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A CATEGORIA TRABALHO E A RESSIGNIFICAÇÃO DA ÉTICA PROFISSIONAL

2.1 A centralidade ontológica do trabalho

A definição da categoria trabalho vem sendo objeto de análise de diversas correntes teóricas do pensamento social contemporâneo, dentre as quais a teoria social crítica. A discussão sobre tal categoria deve ser analisada de maneira minuciosa, pois a pluralidade de correntes de pensamento tradicionalmente enviesa as análises desta categoria tão central para o ser humano, levando-a a vulgarismos que podem distorcer sua particular centralidade no mundo contemporâneo.

Com esta direção, abordaremos a categoria trabalho a partir da sua condição central no debate presente dentro do arcabouço da tradição marxista. Tal discussão é relevante, dada a própria condição de trabalhador com a qual o assistente social se insere na divisão social e técnica do trabalho, tendo em vista toda conjuntura das relações capitalistas de produção e reprodução da vida social.

Assim, para Paulo Netto e Braz (2007, p. 30), o trabalho é considerado ―a satisfação material das necessidades dos homens e mulheres que constituem a sociedade — obtêm-se numa interação com a natureza: a sociedade. Através dos seus membros [...] transforma matérias naturais em produtos que atendem às suas necessidades‖. O trabalho, nessa concepção marxiana, pode ser entendido como a forma de o homem, como ser social, dispor das condições físicas e espirituais necessárias para transformar a natureza, distinguindo-se, assim, dos outros animais, pois somente o homem detém as condições objetivas e subjetivas para executar o trabalho.

Vejamos a definição sobre trabalho e a diferenciação que Marx faz entre os animais da natureza:

O trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. [...] Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho [...] Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu

o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural, o seu objetivo (MARX apud PAULO NETTO; BRAZ, 2007, p. 31-2).

Assim, o trabalho, além de ser uma atividade fundante para o ser social, pois lhe confere determinado estatuto, diferenciando-o dos demais animais existentes na natureza, possibilita a transformação da natureza e, por consequência, a sua transformação enquanto ser humano. Marx anuncia que, além desta função social, o homem possui a capacidade de projetar finalidades (função teleológica), ou seja, a capacidade de construir, no âmbito da consciência, determinada forma que será objetivada no concreto (objetivo), como um resultado da sua prévia ideação (abstrata), construção mental antecipada na mesma consciência que a materializa. Assim, para Lucáks (1981, p. 8), a teleologia ―deve ser compreendida como uma categoria posta [e] guiada através da consciência ao estabelecer um fim‖.

Destaca-se que essa função teleológica é determinada a partir da busca das satisfações das necessidades distintas da humanidade, já que é constituída a partir do momento em que o homem busca-a como forma facilitadora das suas atividades laborais cotidianas. Isto porque é a partir da teleologia que o homem projeta na sua consciência as formas daquilo que em breve será seu trabalho objetivado.

Com relação à prévia ideação, é emblemática a sutil, porém importante comparação de Marx entre a ideação consciente do homem e a materialização inconsciente da abelha e da aranha, pois ambas possuem inerentes qualidades de exímias construtoras na execução dos seus ―trabalhos‖, porém, elas não detêm a consciência daquilo que é objetivado pela sua ação. Aos homens, segundo Marx (apud PAULO NETTO; BRAZ, 2007, p. 31-2),

[...] os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios. [...] o processo de trabalho [...] é a atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, [...] comum a todas as suas formas sociais.

Portanto, a relação entre homem e natureza é uma condição sine qua non, pois é condição inerente, natural, e ―a sociedade não pode existir sem a natureza – afinal, é a natureza, transformada pelo trabalho, que propicia as condições da manutenção da vida dos membros na sociedade‖ (PAULO NETTO; BRAZ, 2007, p. 35). O trabalho, enquanto categoria ontológica, não pode ser reduzido apenas à questão de transformação da natureza, pois possui características sociais bem determinadas. Esta função social do trabalho pode ser

entendida, segundo Iamamoto (1997, p. 58), se ―este caráter social só se manifesta no conteúdo do trabalho, quando, como membro de um complexo social, produz para as necessidades dos demais, estando submetido a uma dependência social‖.

Deste modo, o trabalho deve ser apreendido a partir desta sua função social, pois as necessidades de outros indivíduos fazem com que o trabalho apresente sua finalidade social, coletiva. No capitalismo, aquilo que é produzido pelo trabalhador na esfera privada torna-se social a partir das necessidades coletivas, constituindo os laços sociais entre os indivíduos, os quais estão mediatizados pela mercadoria que produzem, adquirindo um significado monetário, financeiro, ou seja, de valor financeiro, que, por conseguinte, gerará lucro ao dono dos meios de produção.

Essa monetarização das mercadorias necessita ser entendida no contexto do desenvolvimento da divisão social do trabalho, pois é nesta divisão que os indivíduos produzem objetos por intermédio do trabalho que, por sua vez, são possuidores de valor de troca. Iamamoto (1997, p. 59) situa a divisão do trabalho na ―condição de existência da troca, do valor de troca‖, e ainda infere que ―a sociedade burguesa é a sociedade do valor de troca desenvolvido, o qual domina toda a produção‖. A divisão do trabalho, em síntese, pode ser representada e entendida por meio do valor de troca dentro da sociabilidade burguesa.

Se a divisão insere-se a partir da existência do valor de troca ocorrida dentro da sociabilidade burguesa (capitalista), ainda temos um fator essencial ao funcionamento metabólico do capital: a questão monetária. Assim, Iamamoto (1997, p. 59) afirma que ―a relação direta do produtor com o produto de seu trabalho tende a desaparecer, tornando toda a produção dependente das relações monetárias‖. Deste modo, as mudanças em curso na atual quadra histórica já apontam o desaparecimento desta relação, pois o resultado do seu trabalho é apropriado pelo grande capital e, por conseguinte, torna-se uma mercadoria atribuída de determinado valor monetário. Apesar de o trabalho possibilitar ao homem os meios necessários para a satisfação das suas necessidades básicas (alimento, moradia, lazer, etc.), criando, assim, formas de acesso aos bens e serviços produzidos por ele mesmo enquanto trabalhador, no capitalismo esse processo é invertido.

[...] no processo capitalista de trabalho, os meios de produção são comprados no mercado pelo capitalista, o mesmo acontecendo com a força de trabalho. O capitalista, em seguida ―consome‖ a força de trabalho, fazendo com que os portadores desta (os trabalhadores) consumam os meios de produção através de seu trabalho. Este é, portanto, realizado sob a supervisão, direção e controle do capitalista, e os produtos resultantes são propriedade dele, e não dos produtores imediatos [trabalhadores]. Esse processo de trabalho é simplesmente um processo entre coisas que o capitalista comprou, e, portanto, os produtos desse processo lhe pertencem (BOTTOMORE, 1993, p. 299).

Deste modo, tudo aquilo que é produzido pelo trabalhador enquanto resultado concreto de suas objetivações pertence ao capitalista (dono dos meios de produção), atribuindo um significado de estranhamento àquilo que é fruto do desgaste da força de trabalho. Assim, o homem é utilizado nesse processo produtivo como instrumento que possibilita a transformação de coisas em objetos que têm no capitalismo o agente que atribuirá a estas coisas valor de uso e valor de troca, ou seja, atribuindo-lhes um status de necessidade e de valor, numa esfera em que se torna essencial ao ser humano.

O trabalho, como capacidade única e exclusiva do ser social (homem), possui um fator de importante de diferenciação entre os animais da natureza, pois confere ao homem condições de satisfação das necessidades, além de possibilitar-lhe o reconhecimento da sua possível condição ontológico-social, mesmo que atravessado pelo elemento da alienação, por exemplo.

Desta forma, pensadores como Lukács, apoiado em Marx, situam o trabalho como um agente que possibilita ao homem condições de transformar a natureza em coisas úteis (transformação da natureza) e transformar-se enquanto ser social, pois o trabalho ―permite o desenvolvimento de mediações que instituem a diferencialidade do ser social em face de outros seres da natureza‖ (BARROCO, 2005, p. 26). Assim, o trabalho autoconstruído historicamente possibilita ao homem a realização das mediações e atividades essenciais: ―a sociabilidade, a consciência, a universalidade e a liberdade‖.

Tais categorias são, em síntese, condições humano-genéricas, categorias estas que dão movimento à práxis enquanto ―atividade livre, universal, criativa e autocriativa, por qual o homem cria (faz e produz), e transforma (conforma) seu mundo humano e histórico e a si mesmo‖ (BOTTOMORE, 1993, p. 292). A ontologia do ser social sustenta-se no ato de reconhecimento do indivíduo como ser social, ou seja, ele vê no trabalho uma atividade que lhe confere condições de transformar a natureza e se transformar, criando deste modo, condições de se reconhecer como ser humano, o que aponta que o trabalho é uma categoria- base de constituição de um novo ser (BARROCO, 2005).

As reflexões recaem na discussão sobre o papel essencial do trabalho na humanização do homem enquanto ser, tendo como ponto de partida a utilização do trabalho enquanto forma de satisfação das necessidades e, consequentemente, como um processo de socialização, tornando-o sujeito construtor da própria história. É a partir do processo de trabalho que os homens estabelecem as relações entre si, sendo assim pressuposto para humanização do homem. O trabalho requer distanciamento entre a imediaticidade dos instintos, pois objetiva por meio da natureza a transformação almejada. Esta transformação segue mediatizada pela

satisfação das necessidades humanas e na direção da sua humanização. Deste modo, pensar esta categoria central para o humano-genérico requer situá-la como uma atividade necessariamente constituída coletivamente, em cooperação com outros homens. Deste modo, esta cooperação é uma

[...] condição ontológico-social inevitável do trabalho, na (re)produção do ser social, dá a ele um caráter universal e sócio-histórico. O trabalho não é obra de um indivíduo, mas da cooperação entre os homens; só se objetiva socialmente, de modo determinado; responde a necessidades sócio-históricas, produz formas de interação humana como a linguagem, as representações e os costumes que compõem a cultura (BARROCO, 2001, p. 26-27).

Logo, a discussão da autora aponta para a reflexão de que o trabalho em sua característica sócio-histórica passou por modificações substanciais, porém não perdeu a essência do seu caráter ontológico, por meio do qual possibilita o reconhecimento do homem enquanto ser humano, de sua relação com outros seres sociais e a possibilidade construtora das formas de linguagem, de sociabilidade, as formas de cultura, etc. Tudo isso mediado por esta categoria, sendo que este caráter de reciprocidade ―constitui-se como categoria intermediária que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social‖ (ANTUNES, 2003a, p. 136).

O salto ontológico pode ser considerado como um momento singular para o ser humano-genérico, pois, pelo trabalho, ele se transforma em outro tipo de ser diferente de outros seres existentes na natureza; um ser social. Deste modo, é a partir do pleno desempenho do trabalho que o homem se reconhece ontologicamente, se sociabiliza e consequentemente se humaniza. A sociabilização é elemento processual ao desenvolvimento do ser humano-genérico, pois é concebida no contexto do desenvolvimento das formas objetivas e subjetivas, a partir das quais o sujeito se relacionam, sob regência das determinações concretas da sociedade. Deste modo, o salto ontológico

implica numa mudança qualitativa e estrutural do ser, na qual a fase inicial contém certamente em si determinadas premissas e possibilidades das fases sucessivas e superiores, mas estas não podem se desenvolver daquelas a partir de uma simples e retilínea continuidade. A essência do salto é constituída por essa ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e não pelo nascimento repentino ou gradual, ao longo do tempo, da nova forma de ser (LUKÁCS apud LESSA, 2007, p. 20).

O salto ontológico como um processo de alteração dos elementos pré-humanos para o atual estágio do humano-genérico não pode ser concebido como um processo retilíneo, dado pela vontade objetiva do ser social: reside no cerne da concretude da vida social, determinada pelas relações sociais de produção capitalistas, concebida suas bases na ruptura (contraditória

e desigual) da condição anterior que possibilitam a emergência deste novo ser orgânico (LARA, 2008).

2.2 A divisão social e técnica do trabalho e o Serviço Social enquanto especialização do