• Nenhum resultado encontrado

Mulheres invisíveis, mulheres vulneráveis e mulheres exóticas: primeiros olhares sobre a presença de mulheres Guarani no centro

MULHERES GUARANI E A VENDA DO ARTESANATO NO CENTRO DE FLORIANÓPOLIS: PERCEPÇÕES E IMAGENS

4.3 Mulheres invisíveis, mulheres vulneráveis e mulheres exóticas: primeiros olhares sobre a presença de mulheres Guarani no centro

de Florianópolis

O meu trabalho de campo no centro da cidade foi possível porque consegui ficar perto de algumas mulheres Guarani, mediante o seu consentimento. Nesse lugar de observação e permanência, chamou muito a minha atenção o fato de que, apesar de haver um fluxo contínuo de pessoas circulando nos pontos onde essas mulheres se localizavam, eram poucos aqueles que, efetivamente, se aproximavam delas. Minha impressão era a de que, apesar de sua presença, essas mulheres aparentemente não estavam ali, não eram observadas pelas pessoas que caminhavam praticamente sobre os tecidos nos quais seus artesanatos eram exibidos, ou então, de que eram simplesmente percebidas como parte da “paisagem” que compõe o centro de Florianópolis, sem causar impressão alguma, além de indiferença. Na pressa do dia, na falta de articulação e interação entre as pessoas que circulam no local, as

57

Uma das maiores dificuldades que tive com as mulheres dedicadas ao artesanato durante o meu período de permanência em campo foi o fato de elas não quererem compartilhar comigo dados como sobrenome, local de residência ou informação de contato. Geralmente, quando tinham número de telefone, me negavam passá-lo, ou então, generalizavam a localidade onde moravam, pois minha pergunta era sempre respondida com a palavra ―Palhoça‖, sem nenhuma especificidade. Resistência compreensível e lógica com a estratégia de cuidado e prevenção que essas mulheres adotam enquanto transitam na cidade.

58

Consegui manter algumas conversas aleatórias com outras mulheres com as quais me encontrei por diversas razões, e apesar de que esses encontros não tiveram continuidade, também foram importantes para pensar algumas questões colocadas neste capítulo. O trabalho do campo no centro da cidade foi realizado de janeiro a abril de 2012, de maneira mais sistemática, contando com outras visitas, mais esporádicas, até o final desse mesmo ano.

mulheres Guarani tornam-se invisíveis, um obstáculo no caminho, uma presença a ser evitada e contornada.

Essa aparente indiferença ou invisibilidade não só se tornou evidente através de minhas observações, mas também foi o centro de vários de seus comentários. Com respeito a essa aparente invisibilidade, Maria comentou: ―as pessoas passam e fingem que nem enxergam a gente (...) se eu falasse para você a quantidade de vezes que o pessoal pisou no meu artesanato e continuou a andar como se nada tivesse acontecido (...) é como se não existíssemos, como se não merecêssemos respeito, muito triste‖.

E ainda mais, como menciona Cleide:

―Às vezes. você fala para as pessoas e parece que elas são surdas, não escutam, não entendem (...) e você fica aí, falando para o ar, porque as pessoas não dão a mínima para o que você tenha a dizer (...) isso, às vezes, me deixa muito chateada, mas eu também sei que o pessoal costuma ser assim (....) também tem pessoas boas por aí, né? Então,

para que dar atenção a esse pessoal

desrespeitoso?‖ Ivonette também relata:

―Você tá aí tranquila, aí vem qualquer um, pisa nas tuas coisas, e ainda você ganha um xingamento. Foi assim comigo o outro dia, eu estava aí de boa, tranquila, e passou um moço de muito terno e gravata e passou pisando em vários dos pezinhos (de plantas) que eu tinha trazido. O moço quase caiu no chão; estragou meus pés e ainda levantou-se para me xingar: ―índia filha da p...., vagabunda, vai trabalhar em vez de ficar aí estorvando o passo‖, e por aí foi (...) houve ainda quem ficasse concordando com ele, fiquei muito constrangida.‖

Como os depoimentos deixam transparecer, a aparente invisibilidade delas no contexto da cidade se materializa nos contínuos

atropelamentos que elas sofrem: o fato de as pessoas pisarem constantemente em seus panos e artesanatos, e ainda mais, de serem alvo de constrangimentos quando sua presença é notada através desse tipo de situações, são parte do cotidiano dessas mulheres que precisam lidar com pessoas que simplesmente desconhecem sua presença, sua humanidade e seu direito à cidade de poder usufruir igualmente do espaço público.

Nas primeiras observações ficou evidente também que a maioria das pessoas que se aproximava delas eram outras mulheres, que cruzavam algumas palavras, doavam algumas moedas, traziam pacotes com comida ou roupas, sendo que poucas, efetivamente, compravam alguns dos colares, bichinhos, pequenas cestas coloridas ou plantas que elas traziam em bolsas e mochilas, e que dispunham com cuidado e carinho sobre o pano que também carregavam consigo. Em poucas ocasiões, algum homem se aproximava, e outras vezes, uma e outra criança que passava se sentia curiosa pelos ―bichinhos‖ e cestinhas coloridas, pedindo aos pais para chegar mais perto e observar melhor.

De maneira contrastante, e olhando de longe, percebia que, por vezes, os diálogos com as pessoas que se aproximavam se estendiam mais do que o usual, e eu ficava imaginando o que essas bocas estariam dizendo e o que significavam os gestos e o gesticular das mãos, enquanto Teresa e as outras mulheres escutavam atenta e impassivelmente. Em seguida, via-se que o monólogo acabava, enquanto elas decidiam se deviam responder ou não, o que, invariavelmente, terminava com o pedestre a seguir o seu caminho. Essa ambiguidade traz consigo um olhar de vulnerabilidade sobre essas mulheres, seja pela carência ou necessidade de ajuda que se intui externamente, seja pela forma intrusiva e, incluso, violenta, que as pessoas se aproximam delas, expondo-as a situações constrangedoras e perigosas.

Não faltou oportunidade também para observar algum fotógrafo de carteirinha e/ou turista desavisado que parava um pouco para observar, perguntar e fotografar o artesanato espalhado nos paninhos. Independentemente da aquisição ou não do artesanato, chamou a minha atenção a frequência com que as pessoas se posicionavam para tirar fotografias e filmar sem pedir a devida permissão, causando um notável desconforto nessas mulheres que acabavam sendo parte dos atrativos turísticos da cidade. Ivonette sintetizou com acerto a situação: ―É como se estivessem vendo um bicho do mato. Tem que fotografar é levar de lembrança, né? Se a gente quer, quem se importa!?‖

No período de campo e escrita desta tese, a imagem mais significativa dessa invasão, através da produção e veiculação de imagens dessas mulheres, foi ao ar no DIA TAL quando, em um jornal televisivo do meio dia, apareceu um jornalista questionando a presença indígena das mulheres no centro, enfatizando que, às suas crianças, havia lhe sido negado o direito à escola. E com tom e gesto de sofrimento, ele pergunta: ―esta criança não deveria estar na escola?‖ Enquanto isso, a criança olha curiosa para a câmara, enquanto que a mulher, em seu constrangimento, se encolhe em seu próprio corpo, se escondendo do olhar indiscreto e invasivo do jornalista. A falta de respeito e de cuidado para com essas mulheres e seus filhos através da lente dos brancos ficou muito bem caracterizada na forma como essa matéria foi veiculada para a cidade inteira, espalhando não só desconhecimento sobre a presença dessas mulheres e crianças na cidade, mas preconceito e desconsideração.

Outline

Documentos relacionados