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3.2 AS PREMISSAS DA ARGUMENTAÇÃO: ACORDOS PRÓPRIOS DE CADA

3.2.1 Seleção, presença e interpretação dos dados

Para cada auditório, existe um conjunto de coisas admitidas que lhe pode influenciar e que, no caso do auditório especializado, trata-se do corpus de uma disciplina reconhecido pelos seus adeptos. No caso do Direito, esse corpus é o sistema jurídico inteiro no qual uma decisão está inserida, correspondendo a um sistema de referências em que os argumentos podem ser testados e que tem uma importância fundamental.

A seguir, aborda-se o papel da seleção prévia dos elementos que servem de ponto de partida da argumentação, bem como da adaptação desses elementos para a argumentação; a presença conferida a esses elementos, em função de sua seleção; a utilização dos dados para a argumentação, a partir de uma elaboração conceitual que lhes confira sentido; a ambiguidade do elemento argumentativo; e o uso das noções.

3.2.1.1 Seleção prévia dos elementos

Os argumentos disponíveis para serem utilizados pelo orador constituem um dado que é considerado de acordo com a sua prevalência, uma vez que são amplos e passíveis de aplicação de diversos modos, explica Perelman ([1988] 2005, p. 132).

A forma de prevalência é de suma importância, destacando-se o papel da seleção prévia dos elementos, que serve de ponto de partida e adaptação aos objetivos da argumentação. Os dados são escolhidos de acordo com situações específicas e o que não é de interesse da área não é utilizado, mas nem por isso é descartado.

A importância dos elementos já é reconhecida quando eles são escolhidos e apresentados ao auditório.

3.2.1.2 Presença

Os elementos escolhidos para apresentação ao auditório representam um fator essencial da argumentação, chamado de presença, o qual atua de um modo direto sobre a sensibilidade, ao exercer uma ação já no nível da percepção. Por esse motivo, o orador preocupa-se em tornar presente em seu discurso aquilo que valoriza a sua argumentação, como um dos papéis da retórica e como técnica de argumentação.

Recorrer ao objeto real, concreto, para emocionar o auditório, explica Perelman ([1988] 2005, p. 132), é uma dessas técnicas, e exemplifica com os filhos do réu que são levados ao tribunal para provocar piedade ao juiz. E essa presença atinge o auditório de uma forma que a mera descrição do objeto não consegue fazer, mas não deve ser confundida com a fidelidade ao real.

A noção de presença adotada por Perelman ([1988] 2005, p. 135), de importância capital para a técnica argumentativa, está relacionada ao seu aspecto técnico, concluindo que “toda argumentação é seletiva” ao escolher os elementos e a forma de torná-los presentes. Tendo em vista que a escolha dos elementos torna o argumento parcial e tendencioso, ele deve ser complementado por argumentação diversa para tornar equilibrada a apreciação dos elementos.

Na linha das decisões judiciais, os julgadores só decidem depois de ouvir todas as partes envolvidas em um processo. Nas ciências humanas, acrescenta Perelman ([1988] 2005, p. 136), essa escolha não é apenas seleção, mas são incluídas construção e interpretação: “toda argumentação supõe, portanto, uma escolha, que consiste não só na seleção dos elementos que são utilizados, mas também na técnica da apresentação destes. As questões de forma se mesclam com questões de fundo para realizar a presença.”

3.2.1.3 A interpretação dos dados

A forma como se desenvolve a utilização dos dados para aplicação em um discurso é o que diferencia a argumentação da demonstração. Na demonstração, todos os elementos são entendidos por todos da mesma forma, por conta da univocidade que é exigida deles. Na argumentação, de modo diverso, considera-se não só a seleção dos dados, mas, também, o modo como são interpretados e o significado atribuído a eles. Por esse motivo, na prática argumentativa, os dados compreendem elementos sobre os quais parece existir um acordo unívoco e fora de discussão, ao menos de um modo provisório.

Considerando a multiplicidade de interpretações advinda da escolha dos dados, Perelman ([1988] 2005, p. 139) sugere a distinção entre a interpretação de signos e a de

indícios, necessária em uma teoria da argumentação. Como signos são entendidos todos os

fenômenos passíveis de evocar outro fenômeno, uma vez que são utilizados num ato de comunicação e com vista a essa evocação. Sua importância deve-se à intenção de comunicar. O indício, por sua vez, evoca outro fenômeno de uma forma objetiva, independentemente de qualquer intencionalidade: “o mesmo ato, o de fechar uma janela, pode ser, conforme o caso, signo convencionado ou indício de alguém que está com frio.” Muita vezes, essas duas espécies de interpretação não podem ser discriminadas, por estarem inarredavelmente juntas, mas apresentam distintos problemas, conforme dissertado no tópico seguinte.

3.2.1.4 A interpretação do discurso: ambiguidade do dado argumentativo

A ambiguidade do dado argumentativo, bem como a multiplicidade de aspectos que interagem com a interpretação, levanta a necessidade de encontrar regras que permitam limitar as muito amplas possibilidades de interpretação teoricamente reconhecidas. Em geral, o texto implica uma argumentação implícita que faz parte do seu essencial. Sendo assim, “a distinção entre o que é dito e o que não passa de construção acrescentada posteriormente e sujeita à controvérsia depende do acordo ou do desacordo concernente à interpretação”, destaca Perelman ([1988] 2005, p. 142). A limitação voluntária de um contexto é o que pode assegurar a clareza de um texto ou de uma noção, concluindo-se que a regra é a necessidade de interpretação, enquanto a extinção da interpretação constitui uma condição excepcional e artificial.

Fazem parte da organização dos dados, com vistas à argumentação, a sua interpretação, o significado a eles concedidos e, também, a apresentação de certos aspectos desses dados, em função de acordos implícitos na linguagem utilizada. São as chamadas escolhas das qualificações. O epíteto é a forma mais aparente que a escolha se manifesta. Perelman ([1988] 2005, p. 143) explica que o epíteto resulta da escolha visível de uma qualidade que se destaca e completa nosso conhecimento do objeto. É utilizado sem justificação, porque há a presunção de que se enunciam fatos incontestáveis; contudo, essa seleção se mostra tendenciosa. Vários epítetos podem ser escolhidos para qualificar um mesmo enunciado. Perelman ([1988] 2005, p. 143) exemplifica: qualificar Orestes de

“assassino de sua mãe” ou de “vingador de seu pai.” Alguns aspectos tendenciosos são facilmente detectados e outros não, mas dificilmente estas escolhas são desprovidas de intenção argumentativa.

Outras qualificações podem ser detectadas através de ilustrações: declarar que alguém cometeu um roubo é também determinar suas penas; dizer que alguém sofre de determinada doença é prejulgar o tratamento a que o paciente será submetido; ao invés de separar os indivíduos em ricos e pobres, põe-se em primeiro plano a oposição entre brancos e negros, para que o branco pobre se sinta valorizado; a inserção numa classe pode ser feita, ou não, por meio do uso de uma qualificação.

3.2.1.5 O uso das noções

A aplicação das noções ao objeto do discurso corresponde à atividade de compreensão e à de extensão, e a qualificação dos dados e sua inserção nas classes constituem os dois aspectos dessa mesma atividade, não importando qualquer dificuldade. O que pode gerar diferentes interpretações é a natureza desse acordo, a consciência de sua precariedade, de seus limites e de suas possibilidades argumentativas. Sendo assim, a única significação de uma noção somente é admitida em um campo de aplicação completamente determinado, ou seja, em um sistema formal: “a noção de “bispo” no jogo de xadrez satisfaz essa condição”, ilustra Perelman ([1988] 2005, p. 148). Porém, isso não se aplica a um sistema jurídico que abrange acontecimentos futuros, por serem impossíveis de determiná-los inteiramente.

Por esse motivo, os termos ou noções devem tentar ser bem explicados, mas também devem conter uma margem de interpretação que possibilite sua aplicação ao caso concreto. Quanto mais vagas e confusas são as noções aplicadas, explica Perelman ([1988] 2005, p. 148), maiores serão os problemas de organização e precisão dos conceitos. Consequência disso é que, com frequência, a utilização das noções deixa de ser uma simples escolha de dados aplicáveis a outros dados, para se tornar uma construção de teorias e interpretação do real. E, aqui, Perelman ([1988] 2005, p. 149-150) reforça que a linguagem “não é somente um meio de comunicação, é também instrumento de ação sobre as mentes, meio de persuasão.”

Para se tentar obter a adesão dos espíritos, vários elementos coexistem e interagem entre si como, por exemplo, os valores aceitos pelo auditório, o prestígio do orador e a língua de que se serve e o que é descartado pela lógica formal. A técnica argumentativa recorre a um

conjunto de convenções fundadas de forma ideal em um campo de saber puramente técnico. As noções vagas, consoante explica Perelman ([1988] 2005, p. 151-152), conseguem se tornar claras em relação a uma área de aplicação determinada, quando se tenta especificá-las ao máximo, através de um sistema de referências. Soma-se a isso o fato de que esse sistema de referência compartilha de ideologias diversas, a materialização e estabilização de uma noção depende de um esforço de boa vontade global, com necessidade de ajustes a cada aplicação em particular e o que pode ser equiparado ao espaço de jogo de Gadamer. E, assim, Perelman ([1988] 2005, p. 152) conclui: “Como o sentido das noções depende dos sistemas nos quais são utilizadas, para mudar o sentido de uma noção basta inseri-la num novo contexto e, notadamente, integrá-la em novos raciocínios.” As consequências práticas vinculam o uso das noções, acrescenta Perelman ([1988] 2005, p. 154-155), e, portanto, a alteração dessas consequências, indiretamente afetam as reações quanto ao seu uso.

A noção também pode ser modificada pela necessidade da própria argumentação, e que o orador faz valendo-se de sua plasticidade. A flexibilidade das noções permite que sejam utilizadas de acordo com a vinculação feita às teses dos oradores. As noções utilizadas a favor da tese do orador são apresentadas como ricas, não confusas, flexíveis, ou seja, são valorizadas. Por outro lado, as noções utilizadas nas teses dos adversários serão apresentadas como imutáveis, o que permite, desqualificá-las ou refutá-las. Essa técnica (flexibilizar ou engessar as noções) é utilizada quando o valor designado pela noção resultará, ao menos em parte, da argumentação. Ao contrário, se este valor estiver claramente identificado e for prévio à argumentação, a técnica utilizada será baseada na extensão, caracterizando-se por ampliar ou restringir uma noção para alcançar, ou não, determinados seres, coisas, ideias e situações. Perelman ([1988] 2005, p. 158) exemplifica ao aumentar o campo de atuação da palavra pejorativa “fascista”, com vistas a alcançar os inimigos, e restringe a extensão da palavra positiva “democrático”, para excluí-los. Ao contrário, restringe-se a palavra “fascista”, para excluir os amigos, e amplia o alcance da palavra “democrático”, para incluí- los.

Até agora, dissertou-se sobre a finalidade da persuasão, ou seja, do ponto de vista do raciocínio, da crença, da adesão. No próximo tópico, abordar-se-á a persuasão, a partir da forma100, da expressão do pensamento e o eventual papel que as características das expressões pode ter na apresentação dos dados.

100

A “forma” de que trata Perelman, segundo ele mesmo, aproxima-se mais de um sentido dado pelo escritor do que pelo lógico. (PERELMAN, [1988] 2005, p. 160).