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3.1 O PERCURSO HISTÓRICO E A REABILITAÇÃO DA NOVA RETÓRICA DE

3.1.2 Os auditórios e seus acordos: conceitos centrais da Nova Retórica

89 Equidade é entendida como plausibilidade, verossimilhança. No livro A ética, Aristóteles define a equidade como aquela que “[...] nasce quando a justiça diz respeito a um caso que foge do comum e da generalidade da própria lei; de sorte que a equidade é como uma correção, de que a lei, pela sua abstratividade, necessita continuamente”. (1959, p. 101).

Ao desenvolver a Teoria da Argumentação a partir da Nova Retórica, Perelman esclarece que não exclui a interpretação lógica, mas desenvolve uma forma de interpretação através do processo argumentativo. Sendo assim, a interpretação lógica é excluída do entendimento de auditório universal, porque é diferente da interpretação quase lógica. No conceito de auditório universal é possível ter diversas interpretações que não são excludentes, porém lidas em conjunto. As “regras” da Nova Retórica não podem ser usadas na lógica, porque nessa as premissas e as regras de dedução são preestabelecidas (PERELMAN, [1988] 2005, p. 16) e justificam-se a partir da demonstração (abstração que se preocupa com a forma e não se considera orador e auditório). Na lógica, disserta Perelman ([1979] 2004, p. 142), acreditando nas premissas preexistentes, tomam-se como verdades as conclusões que delas decorrem. A verdade das premissas é garantida pela evidência que resulta do fato de partirem de ideias claras não passíveis de qualquer discussão.

Já na Nova Retórica, a argumentação considera o processo comunicativo, porque é uma teoria que sai do âmbito do formal/ideal para atuar ponderando os problemas levantados pelo manejo da linguagem no caso concreto. Por isso, a preocupação com o resultado no caso concreto. A Nova Retórica resolve um problema em que a lógica formal não tem alcance, quando uma palavra pode ser tomada em vários sentidos ou para esclarecer uma noção vaga ou confusa. Nesses casos, surge um problema de decisão, momento no qual se apresentam as razões da escolha para obter a adesão à solução proposta, conforme esclarece Perelman ([1979] 2004, p. 142), e é aqui que entra a argumentação. Não se trata de uma lógica do racional, explica Berti ([1989] 2002, p. 288), mas uma lógica do razoável, porque a verossimilhança é empregada não como uma probabilidade calculada, mas, ao contrário, o “geralmente aceito” ou “aceitável” tem um caráter qualitativo mais próximo do termo “razoável” do que do termo “provável”.

O orador tem que responder a todas as críticas que são levantadas e não pode excluir nenhum argumento de forma arbitrária. Então, o auditório universal é formado por todos os seres racionais (esclarecido, consciente e livre) e representa um conjunto de interpretações que se relacionam sob os pontos de vista interno e externo do auditório. O auditório universal pode ser visto, por sua vez, do ponto de vista do orador e do ouvinte. Para o orador, o auditório universal é o seu ideal argumentativo. Para o ouvinte, há duas opções: ou ele não faz nenhuma objeção quanto à argumentação do orador, de modo que esteja concordando com ela; ou, então, faz críticas à argumentação e não reconhece o ideal argumentativo para todos os seres racionais. Para o ouvinte que tem críticas, a argumentação do orador corresponde a um auditório particular limitado por uma das interpretações.

É do ponto de vista interno que se fala em universalidade. É quando o processo argumentativo sobrevive a todas as críticas, inclusive as do orador. Todavia, mesmo assim, esse processo argumentativo não deve ser considerado absoluto porque o orador faz parte de um tempo e um espaço, mesmo não se dando conta disso. E é sempre possível serem revistos os entendimentos, porque o orador não pode afirmar com certeza que seu argumento é universal e muito menos particular. Nessa linha, Perelman fala em “desconfiança”, ou seja, deve-se desconfiar do argumento, mas o orador deve usar o argumento de forma a transcender o tempo e o espaço e procurar a razão (buscar o verdadeiro, o real, o objetivo). Do ponto de

vista externo, o auditório é aquele justamente situado em um tempo e um espaço e que se

torna particular naquela época. Uma visão sociológica, antropológica e histórica do auditório só pode ser feita quando o auditório se transforma em particular. A norma e o Direito são a visão interna do auditório universal, e o fato, a criação das pessoas, a evolução da história são a visão externa desse auditório. A distinção entre o auditório90 universal e o particular não é uma diferenciação entre o ideal e o real, mas entre dois tipos de ideal, esclarece Dascal ([1999] 2006, p. 627), sendo os dois tipos de auditório ideais reguladores, limitando o que os falantes pensam que podem dizer, os argumentos que podem usar e os apelos que sentem ser apropriados. No auditório universal a plateia imaginada é a humanidade, à medida que, no auditório particular, é uma parcela da humanidade como os brasileiros ou os engenheiros químicos.

O auditório universal é formado por todos os seres racionais. Aqueles que não se posicionam não concordando, mas criticando e não justificando a crítica, são considerados não racionais por Perelman e são excluídos (não de forma arbitrária), em função da sua posição, e aí se forma um auditório de elite. Esse auditório de elite é visto por aqueles que foram excluídos como um auditório particular. O auditório de elite sempre tem críticas que não foram respondidas e, por esse motivo, perde a sua universalidade. Mas, para quem participa do auditório de elite, ele continua sendo universal. Há uma controvérsia no ponto de vista de quem participa do auditório e de quem é excluído por ser considerado irracional. O argumento tem duas medidas de valor: a eficácia (persuasão, emoção, retórica) e a qualidade do auditório. Um argumento tem eficácia diferente se for um auditório de pessoas racionais (competentes) ou irracionais (incompetentes, ignorantes).

Para conhecer as teses admitidas pelo auditório, é necessário identificar o que é percebido como relevante para os julgadores e proceder à analise, cuidadosamente, através da

perspectiva argumentativa prática construída por Perelman e Olbrechts-Tyeca. A decisão judicial, a partir da aproximação das teses admitidas pelo auditório, tem o condão de ser mediadora e não impositiva, com a configuração de um vencedor e um vencido. Essa polarização afasta a decisão do resultado justo, já que “escolhe” uma das partes (a vencedora) e marginaliza a outra (a vencida), e essa não é a pretensão de um Estado Democrático de Direito. Mendonça (2000, p. 156) explica que “através da argumentação, a lei tem seu rigor atenuado pelo juiz, de modo que possa se aproximar dos valores de justiça socialmente dominantes.”

Quando Perelman fala sobre as motivações das decisões judiciais no livro Ética e

direito ([1990] 2005, p. 559ss.), ele faz um retrospecto de quando a motivação nas decisões

judiciais passou a ser exigida e, mais, o que efetivamente significa motivação nesse contexto. A forma como cada período determinou a motivação das sentenças indica o seu significado. Para exemplificar, até por volta de 1800, a intenção era de que a motivação da sentença representasse, somente, uma obediência ao Poder Legislativo e, em consequência, dos juízes em relação à lei, pois restringia-se à adequação dos fundamentos à lei escrita, sem se questionar se a decisão era justa ou equitativa. Contudo, percebeu-se que, principalmente, em relação ao Direito Civil, existia uma dificuldade em adequar todos os casos à lei, por discutirem questões versadas sobre fatos e não só sobre direito. Assim, nesses casos, o juiz invocava o art. 4° do Código Napoleônico91 para justificar sua intervenção nos casos de silêncio, de obscuridade ou de insuficiência da lei, demonstrando que a ideia de motivação, de justificação da uma decisão judicial mudam de sentido ao mudar o auditório.

Em um regime democrático, de acordo com Perelman ([1990] 2005, p. 566-567), o juiz deve prestar contas do modo como usa o poder, através da motivação de suas decisões. Além disso, a justificação modifica-se de acordo com a instância ou com a jurisdição do julgador, de acordo com cada auditório. Os tribunais inferiores justificam-se perante as partes, perante a opinião pública esclarecida e, principalmente, perante as instâncias superiores que exercem seu controle em casos de recurso. Os tribunais superiores, por serem responsáveis em unificar a jurisprudência e de estabelecer a paz judiciária, esforçam-se em demonstrar que as suas decisões são as mais adequadas em relação ao Direito vigente e aos problemas que se buscam resolver. A motivação em uma decisão judicial e sua relação com o auditório são pontuadas por Perelman ([1990] 2005, p. 569):

91o juiz que se recusar a julgar, sob o pretexto de silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei pode ser processado como culpado de negação de justiça”.

motivar uma sentença é justificá-la, não é fundamentá-la de um modo impessoal e, por assim dizer, demonstrativo. É persuadir um auditório, que se deve conhecer, de que a decisão é conforme suas exigências. Mas estas podem variar com o auditório: ora são puramente formais e legalistas, ora são atinentes às conseqüências, trata-se de mostrar que estas são oportunas, equitativas, razoáveis, aceitáveis. O mais das vezes, elas concernem aos dois aspectos, conciliam as exigências da lei, o espírito do sistema, com a apreciação das conseqüências (sic).

Em seu livro anterior, Retóricas ([1989] 2004, p. 303ss.), Perelman já explicitava seu entendimento sobre o auditório universal, ao escrever que toda a argumentação se desenvolve de acordo com o auditório ao qual se dirige e ao qual o orador é obrigado a adaptar-se. A diversidade dos auditórios é imensa e pode variar de forma quantitativa, desde o orador até o ouvinte. O orador deve adotar uma linguagem reconhecida pelo seu auditório, já que o exercício eficaz da argumentação supõe um meio de comunicação, uma linguagem comum, sem a qual o contato não é possível de se realizar. Além disso, a argumentação parte e se desenvolve do que é reconhecido como verdadeiro, como normal, como verossímil, como válido aos ouvintes, por teses por eles admitidas, reconhecidas por um grupo social e que vão desde o senso comum até o reconhecimento de indivíduos adeptos ou estudiosos de assuntos de diversas áreas, como a área científica, a jurídica, a filosófica ou a teológica. Conhecer o auditório a que se dirige é, portanto, fundamental para a eficácia da argumentação.

O lugar-comum92 é referido por Perelman ([1979] 2004, p. 159) como um ponto de vista, um valor que é preciso levar em consideração em qualquer discussão e cuja elaboração apropriada redundará em uma regra, em uma máxima que o orador utilizará em seus esforços de persuasão. Na lição de Perelman ([1979] 2004, p. 159), “os lugares-comuns desempenham na argumentação um papel análogo ao dos axiomas de um sistema formal. Podem servir de ponto inicial justamente porque os supomos comuns a todos os espíritos.” Diferem-se dos axiomas porque a sua adesão é fundamentada na sua ambiguidade, na possibilidade de interpretá-los e aplicá-los de modo diverso.

Do ponto de vista teórico, Atienza ([2000] 2006, p. 78-79) avalia que Perelman não apresenta clareza nos conceitos centrais da sua concepção de retórica, principalmente no que

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O lugar-comum é um ponto de vista, um valor que deve ser considerado em qualquer discussão. Em relação ao pensamento não especializado, os lugares-comuns são o que são os lugares específicos em relação a uma matéria em particular. Os princípios gerais do direito são os lugares específicos do direito, enquanto as afirmações de ordem muito geral indicam a direção inicial a um pensamento não especializado. (PERELMAN, ([1979] 2004, p. 159). Theodor Viehweg introduziu a tópica ao Direito considerando-a uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica. Considera um método científico em que o ponto de partida é o senso comum, uma vez que constatou que, em Direito, nem sempre é possível encontrar uma resposta inquestionável pra cada caso concreto. Bustamante (2004, p. 154) explica que, nessas situações, aquele que decide realiza valorações que condicionam suas decisões, sendo necessário conhecer sua forma de raciocínio. O raciocínio jurídico, portanto, para Viehweg é uma forma de argumentar, ou seja fornecer motivos e razões dentro de uma forma específica.

diz respeito aos argumentos e ao auditório universal, tornando-os confusos e, por esse motivo, inúteis. Os argumentos estão dentro e em determinado lugar do discurso e são acompanhados de outros argumentos que interagem com eles, entre outros fatos que não possibilitam precisar o que é um argumento forte e um argumento fraco, e quais são os critérios para identificá-los. E sua crítica finaliza com o argumento de que o conceito de auditório universal é incoerente, porque não consegue articular o seu aspecto normativo com o aspecto fático.

Do ponto de vista prático, Atienza ([2000] 2006, p. 82-87) diz que, ideologicamente, a teoria de Perelman é muito conservadora, e que isso se deve, entre outros fatores, à obscuridade das noções que caracterizam os aspectos da boa argumentação. Justifica que a noção de razoabilidade é confusa, o que prejudica o entendimento do que é uma decisão razoável. Além disso, nos casos difíceis (hard cases), a opinião pública se divide de uma maneira que não é possível decidir satisfazendo a todos, e Perelman não dispõe de critérios adequados para solucionar esses casos. Diz que o positivismo jurídico que Perelman critica é aquele do século XIX e não o positivismo atual e justifica isso apresentando autores contemporâneos e suas particularidades. No que diz respeito à adesão de Perelman ao modelo tópico de raciocínio jurídico, Atienza explica que o seu processo de formação e suas opiniões compartilhadas são demoradas, sendo aplicado somente aos ramos mais conservadores do Direito. E, finalmente, o fato de Perelman dar destaque ao discurso dos juízes nas instâncias superiores distorce o fenômeno do Direito moderno e dá à retórica/argumentação uma importância maior do que ela, efetivamente, tem.

Sobre a retórica, em específico, Atienza ([2000] 2006, p. 88-90) fundamenta-se em Gianformaggio (1973) para dizer que a relação entre o plano da retórica geral e o da retórica ou lógica jurídica não está bem resolvido, muito em função da obscuridade de seus conceitos, e que a distinção entre raciocínio teórico e prático não coincide com a diferença entre demonstração e argumentação, sendo, portanto, equivocada.

As críticas apresentadas não têm força suficiente para desqualificar a Teoria da Argumentação de Perelman9394, que é relevante e aplicada nesta tese, considerando o

93 Perelman escreveu diversas obras tratando de aspectos de sua Teoria da Argumentação, enquanto Olbrechts- Tyeca escreveu com o autor somente a obra Tratado da argumentação: a nova retórica. Sendo assim, ao citar Perelman, os autores que se referem a ele o fazem não se restringindo a essa única publicação, mas ao conjunto de suas obras.

94 a Teoria da Argumentação de Perelman diferencia-se da Teoria da Argumentação de Robert Alexy ([2001] 2011) utilizada no Direito. Na Teoria da Argumentação de Perelman, não existe uma hierarquia de valores pré- estabelecidos, e sua importância também não é estabelecida prima facie. Ele também critica a ideia de evidência como característica da razão: se toda prova é concebida como redução à evidência, a Teoria da Argumentação não consegue se desenvolver. Já na Teoria da Argumentação de Alexy, primeiro o autor estabelece que se a norma estiver explicitada, faz-se a aplicação da lei ao caso concreto, através de uma operação lógica de subsunção. Alexy ([2001] 2011, p. 245) estabelece a regra de carga da prova na argumentação que rege como

procedimento argumentativo como uma técnica racional e, portanto, apta a validar o discurso jurídico. Verifica-se que os valores dominantes de uma sociedade modificam-se com o passar do tempo, mas a lei, muitas vezes, é concretizada com atraso, não acompanhando em tempo real a evolução do entendimento sobre o que é justiça para cada cidadão. E nada mais universal, mais forte, mais perfeito que a justiça,95, assim, nas palavras de Perelman ([1990], 2005, p. 30), “durante o período em que há defasagem, a jurisprudência se encarrega, com certa dificuldade, de reduzir ao mínimo os inconvenientes das morosidades inevitáveis do poder legislativo.”

Daí decorre a importância do estudo do acórdão, porque essas decisões se aproximam muito mais do ideal de justiça de uma sociedade do que a lei defasada em determinadas épocas e, ainda, é aceita como fonte do Direito, gerando, ao fim e ao cabo, uma aceitação consciente do resultado e aproximando-se da tão desejada justiça. A Teoria da Argumentação96 de Perelman é, portanto, um método prático de justificação racional97 das decisões judiciais.