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3.2 AS PREMISSAS DA ARGUMENTAÇÃO: ACORDOS PRÓPRIOS DE CADA

3.2.2 Apresentação dos dados e forma do discurso

3.2.2.3 Figuras de retórica e argumentação: escolha, presença e comunhão

3.2.2.3.3 Figuras de comunhão

São representadas pelas seguintes figuras:

(a) alusão: um acontecimento do passado, um uso ou um fato cultural em que o conhecimento é particular dos membros de um grupo em que o orador quer criar essa comunhão (“algo” evocado);

(b) citação: caracteriza-se quando não serve para apoiar o que se diz com o peso de uma autoridade e que é a sua função normal. Aqui, consideram-se citações as máximas e os provérbios;

(c) apóstrofe e interrogação oratória: quando não tem o objetivo de informar-se ou garantir um acordo;

(d) comunicação oratória: o orador pede ao adversário e ao juiz para que reflitam sobre a situação em que está, convidando-os a participar da deliberação ou tentando confundir-se o auditório;

(e) enálage da pessoa e enálage do número de pessoas: no primeiro caso, é a permutação do ʽeuʼ ou do ʽeleʼ pelo ʽtuʼ e faz com que o ouvinte acredite ver a si mesmo na argumentação do orador. No segundo caso, é a permuta do ʽeuʼ e do

ʽtuʼ pelo ʽnósʼ.

A modificação do estatuto dos elementos do discurso é uma consequência dos efeitos da apresentação de dados. Os tipos de objetos de acordo são compostos por elementos de diversas categorias e usufruem de diferentes privilégios. Os fatos, as verdades e as presunções referem-se ao auditório universal; enquanto os valores, as hierarquias e os lugares tem ligação com o auditório particular. Há um grande interesse a respeito da fixação do estatuto dos elementos utilizados, da transposição de certos elementos a outra categoria e da possibilidade de enfatizar mais um tipo de objeto de acordo do que outro, explica Perelman ([1988] 2005, p. 203). Isso porque a deficiência desses diferentes objetos não são vinculadas às mesmas condições.

Apesar de se presumir que o orador e seu auditório reconhecem o mesmo estatuto para os elementos do discurso, isso desaparece quando surge uma divergência explícita. Além disso, em diversas situações o orador se esforça para direcionar o debate ao estado em que lhe parece mais favorável modificando, se for preciso, o estatuto de determinados dados. E é aqui que a apresentação tem um papel fundamental. O orador poderá, também, defender que os elementos que ele utiliza em seu discurso têm o estatuto mais elevado, usufruindo de um acordo com maior amplitude do que os demais.

Diante desse quadro, Perelman ([1988] 2005, p. 203-205) conclui que o estatuto de valor será atribuído aos sentimentos pessoais e o estatuto de fato será atribuído aos valores. Afirma que os sentimentos e impressões pessoais são apresentados, em geral, como juízos de valor amplamente compartilhados. Juízos de valor e sentimentos, mesmo que exclusivamente subjetivos, podem ser transformados em juízo de fato, através de artifícios de apresentação como, por exemplo, substituindo a qualificação “mentiroso” por “pessoa com uma disposição

para induzir cientemente em erro”, dando a impressão de ter transformado o juízo de valor em juízo de fato. A nova forma do enunciado aparenta ser mais precisa, insistindo em suas condições de verificação com o objetivo de evitar uma apreciação desfavorável.

Ao serem atribuídos a alguém, os juízos de valor também podem se transformar em expressão de fatos com o objetivo de dar peso ao enunciado ou limitar seu alcance: uma norma baseada na autoridade de uma célebre personagem corre o risco de se transformar em um simples fato cultural. Apresentar como fato de experiência o que é, na verdade, a conclusão de uma argumentação e qualificar a solução considerada melhor como sendo a única que permite uma transposição análoga do juízo de valor em juízo de fato, também são técnicas utilizadas para modificar o estatuto dos elementos no discurso.

Em determinadas situações, o desacordo de valores é apresentado como desacordo sobre os fatos, uma vez que é mais fácil retificar um juízo de valor que não se aprova, com vistas a retificar um erro material. Esse desacordo, segundo Perelman ([1988] 2005, p. 205), sustenta-se numa informação insuficiente que basta ser completada para que a pessoa mal informada mude sua opinião. Diante de uma lei contestada, seu valor aumentará se for declarado que, se ela foi transgredida, só aconteceu por ignorância. É um modo de argumentar dissimulado e, então, se um condutor de veículo não utilizar cinto de segurança e for abordado pela autoridade de trânsito, justificará que não tinha conhecimento dessa norma. A transposição de valores em fatos pode ser facilitada pela figura da metalepse quando, por exemplo, troca-se o enunciado “ele esquece os favores” por “ele não é reconhecido”. Essa figura é uma maneira de atribuir uma conduta a um fenômeno de memória, permitindo ao interlocutor alterar sua atitude, parecendo ter somente melhorado seu conhecimento sobre os fatos.

Até aqui, apresentaram-se figuras que evidenciam o estatuto de determinados objetos de acordo. Contudo, pode-se querer, também, a diminuição do estatuto de certos objetos de acordo na apresentação das premissas. A negação de um fato será transformada em juízo de apreciação para, de acordo com Perelman ([1988] 2005, p. 206), minimizar a seriedade de uma oposição a um fato ou a deturpação da verdade, ou, ainda, minimizar as normas para serem consideradas apenas caprichos.

Reduzir a argumentação a juízos de valor para deixar explícito que as únicas que importam são as divergências de valor, e é nelas que o debate deve se ater, é o caso mais

interessante de transposição105, destaca Perelman ([1988] 2005, p. 207). Ocorre com pouca frequência e de forma não tão clara, a vontade de abreviar o debate a uma questão de valores. No entanto, não é raro acontecer que, de forma voluntária, somente valores sejam postos no primeiro plano. Perelman ([1988] 2005, p. 208) finaliza explicando que o estatuto dos objetos de acordo e suas modificações, a partir da maneira que os dados são utilizados, vai ao encontro do que o autor já afirmou, a respeito da solidez e da precariedade, a um só tempo, dos pontos de sustentação da argumentação: os objetos de acordo somente são reconhecidos em um contexto completo.