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MULHERES GUARANI E A VENDA DO ARTESANATO NO CENTRO DE FLORIANÓPOLIS: PERCEPÇÕES E IMAGENS

4.4 Vendendo ou mendigando?

Por me manter paralelamente em contínuo contato com alguns grupos de vendedores ambulantes que circulam no centro da cidade, e pela minha condição de ficar perto e longe ao mesmo tempo de Teresa, sua filha, irmã e amiga, percebi também que, embora existisse entre os ambulantes (nacionais e estrangeiros) uma série de relações de apoio e solidariedade, as mulheres indígenas não se encontravam associadas a esses pequenos grupos, pelo menos, não diretamente. Já as redes de apoio e solidariedade eram bastante evidentes entre as Guarani (incluindo aquelas que não se sentiram à vontade para participar da pesquisa), pois nela circulavam informações, alimentos e objetos, sendo que as crianças eram unidas também por laços de parentesco ou de afinidade. Sobre isso, falaremos mais adiante.

Ainda quanto às relações de solidariedade entre os vendedores ambulantes, percebi, através das conversas com eles, que as ―índias‖59 não eram vistas por eles como parte da ―categoria‖, por assim dizer. Isso porque, desde a sua perspectiva, o trabalho e as condições nas quais elas

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Forma genérica como essas mulheres são reconhecidas pelos frequentadores do centro da cidade e pessoas do comum, em que o grupo étnico, o nome ou a individualidade delas não são levados em consideração, fazendo referência a um coletivo disforme de pessoas que, aparentemente, são todas iguais.

permaneciam no centro eram, no mínimo, diferentes das que eles enfrentavam cotidianamente. Em primeiro lugar, entrou em discussão a natureza do ―trabalho‖ que tanto os vendedores ambulantes quanto os indígenas desenvolvem no centro da cidade: Para algumas pessoas associadas à venda ambulante de produtos, funcionários de lojas, cafés e outros estabelecimentos com quem tive a possibilidade de conversar, as indígenas que circulam no centro da cidade não estariam trabalhando. Segundo avaliavam, essas mulheres se encontravam em uma situação de ―necessidade‖, já que, ao seu parecer, recebiam dinheiro ou outras doações por parte de terceiros sem, necessariamente, oferecer um produto ou um serviço de volta.

Essa percepção era reforçada pelo fato de que o artesanato oferecido pelas Guarani era desvalorizado comercialmente, pois essas pessoas achavam que as peças por elas vendidas não eram itens ―necessários‖ ou ―desejáveis‖ pelo comum das pessoas, e que, provavelmente, eram adquiridos por curiosos, turistas ou simpatizantes que queriam contribuir com elas, mas que isso não era o centro de uma atividade ―laboral‖, e sim, uma forma alternativa de ganhar algum dinheiro, que os bichinhos, cestos e demais elementos exibidos não tinham o caráter de mercadoria.

A intuição dos vendedores parecia se reafirmar na diferença da relação que eles e as ―índias‖ estabeleciam com a polícia: eles continuamente se encontravam sob sua mira, pois os artigos que vendiam podiam ser apreendidos, fosse pela utilização do espaço público ou pela ausência de documentos ou comprovantes que dessem conta da origem das mercadorias por eles oferecidas. Quando me aproximei deles, observei como, entre as redes de vendedores ambulantes, as pessoas se articulavam e se apoiavam para ajudar os mais vulneráveis à ação policial60. E como, nesse bate e volta, e no compartilhamento do mesmo espaço para ―trabalhar‖, as relações se intensificavam, de modo que temas como família, saúde e amizade eram trazidos à tona nas conversas cotidianas, criando certa cumplicidade, uma sensação de proximidade com aqueles que compartilhavam os mesmos dilemas, medos e situações que o outro.

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Solidariedade que é criteriosamente oferecida e que cresce com a simpatia, o conhecimento da história de vida e as necessidades da pessoa em questão. Entra em cena também o julgamento sobre a honestidade da pessoa e seu trabalho.

Já as mulheres Guarani, pelo menos no que eu consegui observar enquanto permaneci no centro da cidade, permaneciam impassíveis ante a ação policial: enquanto alguns dos vendedores corriam com as suas mercadorias de um lugar para o outro e a confusão tomava conta de algumas ruas, Teresa e as outras mulheres se mantinham em seu lugar tranquilamente. A polícia não pedia satisfação acerca de suas atividades, nem questionava sua presença (pelo menos oficial e legalmente falando) ou se interessava em saber da ―origem‖ de seu artesanato, etc. Esse desinteresse, observado pelos vendedores ambulantes, lhes permitia reivindicar uma diferença no ―ofício‖ em relação às ―índias‖, sendo que alguns ainda avaliavam a posição delas como mais afortunada que a deles, pois não se viam expostas às situações constrangedoras que experimentavam.

Ressalto também que durante o tempo que permaneci em campo não percebi nenhuma ação oficial contra essas mulheres que reclamasse sobre sua presença ou a de seus filhos nas ruas. Embora tenha lido sobre alguns desencontros entre elas e diferentes órgãos públicos até, aproximadamente, o ano de 2003, e de desconhecer os meios pelos quais esses possíveis conflitos tenham se resolvido, aparentemente o direito à presença no centro da cidade por parte dos indígenas em Florianópolis é um tema que foi solucionado, ou que simplesmente saiu da agenda, com o passar dos anos.

Por outro lado, os vendedores ambulantes com os quais conversava seguidamente diziam que as ―índias‖ ficavam ―na sua‖ e que, por isso, não havia interação, aproximação ou cumplicidade com elas: considerando que suas formas de estar no mesmo espaço eram diferente, assim como suas preocupações e vivências cotidianas, as possibilidades para criar relações mais duradouras eram poucas, limitando-se às trocas eventuais de um pequeno favor ou uma pequena conversa. Esse desconhecimento mútuo se evidenciava pelo fato de que a maioria dessas pessoas (além dos comerciantes e das pessoas envolvidas em redes solidárias com essas mulheres) referia-se a elas como ―índias‖ de um modo genérico: a pertença ao grupo étnico, seus nomes e lugares de origem eram, em geral, desconhecidos, e no melhor dos casos, simplesmente intuídos: Paulo Lopes, Morro dos Cavalos, Biguaçú, entre outras localidades, eram citadas, por exemplo, como lugares de origem das ―índias‖, embora nenhuma delas pudesse ser associada diretamente a eles.

Outra questão colocada pelos ambulantes foi a de que as Guarani não sabiam se comunicar em português, impossibilitando o diálogo com elas. Isso me chamou a atenção, pois, apesar de sua pouca relação com a língua portuguesa, é possível manter com a maioria delas conversações, pelo menos, elementares.

4.5 O paradoxo da solidariedade para com as mulheres Guarani no

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