciam na escolha do lugar (atitude do adversário, efeito da escolha com relação a uma ação que irá acontecer). Podem ser baseados nos lugares da essência, da autonomia, da estabilidade, na unicidade e da originalidade.

As ligações e justificações dos lugares podem resultar de uma tomada de posição metafísica e, assim, representar uma visão de mundo ou podem ser apenas ocasionais. De acordo com os ensinamentos de Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1988] 2005, p. 111), o espírito clássico prefere a primazia concedida aos lugares da quantidade e a tentativa de restringir a esse ponto de vista todos os outros lugares. Considera-se superior e fundamento de valor o que é universal e eterno, o que é racional e comumente válido, o que é estável, duradouro, essencial, o que interessa a um maior número. O espírito romântico, ao contrário, se reduz aos lugares de qualidade. São lugares românticos o único, o original e o novo, o distinto e o marcante na história, o precário e o irremediável.

O lugar da pessoa, que é uma premissa da argumentação, trata justamente da dignidade que está prevista como um direito a

ser protegido na Constituição, e é mencionado ao se falar da violação dos direitos da pessoa que acarretam a responsabilidade civil. É um lugar comum aceito pelo auditório universal, de forma subjetiva, e que não precisa de grandes esforços argumentativos, uma vez que já faz parte do acordo entre as partes. Quando tratamos sobre o dano moral pela perda de uma chance no âmbito do Direito do Trabalho, os objetos do acordo acerca dos auditório universal e do particular poderão assim ser entendidos:

i. os fatos podem ser jurídicos ou ajurídicos. Para que sejam alcançados pelo ordenamento jurídico, não podem ser um acontecimento natural, mas um fato relevante que crie uma obrigação. O lugar comum reconhece que não se deve violar a dignidade da pessoa humana, ou que se deve respeitar o íntimo dela. O fato de desrespeitar o indivíduo ao ponto de ele perder uma chance é considerado um fato relevante para o Direito e caracteriza-se como um fato jurídico. As verdades fazem as ligações entre os fatos e dependem do entendimento de cada auditório. No caso específico da responsabilidade civil na legislação brasileira, ela é reconhecida porque é um fato relevante e, portanto, é considerada uma verdade dentro do ordenamento jurídico (aquele que causar dano a outrem é obrigado a repará-lo). As presunções são o caráter ʽnormalʼ das pessoas, é o que se espera delas ao respeitarem umas às outras;

ii. Os valores caracterizam-se com o entendimento de que, se alguém desrespeitar outra pessoa, as disposições de sua ação interferem no fato jurídico caracterizador do dano moral pela perda de uma chance. As hierarquias tratam da intensidade dos valores admitidos pelo auditório: a violação do íntimo do indivíduo vale mais do que o regulamento da empresa. Os lugares do preferíveis são as premissas de ordem geral responsáveis por nossas escolhas como respeitar a dignidade das pessoas.