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CRIMES DA MEMÓRIA

No documento Truques Da Mente (páginas 127-133)

O truque indiano da corda: ilusões mnêmicas

CRIMES DA MEMÓRIA

Em 1975, um especialista australiano em testemunhas oculares, Donald Thompson, apresentou-se em um debate ao vivo na televisão sobre a falta de idedignidade da memória dessas testemunhas. Mais tarde, foi detido, colocado em uma ila de identi icação de suspeitos e apontado por uma vítima como o homem que a havia estuprado. A polícia acusou Thompson, muito embora o estupro tivesse ocorrido durante o período em que ele estivera na televisão. Descartou o álibi de que ele estava à vista de todos, diante de uma grande audiência e na companhia de outros convidados do programa, inclusive de um subcomissário de polícia. O policial que obteve seu depoimento zombou: “É, imagino que você também estivesse com Jesus Cristo e a rainha da Inglaterra.” Os investigadores acabaram descobrindo que o estuprador havia atacado a mulher quando ela estava assistindo à

televisão – justamente ao programa a que Thompson tinha comparecido. A mulher confundiu o rosto do estuprador com o rosto visto na televisão. Thompson foi inocentado.

Em outro caso célebre, a mais antiga lembrança da infância de Jean Piaget, famoso psicólogo infantil, era de quase ter sido sequestrado aos dois anos de idade. Ele se recordava de detalhes – ser amarrado em seu carrinho, assistir à babá se defender do sequestrador, ver os arranhões no rosto da babá e um policial de capa curta e cassetete branco perseguindo o sequestrador em fuga. Mas isso nunca aconteceu. Treze anos depois da suposta tentativa de sequestro, a antiga babá de Piaget confessou ter inventado a história toda. Piaget acabou percebendo que suas lembranças visuais marcantes desse episódio tinham sido fabricadas, por ele ter ouvido a história ser repetida muitas vezes por sua família.

ALERTA DE SPOILER! A SEÇÃO SEGUINTE DESCREVE

SEGREDOS DA MÁGICA E SEUS MECANISMOS CEREBRAIS!

Os ilusionistas plantam recordações falsas em diversos truques. Um exemplo notável é a ilusão do braço torcido. O mágico põe a palma da mão em uma super ície plana e começa a torcê-lo em um arco impossível de 360 graus. Em seguida, gira-o pela segunda vez. O truque se baseia no fato de que o mágico já havia torcido o braço inteiro sob a manga comprida do casaco, o que ninguém consegue ver.2 Depois da primeira revolução, ele

pede ao espectador que faça a mesma coisa. Durante esse esforço, reposiciona o braço para mais uma volta. A plateia nunca se lembra de que o mágico tirou o braço da mesa, por estar muito absorta na ilusão. O que ela recorda é que a palma da mão dele girou duas vezes sem se levantar da mesa. Um caso de desinformação somada a uma falsa lembrança.

FIM DO ALERTA DE SPOILER

As ilusões mnêmicas provêm da nossa necessidade de dar sentido ao mundo. Se você vê um monte de laranjas no chão e em seguida a imagem de uma causa provável, como alguém tentando pegar uma delas na base de uma grande pirâmide de laranjas, é provável que se lembre de ter visto a pessoa pegar a laranja de baixo, mesmo que isso não tenha acontecido. Você imagina o evento e preenche os detalhes conforme a necessidade.

Pode se lembrar de acontecimentos de um modo diferente de como eles ocorreram, ou até recordar acontecimentos inexistentes.

A equipe do programa cientí ico Daily Planet, do Discovery Channel canadense, havia terminado sua visita a nossos laboratórios e nós dois estávamos levando Apollo Robbins ao Aeroporto Sky Harbor, de Phoenix, para embarcar em seu voo de volta a Las Vegas. Apollo tinha ido ao nosso instituto para a gravação do documentário, a im de podermos escanear seu cérebro por meio de uma ressonância magnética funcional e também medir os movimentos oculares de pessoas da plateia enquanto ele furtava relógios e outros pertences pessoais, tudo diante das câmeras.3 Chegamos

cedo para o voo e fomos saborear alguns dos melhores bolinhos recheados da cidade no Flo’s Shanghai, na praça de alimentação do terminal 4 do aeroporto, e conversar sobre como os mágicos não só manipulam a memória dos espectadores, como também usam a mnemônica para ampliar suas próprias habilidades mnêmicas a fim de criar efeitos mágicos. Apollo explicou que, associando mentalmente números e objetos corriqueiros (ou pessoas, lugares, coisas, atividades, conceitos etc.) a delirantes caricaturas imaginárias dessas coisas, ele conseguia reter a lembrança de um grande número dessas associações por um prazo incrivelmente longo. Tão longo que nem parecia memória, parecia magia. Ele fez uma demonstração, pedindo a Susana que escrevesse uma lista de quinze itens, em ordem aleatória e sem que ele a visse, e fosse dizendo o que era em voz alta, ao avançar. “Número 6: lobo; número 11: mercado; número 2: roleta…” Ela escreveu sua lista com uma caneta preta em um dos guardanapos de papel com gravura de hibiscos do Flo’s, tendo atrás uma mancha de molho de soja no formato do lábio inferior de Steve. Eis a lista completa: 1. bola de tênis 2. roleta 3. ônibus 4. biscoito 5. sótão 6. lobo 7. abajur 8. gigante 9. leque

10. dedos 11. mercado 12. cachorro-quente 13. escada rolante 14. coluna 15. espelho

Apollo a ouviu, mas não pareceu se concentrar de maneira particularmente cuidadosa. Ao final, disse:

– Certo, agora vou repetir os itens na ordem. Con iram com a lista de vocês, por favor.

Susana certi icou-se de que ele não podia ver a lista escrita enquanto lia os itens em sua própria lista mental, como havia prometido:

– Número 1: bola de tênis; número 2: roleta…

Acertou todos. Em seguida, recitou a lista de trás para a frente. Depois, pediu a Susana que riscasse sete itens da lista de forma aleatória e disse em voz alta apenas o número de cada um, à medida que fosse riscado. A lista continuou escondida dos olhos do mágico, enquanto Susana ia riscando suas escolhas. Apollo relatou então os itens restantes, em ordem numérica.

O desempenho dele foi uma demonstração direta e extremamente notável de capacidade mnêmica. Ficamos zonzos com suas implicações.

– Como você fez isso?

Apollo explicou que era um truque fácil, que servia para aumentar bastante a capacidade da memória humana:

– Tudo que iz foi associar cada par de números e objetos a uma caricatura imaginária de cada objeto. Mas o verdadeiro truque é que tenho uma lista de objetos-padrão que uso para representar cada número. Ela se baseia em objetos de som similar, ou em homônimos dos números. Por exemplo, o número um [ one] tem um som parecido com “varinha mágica” [wand]; assim, quando faço a associação entre o objeto e o número, na verdade estou associando a varinha ao objeto escolhido. Nesse caso, gravei na memória a imagem de uma bola de tênis segurando uma varinha. Depois, quando chega o momento de recitar a lista, pego cada número alternadamente (para a frente ou para trás), recordo o homônimo numérico associado que sempre uso para esse número e utilizo isso para avivar minha memória em relação ao objeto associado da lista de Susana.

Para apagar um item da lista, imagino cada par formado por um objeto e um número sendo gra icamente destruído enquanto Susana o risca da sua lista. No caso da bola de tênis que segura a varinha, imaginei o par pegando fogo e a bola de tênis explodindo com a pressão interna. Fiz o mesmo com cada um dos itens apagados, e depois, ao repassar a lista inteira à minha maneira normal, foi fácil ver os números que tinham sido apagados, pois eu os tinha destruído de várias formas na minha imaginação.

Na volta do aeroporto para casa, mal conseguíamos acreditar que não tivéssemos sido treinados para fazer isso, como neurocientistas. Por que não usávamos essa técnica para fazer palestras cientí icas perfeitamente ordenadas, ou ao menos para lembrar os nomes das pessoas que conhecemos em festas? Por que não se ensinava essa técnica às crianças para elas aprenderem a tabuada ou outras listas necessárias? Se os neurologistas pudessem dominar essas técnicas, talvez conseguissem ensinar os pacientes com Alzheimer a se lembrar melhor da ordem segundo a qual vestir a roupa a cada manhã e, quem sabe, habilitá-los a morar em suas próprias casas por mais um ano. Isso talvez fosse um grande avanço no tratamento de pacientes com declínio cognitivo.

Depois soubemos que a técnica usada por Apollo é chamada de sistema dos pregadores, que é um modo de ligar uma quantidade qualquer de itens a determinados dígitos. Os números ou algarismos são representados por uma palavra – varinha [wand] para 1 [one], colmeia [hive] para 5 [five], galinha [hen] para 10 [ten] e assim por diante. Em seguida, associa-se a palavra referente ao número a uma imagem visual vívida. Os elementos de ligação são mais fáceis de lembrar quando interagem, são inusitados e mexem com as emoções, fazendo a pessoa rir, sentir nojo ou intuir um perigo. É a imaginação que impulsiona a força das associações. Você também pode ligar itens sem usar números, associando cada palavra à palavra seguinte da lista. Na lista de Susana, poderíamos pensar em uma gigantesca bola de tênis ricocheteando em uma roleta que, por sua vez, seria o volante de um ônibus, e assim por diante.

Esses sistemas mnêmicos funcionam porque a memória de curto prazo, caso não conte com alguma forma de auxílio, só é capaz de se lembrar de sete unidades (podendo variar em duas unidades para mais ou para menos) de qualquer coisa de uma vez. Depois de sete itens, a pessoa começa a esquecer, a im de dar espaço para novos itens. Ou então ela pode juntar itens em “blocos”, como ao recordar os algarismos de um

número de telefone (pre ixo mais quatro) e um código de área. Um verso de poema que tenha mais do que cerca de sete pés precisa ser dividido em dois.

Outra estratégia mnêmica, chamada de método dos loci (plural de locus, que signi ica localização ou lugar), também conhecido como palácio da memória, existe há séculos. Baseia-se na suposição de que conseguimos lembrar melhor os lugares com que estamos familiarizados, de modo que, se pudermos ligar algo que precisemos recordar a um lugar que conheçamos muito bem, o local servirá de dica para ajudar na rememoração.

De acordo com o ilósofo romano Cícero, esse método foi desenvolvido por volta de 500 a.C. por Simônides de Ceos, um poeta grego que foi o único sobrevivente do desmoronamento de um salão de banquete na Tessália (ele tinha dado uma saída do local). Simônides pôde identi icar os mortos, esmagados a ponto de se tornarem irreconhecíveis, recordando os rostos com base na disposição dos lugares à mesa naquele dia. O poeta logo percebeu que poderia recordar qualquer número de itens mediante a criação de roteiros mentais e a visualização dos itens em vários pontos do caminho. Na hora de lembrar, ele simplesmente refazia a rota conhecida e recordava com facilidade cada item. De maneira distinta da ligação, o método dos loci envolve a colocação de uma vívida representação visual de cada item em um espaço geográ ico. O que há de bom nesse método é que, quando se esquece um item, pode-se continuar a “andar mentalmente” pelo espaço e passar à coisa seguinte a ser lembrada.

Em 1583, o método foi levado para a China por um padre jesuíta italiano, Matteo Ricci, que tinha a esperança de disseminar o catolicismo pelo país, mas primeiro precisava demonstrar a “superioridade” da cultura ocidental. E o fez ensinando o método dos loci a jovens estudiosos confucianos que precisavam saber de cor um número incontável de leis e rituais.4

Você pode tentar essa experiência pessoalmente. Faça uma relação de itens que queira decorar, talvez uma lista de compras – sorvete, pão, ração para o gato, maionese, peito de frango etc. Agora, imagine-se andando por sua casa ou seu apartamento. Comece pela porta da frente e crie seu trajeto passando por vários cômodos. (Se você mora em um apartamento de um cômodo só, divida o espaço em áreas distintas.) Em sua imaginação, ponha cada item da lista de compras em um único local do trajeto. Sua porta da frente estará borrada de sorvete de cereja e chocolate amargo. O

sofá da sala terá passado a ser um pão francês. A porta da cozinha terá a forma de um gato. A mesa da sala de jantar estará dissolvida em uma massa de maionese. A porta do banheiro será revestida de peitos de frango.

Quando quiser se lembrar da lista de compras, tudo que você terá de fazer será visualizar sua porta da frente. No mesmo instante, você verá o sorvete. Ao entrar na sala, o pão francês virá à lembrança, e assim por diante. Os especialistas em memória dizem que devemos criar imagens que sejam as mais esquisitas e extravagantes possíveis.

Você também pode pôr mais de um item em qualquer local. Se tiver uma relação com quarenta itens de compra para recordar, experimente colocar quatro em cada um de dez locais. Cada um desses quatro itens deve interagir com sua localização. Quando você abrir a porta de entrada, verá uma porção de sorvete se derreter em um pão francês com cobertura de maionese e salpicado de ração para gatos.

No documento Truques Da Mente (páginas 127-133)