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A divisão social e técnica do trabalho e o Serviço Social enquanto especialização do trabalho coletivo

A CATEGORIA TRABALHO E A RESSIGNIFICAÇÃO DA ÉTICA PROFISSIONAL

2.2 A divisão social e técnica do trabalho e o Serviço Social enquanto especialização do trabalho coletivo

Com a necessidade de organização do processo de trabalho em âmbito político, social, econômico e ideológico, o capital cria uma cisão entre os trabalhadores e o próprio trabalho. Com a posição estratégica do trabalho como atividade essencial à reprodução do capital, ocorre a necessidade de estruturação do seu processo, a fim de possibilitar ao trabalho e ao próprio capital condições de otimização das tarefas e, consequentemente, aumento acentuado da extração de mais-valia (absoluta e relativa).5

A divisão social do trabalho é fenômeno tipicamente da sociedade capitalista e parte do pressuposto da fragmentação das ações do trabalho, com uma perspectiva modernizadora de acumulação de mais capital. Cabe relembrar que as protoformas do trabalho eram rudimentares e se baseavam no atendimento das necessidades mais imediatas de grupos sociais. Recorde-se que o trabalho era fundado em atividades manuais, pautado por habilidades tradicionais, passadas de pais para filhos, como forma de garantir a subsistência. Nessa época, sem o jugo do capital, o sistema econômico que vigorava era o mercantilismo, também conhecido como pré-capitalismo, e a produção dos meios de vida se dava em pequenas oficinas ou até mesmo dentro das casas dos artesãos.

A comercialização baseava-se praticamente na ação da troca ou escambo, vendendo-se tudo aquilo que era produzido. Um diferencial neste processo foi a não venda da força de trabalho e, sim, da coisa produzida. Outro fator a ser apontado neste estudo é que o trabalho realizado manualmente possuía características particulares, peculiares: os artesãos produziam e mantinham seus próprios meios de produção.

Com o advento do capitalismo, as atividades que eram pautadas na troca e na satisfação apenas das necessidades passam a ser determinadas por valores distintos ao seu costume, ficando a cargo de um modelo econômico desigual e extremamente excludente. Os

5 Absoluta: consolida-se com o prolongamento do trabalho, entendido que, antes desse prolongamento, o trabalhador já produzira o objeto determinado, garantindo sua subsistência. As sobras deste trabalho excedente não são contabilizadas ao salário do sujeito que a produziu e, sim, ao capital (PAULO NETTO; BRAZ, 2007). Relativa: parte, também, do prolongamento do trabalho excedente, porém se configura com a inserção de recursos tecnológicos, com a condensação do trabalho necessário e a produção em tempo hábil, equivalente ao salário (PAULO NETTO; BRAZ, 2007).

princípios ideopolíticos do capital baseiam-se na fragmentação das ações, com vistas à maior acumulação de capital por meio de produção em maior escala e na apropriação do trabalho não pago, ou seja, da extração da mais valia ou exploração da força de trabalho.

Para Paulo Netto (1991), Iamamoto (2008), Lessa (2007) e Barroco (2001), entre outros, a estratégia primeira foi a apropriação dos meios de produção, ou seja, aquilo que era apenas para atendimento de necessidades básicas de determinado grupo social passa a ser apropriado pelo grande capital, que o situará na esfera da propriedade e, deste modo, passa a exercer dominação junto àqueles sujeitos que apenas dispõem de uma única mercadoria, ou seja, a força de trabalho. Com a apropriação dos meios de produção, fica estabelecida a existência de duas classes antagônicas, situadas na conflituosa relação capital versus trabalho, entre aqueles que detêm os meios de produção e aqueles que possuem apenas a força de trabalho.

Ao mesmo tempo em que ocorre profundo processo de apropriação dos meios de produção, com a atribuição de valores à mercadoria, tudo que era produzido dentro das pequenas oficinas e casas passa a ter um destino específico: a fábrica. Assim, com a junção de todas as tarefas executadas em um único ambiente, o capital passa a controlar as fases do processo produtivo, principalmente nas formas das determinações sobre o corpo e a ―captura da subjetividade do trabalhador‖ (LOURENÇO, 2009).

Nessas circunstâncias, as coisas produzidas passam a ter significados diferentes para aqueles que o produzem (a alienação e o estranhamento do que foi objetivado por sua ação) e para aqueles que as comercializam (atribuição de valor material e simbólico — fetiche — e a apropriação do excedente da força de trabalho, convertido em apropriação do lucro). Assim, quando a ―atividade humana é alienada, seu caráter social e consciente é negado; a liberdade e a universalidade objetivam-se de forma limitada e inexpressiva‖ (BARROCO, 2008, p. 35).

Além de produzir em escala mais acentuada, a fábrica, regida pela organização capitalista, vai determinar, com o passar do tempo, as novas formas de vida em sociedade, reconfigurando as formas de relações. Ou seja, a inserção no mundo do capital vai impor à sociedade as relações sociais de produção, determinando os modos de vida, as formas e padrões de consumo, a cultura, etc. — ou seja, a vida social se reconfigura sob os ditames da regulação do capital.

Outra característica da divisão social do trabalho é a organização dos trabalhadores na fábrica, que passa a ser coletivo dependente e parcelado, fazendo com que, ao final da tarefa, os trabalhadores não reconheçam aquilo que foi produzido por meio das suas forças físicas e intelectuais. A despeito do resultado do seu trabalho, Marx (2002, p. 212) acentua:

No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural, seu objetivo, que ele sabe que determina como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.

Este processo assinalado por Marx é consubstanciado dentro dos limites do capital, impingindo ao trabalhador a sucumbência de toda sua capacidade (física e intelectual) às determinações sociais, econômicas e ideológicas do grande capital, o que provoca um acentuado processo de estranhamento do conteúdo do sentido ontológico do trabalho, em favor das mercadorias que são originárias do seu processo de trabalho.

É no contexto do seccionamento do trabalho promovido para a reprodução sociometabólica do grande capital, forma institucionalizada de apropriar-se do excedente do trabalho (mais-valia), que o estranhamento ou alienação se manifesta, tendo como elemento- chave o não reconhecimento dos resultados objetivos e subjetivos do seu trabalho ao final do processo de produção. Ou seja, a mercadoria por ele produzida já não possui significação ontológica. Deste modo,

a alienação deriva da apropriação do excedente (produzido pelos trabalhadores) por aqueles que detêm os meios de produção, pela divisão social do trabalho e separação do produto dos seus produtores, mas, sobretudo, das relações sociais, político-institucionais e culturais, estabelecidas pelo sistema capitalista (LOURENÇO, 2009, p. 52).

O processo da alienação decorre de determinações objetivas, concretas, do processo de trabalho, mas, reside, também, na proposta ideológica do grande capital, na evidente manipulação da vida social, dos costumes, da cultura e claro, dos sentidos do trabalho.

Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sabe bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. [...] Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim, como religião e autoatividade de fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atuam independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo (MARX, 2004, p. 82-3).

Neste contexto, é inegável a inscrição do assistente social na condição de sujeito trabalhador inserido no processo, o que não o isenta dos rebatimentos promovidos pelo capital em seu processo de (re)produção. O Serviço Social inscreve-se neste conjunto, por ser uma

profissão inscrita na divisão social e técnica do trabalho, a partir do entendimento de que é uma especialização do trabalho coletivo e que atende necessidades antagônicas. Sua inscrição neste cenário

não se autodetermina. Isto quer dizer que esta profissão, como qualquer outra, não pode prescindir de uma análise da sociedade em sua autocompreensão. Sua história é tributária da história da sociedade capitalista em um dado grau de seu desenvolvimento: a idade dos monopólios (GRANEMANN, 1999, p. 161).

Esta inscrição do Serviço Social como profissão não pode ser compreendida como um processo natural de constituição, dada, por exemplo, como evolução das formas anteriores de caridade, devendo, portanto, ser compreendida a partir do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, que a inscrevem como uma especialização do trabalho. Deste modo, o assistente social, inserido em um complexo jogo de interesses ideopolíticos, mantém, seguramente, uma posição determinada.

Embora constituída para servir os interesses do capital, a profissão não reproduz monoliticamente necessidades exclusivas do capital: participa também das respostas às necessidades legítimas de sobrevivência da classe trabalhadora, enfrentadas, seja coletivamente, através dos movimentos sociais, seja na busca de acesso aos recursos sociais existentes, através de equipamentos coletivos que fazem face aos direitos sociais (IAMAMOTO, 2000a, p. 100).

Segundo Iamamoto (2000a), a clareza que devemos ter com relação ao Serviço Social é entendê-lo como profissão em constante movimento, que não possui teoria própria e que transita entre as necessidades da classe operária e as determinações do mundo institucional do capital, sem perder de vista seus compromissos assumidos com a classe trabalhadora, na perspectiva de uma direção social determinada.

É a própria constituição como trabalhador, mediado pela (re)significação do conteúdo ideopolítico da profissão, que elege valores e uma direção social alinhada à luta geral dos trabalhadores, o que vai situar o assistente social em uma zona tênue e particularmente antagônica do trabalho profissional. Porém, a reflexão do seu entendimento enquanto trabalhador, assegurada na direção social da profissão, confere fundamentos a sua práxis profissional de enfrentamento ao cenário do capital, caracterizado por: contínuo processo de apropriação dos meios de produção, pela exploração da força de trabalho e determinação do seu funcionamento sociometabólico, que indica os caminhos antagônicos da relação capital x trabalho, concebida como uma expressão de luta. Segundo Paulo Netto (2005, p. 163), nossa profissão tem sua

raison d’être (razão de ser) [...] na questão social — sem ela, não há sentido para esta profissão.

Mas até a sua resolução com a supressão da ordem do capital, ainda está aberto um longo caminho para esta profissão. O objetivo histórico da sua superação passa, ainda e necessariamente, pelo desenvolvimento das suas potencialidades. Ainda está longe o futuro em que o Serviço Social vai se esgotar, pelo próprio exaurimento do seu objeto.

Como matéria-prima do trabalho profissional, a questão social não pode ser apreendida apenas como fenômeno objetivo. A questão social necessita de uma compreensão mais profunda, pois é nesta expressão que reside a conflituosa luta entre duas classes antagônicas que, apoiadas por interesses conflitantes, se posicionam em necessidades distintas. É na direção da supressão desta sociedade de classes antagônicas que o projeto profissional acentua sua potencialidade, como um projeto de caráter progressista, alinhado aos interesses da classe trabalhadora.