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MULHERES GUARANI E A VENDA DO ARTESANATO NO CENTRO DE FLORIANÓPOLIS: PERCEPÇÕES E IMAGENS

4.6 O centro da cidade e a venda do artesanato: por uma perspectiva Guaran

Conforme já mencionei, nos meus primeiros dias de campo constatei que, de maneira geral, a interação com os brancos era curta e concisa. Quando alguém se aproximava, e a conversa e a interação se prolongavam mais do que o usual, essa situação gerava em mim muita curiosidade sobre o que estaria sendo falado. Pois bem, passado algum tempo, comecei a perceber que esses diálogos prolongados muitas vezes se referiam à necessidade dos transeuntes de manifestar suas sensações, ou então, opiniões sobre a presença dessas mulheres. Estas pairavam entre a disposição para ajudar de alguma maneira ou de explicar, sugerir ou reclamar que a rua não era um bom lugar para elas e seus filhos, ―convidando-as‖ (às vezes, de modo pouco lisonjeiro) a ficar em casa e

deixar de se expor, e de expor os filhos a um ambiente agressivo como a área central.

Uma experiência de campo em particular e uma conversa com Cleide permitem observar mais atentamente como essas formas se articulam e fazem parte da vida cotidiana dessas mulheres que se tornam, ao mesmo tempo, espelhos e alvos das noções de ―índio‖ genérico construídas no imaginário das pessoas, e que se alimentam das imagens da mídia, dos discursos oficiais e políticos, entre outros:

Era uma bonita manhã de abril, o dia estava ensolarado, apesar de o calendário marcar a estação do outono, e estava tão quente que a sensação era que o verão não queria ir embora. Como a Cleide havia sido muito receptiva comigo naqueles últimos dias, inicialmente, decidi procurá-la, antes da Maria ou da Teresa, e dar bom dia para ela e o Joãozinho, que cada dia estava mais esperto, atento e bonito, e que tinha caído profundamente nos meus afetos.

Quando dobrei a esquina, pude vê-los, mas a cena era tão bonita e pessoal que decidi ficar onde estava, deixando-os à vontade, ao desfrutar desse momento mãe-filho que se desenvolvia diante de meus olhos: o Joãozinho estava nu, tomando sol, evidentemente feliz: mexia-se, brincava com o cabelo de sua mãe, aproximava-se dela e sorria. Cleide correspondia esse belo sorriso e brincava com suas pequenas mãos e pés, beijando-lhe as bochechas, a testa, os braçinhos, dizendo-lhe palavras que eu não conseguia escutar, embora fosse possível perceber o amor contido nelas.

Enquanto esse ritual de amor florescia à luz do dia, contrastando dramaticamente com o cinza escuro do cimento e do prédio junto ao qual mamãe e bebê tinham se estabelecido naquela manhã, o conglomerado de pessoas apressadas para chegar ao trabalho e aos seus destinos caminhava de maneira mecânica, rápida, uniforme, passando sem perceber a presença deles, que curtiam o sol, a companhia mútua e o diminuto cantinho que, naquelas horas, pertencia somente a eles.

Passaram-se vários minutos de felicidade até que uma mulher de aproximadamente cinquenta anos se aproximou deles e começou a falar. Com o correr dos segundos, gesticulava cada vez mais energicamente, mexendo as mãos: seus dedos indicadores se agitavam apontando a surpreendida mãe que ficou em silêncio até o monólogo acabar para, finalmente, articular alguma coisa com evidente desgosto. A mulher foi embora e ainda que as pessoas continuassem passando no mesmo ritmo letárgico, a alegria de Cleide e do Joãozinho havia se esfumaçado. Alguns minutos depois, duas mulheres jovens passaram, perguntando

alguma coisa para Cleide, indo logo embora. Nos minutos que se seguiram, mais duas mulheres ficaram ―conversando‖ com ela que, àquela altura, já estava muito aborrecida.

Como se passaram alguns minutos sem ninguém mais se aproximar dela, me animei e decidi me acercar, só que, nesse momento, vi que as duas mulheres jovens voltavam, o que me fez permanecer em meu lugar para ver o que aconteceria a seguir. Traziam na mão uma sacola de plástico de uma loja de departamento bastante conhecida no Brasil, entregando-a à mãe. Feito isso, as mulheres foram embora. Eu permaneci no meu cantinho esperando dar um tempo para Cleide se animar e não indispô-la com a minha presença. Nesse meio tempo, a curiosidade venceu a mãe, que sentou Joãozinho no colo e pegou a sacola que havia colocado em um canto para ver o que havia dentro dela: um pequeno par de meias brancas foi subtraído surgiu e achei curioso a maneira delicada que ela ficou contemplando e acariciando esses dois minúsculos pedacinhos de tecido, enquanto João reclamava pela falta de atenção. Logo, uma calça de cor azul bebê e uma diminuta camisa de cor branca apareceram, completando um conjunto de roupas para o menino que desfrutava o sol e a companhia de sua mãe na rua, ―exibindo‖ sua nudez.

Cleide, após hesitar um pouco, vestiu a calça no João que não pareceu muito feliz ao sentir o contato com as roupas novas. Depois, ela lhe pôs as meias, situação que acabou com a sua alegria, uma vez que começou a chorar e que, com a pouca habilidade de suas mãos, tentava tirar desesperadamente as meias que agora lhe cobriam os pés. Cleide insistia para que ele separasse suas mãozinhas e deixasse as meias em seu lugar, mas ele não se conformava e a mãe teve que desistir. Quando as meias foram tiradas, Joãozinho pegou uma delas com as mãos e decidiu que era mais interessante levá-la à boca, mordê-la e saboreá-la.

Com a ordem e o ânimo aparentemente restabelecidos, eu decidi entrar em cena, curiosa, com vontade de saber mais sobre o que havia presenciado. Ao me aproximar, elogiei o João que ainda continuava a morder as meias novas que, minutos antes, havia ganhado daquelas moças. Mal demorei em fazer o comentário quando a Cleide decidiu desabafar comigo:

―− Eu estava aqui com o João, sabe? A gente estava aqui brincando quando apareceu uma senhora reclamando porque o Joãozinho estava

nu! Ela me disse que não podia deixar meu filho como se fosse um selvagem, tudo pelado no meio da rua, e ainda ficou brava e foi embora resmungando quando eu lhe disse que ele estava pelado por que o dia estava quente, ele tem calor, e por isso, eu não havia botado, nem vou botar roupas nele!

− Nossa! Então foi por isso que você botou a calça no João?

− Não, não foi por causa dessa dona, não, faltava mais. O que aconteceu é que depois passaram

duas mulheres que ficaram olhando e

cumprimentando para o João, e logo depois voltaram com uma sacola com roupas [nesse momento, ela aponta para a sacola que se encontra em um canto]. Aí eu quis experimentar as roupas nele, mas ele não gostou das meias. A blusinha nem vou botar porque o dia tá muito quente, e ele vai chorar, você não acha?

− Está muito quente mesmo, acho que não vale a pena colocar mais roupa nele. Mas por que você acha que essas moças trouxeram a roupa para ele? − Sei lá. Talvez elas acharam que o João não tinha roupinhas e que, por isso, estava pelado. Mas não é por isso, não [se esforça em esclarecer para mim], eu sempre trago as roupinhas dele [enquanto mostra sua mochila com as coisas do bebê dentro]. Acho que as pessoas se incomodam é de ver ele pelado. Mas o dia está quente, e ele fica feliz bem peladinho, por que as pessoas têm que se incomodar? A quem é que a gente faz mal? − Bom, eu não saberia te dizer por quê. Quem sabe as moças somente achavam que dando essa roupinha poderiam te ajudar.

− Tudo bem, claro que é bom para a gente receber coisas que as pessoas nos querem dar, por que nós nem sempre temos para comprar, né? Mas por que tanta reclamação? Nos não estamos fazendo nada

ruim, né? As pessoas vêm aqui a reclamar como se eu estivesse fazendo algo de errado, como se não soubesse cuidar do meu peãozinho. A mulher que veio mais cedo, falou para eu ir trabalhar e deixar de ficar pedindo na rua! Mas eu não estou pedindo, eu trago meus bichinhos, meus colares, minhas coisas, eu não estou pedindo para ninguém me dar nada. Quem quiser e puder me dar alguma coisa eu aceito, mas é por sua vontade, não por que eu estou pedindo. E ainda ficam xingando a gente!

− Elas xingaram você?

− Sim, a Dona ficou falando que eu era selvagem por ter meu rapazinho nu, não te falei?... Tem sempre alguém para te xingar... Eu mesma já fui chamada de índia suja, nojenta, maltrapilha e monte de coisa mais.

− Que raiva! E tu falou alguma coisa para eles? − Eu fico revoltada mesmo, mas vou falar o quê, se eu ficar brigando com esse pessoal todo seguro arranjo alguma encrenca, aqui o pessoal fica tudo cheio de razão, fazendo escândalo e quem que vai me defender? Ninguém ia ficar do meu lado. É melhor ficar calada. Eu fico revoltada mesmo, sabe? A gente vem aqui fazer uns trocadinhos e é tratada como lixo, nós não fazemos mal a ninguém e é direito nosso estar aqui também. Através dessa cena e da conversa com a Cleide, vi elencados vários elementos que surgiram na interação com vendedores ambulantes e outras pessoas que continuamente procuravam expressar sua solidariedade com as Guarani no centro, e que eram leituras provenientes de ―fora‖, construídas mediante um olhar externo, no qual, de alguma maneira, eu ainda estava inserida. Elementos como a situação de mendicância e vulnerabilidade, falta de bom senso e cuidado com os filhos, etc., começaram a ganhar novas formas quando comentados ou explicados para mim nas próprias palavras de Maria, Teresa, Cleide ou

Ivonette, e também de muitas outras mulheres, em diferentes momentos e espaços.

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