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A CEGUEIRA PARA A MUDANÇA EM AÇÃO

No documento Truques Da Mente (páginas 94-99)

O gorila entre nós: mais ilusões cognitivas

A CEGUEIRA PARA A MUDANÇA EM AÇÃO

Quando nos mudamos para nosso instituto atual, Susana precisou de outro laboratório em que pudesse conduzir experimentos sobre a percepção. O chefe de seu departamento ofereceu-lhe a sala de desenho, desde que ela não se incomodasse em dividir o espaço com uma porção de peças volumosas – uma mesa inclinada, um armário enorme com gavetas rasas para guardar desenhos grandes, guilhotinas imensas e coisas similares. Susana agradeceu e se mudou para lá. Depois, procurou cada um dos chefes de laboratórios e lhes perguntou se não se importariam em retirar os desenhos que tivessem guardado no armário, já que o móvel simplesmente ocupava espaço demais. Muito gentis, todos concordaram em ajudar, e Susana se livrou do armário. Depois, em um andar diferente do edi ício de pesquisas, ela achou outra sala com equipamentos em comum, onde havia algum espaço disponível em uma bancada. Retirou as guilhotinas e vários outros apetrechos de seu novo laboratório e os deslocou para lá. No correr de algumas semanas, a sala de desenho tornou-se sala de desenho apenas no nome, já que fora completamente transformada no laboratório de Susana. Assim, ela ligou para o pessoal que cuidava das instalações e pediu que a placa da porta fosse trocada, passando de “Sala de Desenho da Neurobiologia” para “Laboratório de Susana Martinez-Conde”.

Aos poucos, porém de forma segura, Susana havia transformado seu laboratório de testes de percepção, fazendo-o passar de um simples canto de uma sala de desenho compartilhada para seu espaço laboratorial completo e não dividido, e tudo empregando apenas os princípios da cegueira para a mudança. O chefe do departamento ainda abana a cabeça quando se lembra disso, mas nunca pediu a sala

de volta, porque o espaço do laboratório é muito produtivo e seus projetos obtiveram verbas de inanciamento para apoiar as pesquisas feitas ali. Miguel Ángel calcula que, se alguém deixa de notar uma troca de lugar entre duas pessoas muito diferentes, pode deixar escapar quase qualquer coisa. Pode confundir uma carta com outra. Uma tarde, na conferência, ele demonstrou de que maneira. Vestindo sua roupa informal de praxe, chamou um voluntário na plateia. Quando a moça chegou ao palco, ele lhe pediu que escolhesse uma carta em um baralho. Era o oito de paus, que ele reintroduziu no baralho.

– Gosto de tirar a sua carta do meu bolso – disse, enquanto puxava magicamente o oito de paus do bolso direito da calça. Aplausos. Miguel Ángel olhou para a voluntária: – Gostou desse truque? É? Há truques de que eu não gosto – comentou. Levantou a mão vazia em direção a ela, colocou-a no cabelo da moça e, ao retirá-la, o oito de paus tinha voltado à palma da sua mão. – Outros mágicos gostam de tirar cartas do cabelo das pessoas, mas, quanto a mim, não gosto desse truque. – Vieram risinhos da plateia.

Em seguida, Miguel Ángel reintroduziu o oito de paus no baralho e o pôs na mesa, segurando algumas cartas fora do monte. Esfregou essas cartas entre o polegar e as pontas dos dedos da mão direita.

– Outros mágicos preferem fazer moedas aparecerem – disse, enquanto uma moeda grande deslizava por entre as cartas esfregadas e caía na palma de sua mão esquerda. O público reagiu com “ohs” e “ahs”.

A voluntária abanou a cabeça, incrédula. O mágico a itou, enquanto depositava as cartas restantes na mesa – onde agora havia um baralho completo, que, é claro, incluía o oito de paus –, e icou apenas com a moeda na mão esquerda. Passou-a então para a palma da mão direita.

– Mas eu não gosto de truques em que se tiram cartas do cabelo, ou mesmo de truques com moedas – disse, enquanto tornava a jogar a moeda. – Só que dessa vez ela desapareceu.

– Não, eu pre iro truques só com uma carta no bolso – prosseguiu. En iou a mão direita no bolso e tirou uma carta com o verso voltado para a plateia. – E esta única carta é a sua – disse, virando-a para o público e revelando, milagrosamente, o oito de paus. Aplausos delirantes.8

ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE

SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS!

Miguel Ángel tinha um sorriso matreiro no rosto. Virou-se para a plateia e perguntou:

– Vocês querem saber como foi feito esse truque?

Gritamos um sonoro “Sim”. Ele icou parado por um instante, como se considerasse seu passo seguinte. Pareceu subitamente sem graça.

– É meio di ícil para um mágico revelar um truque – disse, com ar tímido. O público riu com simpatia, e Miguel Ángel chegou a uma decisão. Levantando os dois braços, proferiu: – Pela ciência! – e se lançou em uma explicação que fascinou igualmente cientistas e artistas. Revelou que o truque começa antes do espetáculo, quando ele escolhe duas cartas parecidas – nesse caso, o oito de paus e o oito de espadas. Põe o oito de paus sobre o de espadas e coloca o baralho no bolso, para guardá-lo até a hora do show.

Quando pede a um voluntário que escolha uma carta, ele usa uma forçação [force] para que a pessoa escolha o oito de paus sem perceber que o faz. Forçar refere-se a diversos métodos usados pelos mágicos para nos fazer pensar que estamos escolhendo livremente uma carta, enquanto eles sabem de antemão exatamente que carta tiraremos. Falaremos disso de forma mais detalhada no próximo capítulo.

Quando o voluntário repõe o oito de paus no baralho, a carta não é inserida ao acaso. Miguel Ángel o obriga, mais uma vez, a colocá-la onde a quer – imediatamente acima do oito de espadas. Seus gestos seguintes são movimentos típicos de prestidigitação. Ele “embaralha” as cartas de maneira a fazer os dois oitos pretos icarem no topo. Empalma-os e os põe em seu bolso. Quando diz “Gosto de tirar a sua carta do meu bolso”, ele pega o oito de paus e deixa o de espadas. (Provavelmente, você já sabe aonde isso vai chegar.) Em seguida, gesticula de modo a “puxar” o oito de paus do cabelo do voluntário e usa o número da moeda como uma distração de sua meta principal, que é a cegueira para a mudança.

Quando todas as cartas estão na mesa, o espectador presume que o oito de paus esteja em algum lugar do monte, em segurança. É nesse momento que Miguel Ángel põe a mão no bolso e tira o oito de espadas. Termina o número dizendo “Por mim, pre iro truques só com uma carta no bolso”, e vira o oito de espadas para exibi-lo. Mas você e as outras pessoas estão revirando tanto os olhos de admiração, tão completamente fascinados pelo

fato de ele ter logrado o impossível, ao tirar o oito de paus do bolso, quando a carta deveria estar na mesa, que não percebem que não se trata, em absoluto, do oito de paus. É o de espadas. Na conferência, até a voluntária, a menos de um metro de distância, olhou para o naipe de espadas e não viu que era a carta errada. Miguel Ángel conseguiu enganar uma centena de cientistas e artistas ilustres com um exemplo clássico da cegueira para a mudança.9

FIM DO ALERTA DE SPOILER

Os estudos sobre a cegueira para a mudança mostram que não notamos alterações drásticas em uma cena visual quando elas ocorrem durante uma interrupção transitória – como um mágico passando a mão atrás da orelha de um espectador, ou dois operários carregando uma porta entre um indivíduo e a pessoa com quem ele conversa –, mesmo quando olhamos diretamente para as mudanças. A cegueira para a mudança também é comum durante os cortes ou as tomadas panorâmicas nos ilmes. Uma taça de vinho pode estar vazia em uma cena e cheia na seguinte. A maior probabilidade é de que você não perceba.

As mudanças lentas ou graduais também são muito di íceis de ver, sobretudo quando não se está com a atenção concentrada no objeto que se modi ica. Isso recebeu uma demonstração convincente de Simons: prédios inteiros, barcos, pessoas e outros objetos de enorme destaque podem aparecer e desaparecer sem que sejam notados, bem diante de nossos olhos, se o processo for conduzido com lentidão su iciente. É tentador especular sobre quantas coisas em nossa vida podem mudar lentamente, sem que tenhamos consciência disso. Os pequenos mal-estares, dores e debilidades que vão colonizando nosso corpo ao envelhecermos seriam intoleráveis se impostos de maneira repentina a uma pessoa saudável de vinte anos, mas, como envelhecemos pouco a pouco, essas mudanças se in iltram, em sua maioria, sem serem detectadas. Outros aspectos da vida, do trabalho e dos relacionamentos podem sofrer mudanças similares, que os pioram ou melhoram de modo muito gradativo e por isso passam despercebidas.

O ilósofo grego Epicuro sabia que tendemos a nos adaptar e, com isso, a ignorar as melhoras gradativas em nossa vida. “Não estragues o que possuis desejando o que não tens; lembra-te de que aquilo que possuis agora esteve um dia entre as coisas por que só podias esperar,” escreveu ele. É um conselho sábio, desde que não nos batam a carteira enquanto nos

distraímos com nossa gratidão.

1 O teste de Pickover se baseia em um truque inventado por Henry Hardin por volta de 1905. Originalmente, Hardin o comercializou como o truque da carta do príncipe. Com o tempo, porém, passou a ser conhecido como o truque da carta da princesa, nome que perdura até hoje.

2 Foi Dai Vernon quem originou os estudos sobre a melhor maneira de virar uma carta para revelá-la ao final de um truque.

3 Juan Tamariz escreveu e lecionou profusamente sobre como combinar a mágica e o humor e a dificuldade de atingir um equilíbrio entre os dois.

4 O site de Clifford Pickover na internet oferece algumas explicações hilárias de pessoas que experimentaram fazer o teste em seus computadores. Eis a nossa favorita, proveniente de Petri Kotro, da Universidade da Lapônia, na Finlândia: “Caro Cliff, seu programa retirou várias vezes a carta que escolhi, apesar de eu ter falado inlandês ao dizer o nome dela. Não são muitas as pessoas do mundo anglo-saxão capazes de ler com essa facilidade os pensamentos de uma mente fino-ugriana (ou que saibam finlandês). Ou será que você é celta?”

5 Você pode assistir a esse vídeo em www.theinvisiblegorilla.com/videos.html.

6 O mesmo problema não ocorre quando se conversa com um passageiro dentro do carro porque ele e o motorista reduzem a conversa ou param de falar quando o trânsito ica mais movimentado, começa a chover ou é preciso trocar rapidamente de faixa. O passageiro vê o que o motorista vê, ao passo que a pessoa do outro lado da linha não.

7 Ensopado de peixe e frutos do mar semelhante à bouillabaisse, típico de San Francisco e outras cidades californianas. (N.T.)

8 O número de Miguel Ángel Gea é uma versão ampliada de um truque de Francis Carlyle. A técnica da troca de cartas já era usada por Johann Nepomuk Hofzinser, um gênio vienense da mágica de meados do século XIX.

9 Para mais informações sobre Miguel Ángel, ver www.miguelangelgea.com e www.sleightsofmind/media/miguelangelgea.

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O segredo do ventríloquo: ilusões

No documento Truques Da Mente (páginas 94-99)