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SOBRE O DESPISTAMENTO

No documento Truques Da Mente (páginas 68-74)

Bem-vindos ao espetáculo, mas, por favor, mantenham os olhos vendados: ilusões

SOBRE O DESPISTAMENTO

Você não tem que ser mágico para ser hábil no despiste da atenção. Quando uma conversa beira um terreno incômodo, seu instinto natural é mudar de assunto. Muitas vezes, a outra pessoa entra no jogo, como se vocês não tivessem acabado de falar do seu câncer, e inge que sim, estamos realmente falando do resultado do jogo dos Red Sox ontem à noite. Nosso cérebro foi feito para ser lexível no que diz respeito àquilo a que prestamos atenção, tanto no nível sensorial quanto no cognitivo. Sem essa lexibilidade, seríamos incapazes de dirigir para casa pensando em qual será a comida do jantar e, de um instante para outro, dar uma guinada no volante, para desviar da criança que saiu correndo atrás da bola.

Após depenar George, Apollo virou-se para a plateia e perguntou: – Agora, vocês querem ver os bastidores de como fiz isso tudo?

Os mágicos são famosos por terem horror a revelar seus segredos, mas Apollo estava em Las Vegas nessa noite para instruir, não apenas para divertir. Chamou de novo o sempre amável George para mais uma pilhagem, porém dessa vez explicou o que fazia. Diminuiu muito a velocidade de suas técnicas, de vez em quando parando e voltando atrás.

A maioria das pessoas chama de “despistamento” o que os mágicos fazem, explicou Apollo, mas isso é como dizer que os médicos levam as pessoas a melhorar usando suas habilidades de cura. É um termo tão genérico que chega a icar quase sem sentido. Apollo prefere discutir princípios e técnicas especí icos, como “enquadramentos” e “manejo da atenção”. Não é verdade, diz ele, que a mão seja mais rápida do que o olho. A maioria das manipulações é executada em uma velocidade normal. O sucesso depende da habilidade do mágico em desviar nossa atenção do método e direcioná-la para o efeito mágico.

ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE

O s enquadramentos são janelas de espaço criadas pelo mágico para focalizar nossa atenção. O enquadramento pode ter o tamanho de um cômodo inteiro ou de um tampo de mesa, ou não ser maior do que um cartão de visita. “Dentro do enquadramento, você não tem alternativa senão observar”, diz Apollo. “Uso o movimento, o contexto e o tempo para criar cada enquadramento e controlar a situação.” Apollo fez uma demonstração, chegando bem perto de George. Segurou-lhe a mão e ingiu pressionar uma moeda dentro dela, embora tudo o que estava de fato colocando ali fosse outra pós-imagem sensorial, feita com seu polegar. “Aperte com força”, instruiu. George olhou atentamente para sua mão, agora captada dentro de um enquadramento, e apertou. “Você está com a moeda?”, provocou Apollo, e George meneou a cabeça. Achava que sim. “Abra a mão”, disse Apollo. A palma estava vazia. “Olhe para o seu ombro”, instruiu o mágico. George o fez, e havia uma moeda pousada nele.

Apollo explicou que, quando a atenção do sujeito se localiza em um enquadramento, as manobras fora deste raras vezes são detectadas (como pôr uma moeda em um ombro). Os mágicos, disse ele, controlam totalmente a atenção, em todos os momentos. As pessoas tendem a pensar no despistamento como a arte de fazer alguém olhar para a esquerda enquanto se faz um truque à direita, mas Apollo a irmou que despistar tem mais a ver com forçar o foco de atenção a se concentrar em um lugar específico em determinado momento.

Os mágicos exploram diversos princípios psicológicos e neurais para fazer com que a pessoa concentre o foco de atenção. Lembre-se de que, quando você vê um objeto que é novo, brilhante, chamativo ou móvel – pense na pomba branca que sai voando da cartola –, sua atenção é impulsionada pelo aumento da atividade em seu sistema sensorial ascendente, o que signi ica que a informação que se destaca em seus sentidos lui para o cérebro. Vem da parte inferior e sobe. Você sente uma forte atração pelo objeto. Os neurocientistas dão a isso o nome de captação sensorial. Os psicólogos chamam de captação exógena da atenção . Para os mágicos, o nome disso é despistamento passivo.

No despistamento passivo, você presta atenção ao pássaro esvoaçante, enquanto o mágico consegue alguns instantes despercebidos para executar uma manobra furtiva. O despiste é passivo porque o mágico nos deixa fazer todo o trabalho. Ele apenas cria a situação. Na versão com copos e bolas de Penn & Teller, Penn usa suas habilidades de malabarista para atrair sua atenção, enquanto Teller faz um movimento oculto. Na

verdade, Penn lhe diz o que está fazendo. “Isto não é malabarismo”, declara, enquanto as três bolinhas de papel-alumínio giram diante do rosto dele – “isto é um despiste.” Você, é claro, não consegue deixar de observar atentamente o espetáculo de malabarismo, até o momento em que Penn lhe informa que você foi tapeado.

Se há mais de um movimento visível – a pomba que voa descreve um arco no alto, enquanto o mágico põe a mão em uma caixa para preparar o truque seguinte –, você acompanha naturalmente o movimento maior, mais destacado. Acompanha o pássaro, não a mão. Daí o axioma dos ilusionistas: “O movimento grande encobre o movimento pequeno.” De fato, um estímulo grande ou veloz, como a pomba voando, pode literalmente diminuir o destaque perceptível de um estímulo menor, ou que se mova mais devagar, como a mão do mágico na caixa, de modo que a atenção é atraída pelo pássaro, não pela mão. A razão você já conhece: quando prestamos atenção a certa localização no espaço, os neurônios responsáveis pelo processamento das informações nas regiões circundantes são inibidos.

Quando duas ações de destaque idêntico se iniciam simultaneamente, a que você nota primeiro capta a sua atenção. Torna-se mais destacada e a outra ação é inibida, icando menos saliente. Além disso, as coisas inéditas (a pomba inesperada) produzem reações mais fortes em partes do cérebro que são cruciais para a alocação da atenção (a saber, o córtex inferotemporal, o hipocampo, o colículo superior, o córtex pré-frontal e a área intraparietal lateral; essas áreas recebem os sinais sensoriais de baixo para cima e acionam circuitos que intensi icam o objeto ao qual se presta atenção, ao mesmo tempo que eliminam outros objetos do campo visual). O destaque de um objeto também aumenta quando o mágico dirige ativamente a nossa atenção para ele. Por exemplo, Apollo pode pedir a você que folheie as páginas de um livro enquanto põe no bolso a carteira que lhe surrupiou. Você ica absorto na tarefa de virar as páginas. Esse é o despistamento ativo . (Os psicólogos o chamam de captação endógena da atenção.) Seu controle da atenção de cima para baixo se concentra no livro e você ignora a mão. As ações do mágico intensi icam a ativação dos neurônios envolvidos na atenção que você presta para virar as páginas do livro, enquanto os neurônios que poderiam atentar para as mãos dele são inibidos.

Apollo também nos confunde a cabeça de outras maneiras. Sua arenga visa gerar um diálogo interno na mente do espectador – uma conversa

dele consigo mesmo sobre o que está acontecendo. Isso, diz o mágico, resulta em uma enorme confusão. Torna mais lento o tempo de reação do espectador e o leva a se criticar.

Muitos mágicos usam a comicidade e o riso para reduzir a concentração de nossa atenção em pontos cruciais de seus truques. Lembra-se do Grande Tomsoni e de suas piadas batidas? Ele tira proveito da atenção diminuída naqueles momentos incomuns em que você relaxa depois de uma piada. E o Magic Tony e seus sapatos de leopardo? A lenga-lenga de Tony nas mágicas se concentra nos trocadilhos e em uma retórica de natureza caseira. Ele criou um personagem que encarna plenamente um dos estereótipos primários dos mágicos: o tio piadista fora de moda. Tony diz que o objetivo de sua conversa é ser “tão careta que chegue a ser maneira”. Não pudemos deixar de nos perguntar por que ele havia escolhido uma persona tão, bem… chata. Tony diz que os canastrões acidentais criam um clima em que o espectador pode rir de suas piadas, mas por achar que tem de ser gentil, não por elas serem engraçadas. Sem o riso falso, o espetáculo seria constrangedor para todos, e por isso a pessoa ri. Mas Tony percebeu que um amante incorrigível de trocadilhos, exagerado e intencionalmente canastrão, é capaz de fazer do espectador um carrasco voluntário de seu humor. E isso pode ser muito útil como veículo de despistamento. Uma reação sincera de resmungo diante de um trocadilho prende mais a atenção do que uma risada falsa, diz Tony. É di ícil o sujeito icar concentrado no método de um truque quando está ocupado em se contrair de horror ou em revirar os olhos.

Em muitos truques de ilusionismo, a ação secreta ocorre quando o espectador pensa que o truque ainda não começou ou já acabou. Os mágicos dão a isso o nome de despistamento temporal. Eles também podem introduzir demoras entre o método por trás de um truque e seu efeito, impedindo que se estabeleça uma ligação causal entre os dois. Arturo de Ascanio, grande teórico da mágica e pai dos truques espanhóis de baralho, refere-se a esse tipo especí ico de despistamento temporal como o “parêntese do esquecimento”. Em essência, isso signi ica que o mágico deve separar o método do efeito mágico. Essa separação confunde o processo de reconstituição dos espectadores.

Imagine que um mágico inja que transfere uma moeda da mão esquerda para a direita e depois abra a mão direita e revele que está vazia. Como não há separação entre o truque (a falsa transferência) e o efeito mágico (o sumiço da moeda), você pode facilmente concluir que a

moeda nunca foi transferida de fato, mas permaneceu escondida na mão esquerda do mágico. Um pro issional mais talentoso introduzirá uma separação – um parêntese de esquecimento – entre o método e o efeito. Por exemplo, após a falsa transferência da moeda e antes de revelar a mão direita vazia, ele poderá pôr a mão no bolso, com a inalidade explícita de pegar uma varinha mágica, mas, na verdade, estará também deixando cair no bolso a moeda empalmada. Depois, tocando na mão direita com a varinha da esquerda, ele mostrará que a moeda desapareceu. Ao repassar a cena em sua mente, você terá mais di iculdade para descobrir onde pode estar escondida a moeda que sumiu.

Um dos truques de Magic Tony envolve o despistamento baseado no que os psicólogos chamam de paradigma da habituação-desabituação. Isso signi ica que ele procura promover a apatia do espectador (isto é, deixá-lo entediado, com preguiça ou desatento ao que o mágico faz), dando a impressão de repetir a mesma ação várias vezes, induzindo-o a um falso sentimento de segurança. Isso é a habituação. E aí, bum!, ele modi ica o método e o conduz ao efeito espetacular resultante.

Eric Kandel, ganhador do Prêmio Nobel, e nosso amigo Tom Carew mostraram que um dos correlatos neurais da habituação-desabituação é uma mudança na força das ligações entre os neurônios do cérebro. Quando ocorre a habituação, os neurônios enviam menos substâncias químicas sinalizadoras (neurotransmissores) aos neurônios a que estão ligados, diminuindo com isso a resposta descendente. Quando a mesma conexão se desabitua, o neurônio sinalizador torna a enviar uma porção de neurotransmissores, o que restabelece a reação maior no neurônio mais abaixo. Tony, com toda a elegância, faz os neurônios da plateia passarem da habituação para a desabituação. Suas repetições iniciais embalam o cérebro dos espectadores, levando-o a uma habituação que embota a mente, e em seguida eles são bruscamente despertados (desabituados) pelo susto do efeito mágico que ele enfim alcança.

FIM DO ALERTA DE SPOILER

Outro conceito importante, disse Apollo aos cientistas reunidos em Las Vegas, é que os truques se inserem em atos naturais. Ele demonstrou essa ideia fazendo uma caneta desaparecer. Balançou-a diante da plateia com uma das mãos. Quando passou a outra mão pela orelha, como se estivesse se coçando, ninguém notou. Foi um movimento natural, rápido, sem maior destaque. De repente, todos viram que a caneta tinha desaparecido. Apollo

virou a cabeça e a mostrou presa atrás da orelha.

Teller, a metade mais baixa da dupla Penn & Teller, despiu-se de sua persona calada para descrever o mesmo conceito. Ex-professor de latim do curso médio, ele está longe de ser mudo fora do palco. Tem grande amor pelas palavras, e suas explicações são não apenas cultas, mas inesperadamente eloquentes. “Ação é movimento com um propósito”, diz. Nas interações sociais normais, buscamos o tempo inteiro o propósito que motiva os atos alheios. Um ato sem um propósito óbvio é anômalo. Chama a atenção. Entretanto, quando o propósito parece ter uma clareza cristalina, não investigamos mais nada. Teller explica que levantaria suspeita se erguesse a mão sem uma razão aparente, mas não ao executar um ato aparentemente natural ou espontâneo, como ajeitar os óculos, coçar a cabeça, pôr o paletó no encosto de uma cadeira, ou meter a mão no bolso para pegar uma varinha mágica. Ele dá a isso o nome de “impregnar o movimento”, e diz: “Os mágicos habilidosos impregnam todas as manobras necessárias com uma intenção convincente.”

Agora os neurocientistas têm uma boa ideia de por que esses atos que servem de isca são tão bons para nos enganar. Isso provém de um tipo notável de célula cerebral, chamada neurônio especular. Você já se familiarizou com a ideia da “visão mental”: mais ou menos a seu critério, você pode evocar uma experiência quase visual de praticamente qualquer coisa que possa ser vista ou retratada em imagens. Você também tem seu “ouvido mental”, com o qual pode reproduzir melodias, ruídos e vozes com que tenha familiaridade. De modo similar, existe o seu “corpo mental” – a representação virtual que o cérebro tem do eu físico. Quando planeja o que preparará para o jantar de hoje, quando devaneia que é um herói de um

ilme de ação ou toda vez que revive a lembrança dolorosa de uma humilhação sofrida na aula de educação ísica, você faz uma simulação virtual dessas ações em seu corpo mental. É um instrumento psíquico de valor inestimável para o planejamento e a execução de ações, para a aprendizagem de habilidades motoras e a recordação delas.

Os neurônios especulares são uma parte importante do corpo mental, pois nos ajudam a compreender os atos e as intenções de outras pessoas. Fazem isso imitando automaticamente as ações de terceiros e presumindo as intenções deles, com o uso do nosso próprio corpo mental. Por essa razão, ao vermos Teller pegar um copo d’água, fazemos instantaneamente a mesma coisa em nosso corpo mental. Também lhe atribuímos uma motivação simples e natural – ele está com sede e levará o copo à boca

para tomar um gole. No nosso corpo mental, nós também o fazemos. Muitos dos mesmos neurônios que entram em ação ao bebermos alguma coisa entram em ação quando achamos que alguém para quem olhamos está prestes a beber algo. O cérebro faz uma previsão e executa uma simulação, de maneira automática e, em geral, subconsciente.

Os neurônios especulares são um componente importante da inteligência social humana. Fazem parte de como somos capazes de compreender uns aos outros, de imitar, aprender, ensinar e ter empatia. Mas também podem nos induzir ao erro. Um bom mágico é capaz de disfarçar um ato como se fosse outro, ou de ingir convincentemente um ato que não está de fato praticando e levar nossos neurônios especulares a nos apresentar inferências falsas sobre o que ele realmente faz ou deixa de fazer. Você vê Teller levar o copo à boca e transmitir a impressão de beber algo, e sua previsão automática parece se con irmar. Mas será que ele bebeu mesmo alguma coisa? Talvez tenha transferido algo da mão para a boca, ou da boca para a mão.

No documento Truques Da Mente (páginas 68-74)