• Nenhum resultado encontrado

Olhares e divergências: algumas notas sobre a presença de mulheres Guarani no centro de Florianópolis.

MULHERES GUARANI E A VENDA DO ARTESANATO NO CENTRO DE FLORIANÓPOLIS: PERCEPÇÕES E IMAGENS

4.2 Olhares e divergências: algumas notas sobre a presença de mulheres Guarani no centro de Florianópolis.

Camuflada em meio a uma torrente de pessoas, gestos e pressas, comecei a navegar pelo centro da cidade. Primeiro, pus-me a percorrer os quarteirões, a caminhar e a enxergar algumas mulheres indígenas que vendiam artesanato nas ruas, suas crianças, suas atitudes. Usando, como ponto de entrada, o artesanato que vendiam, durante nossas conversas iniciais apresentava-me como estudante de doutorado do curso

antropologia, sendo que, pouco a pouco, falava de meu ―currículo‖ e de minha tentativa de realizar uma pesquisa com indígenas na cidade.

Como compradora potencial, a relação se estabelecia imediatamente — considerando, claro, as restrições próprias que essa relação estabelece —, mas a introdução da palavra pesquisa, e o convite para participar dela, eram menos atraentes. As recusas constantes só não se tornaram funestas para a pesquisa porque, nas primeiras ―excursões‖ ao centro da cidade, havia percebido que, efetivamente, existia um fluxo constante de mulheres que nele circulavam nele, e por isso, a possibilidade de entrar em contato com outra pessoa era permanente. Através dessa primeira observação notei que algumas mulheres Guarani vendiam artesanato como uma prática cotidiana, sendo que algumas estabeleciam um ponto fixo para venda e outras alternavam os locais com certa regularidade. Havia também aquelas que ficavam um período específico, mas que tardavam a voltar, situação que ocorreu durante a minha pesquisa de campo. Essa dinâmica está diretamente ligada à trajetória dessas mulheres e suas particularidades, isto é, o local de moradia, as motivações para a venda de artesanato, etc.

Para prosseguir com a pesquisa, precisei persistir e continuar a percorrer as ruas do centro e abordar as mulheres com as quais, até o momento, não havia ainda tentado estabelecer algum contato. Quando as possibilidades eram restritas, ou então, quando pensava em estratégias para me aproximar das possíveis interlocutoras, eu passava mais tempo em diversos recantos do centro, sempre observando, à procura de uma oportunidade.

Enquanto isso acontecia, fui conhecendo a dinâmica cotidiana do local: vendedores ambulantes que encontram nas ruas o meio de obter seu sustento diário; grupos de imigrantes também dedicados ao comércio; pessoas sempre apressadas, que eliminavam de seu campo visual as mulheres que eu tanto desejava me aproximar; fui convidada a receber souvenirs de um ou de outro santo para contribuir de forma ―voluntária‖ com uma festa católica; respondi pesquisas sobre os mais variados temas, e precisei aprender manobras tácticas para me evadir das ciganas que, naqueles dias, estavam ao lado de uma igreja, insistindo para ler meu futuro e mudar minha sorte.

Nessa espera conheci também um grupo de vendedores ambulantes do Equador, com o qual comecei a ter certa afinidade, desenvolvida — acredito — pela proximidade que nos confere o fato de sermos estrangeiros e compartilhar a mesma língua ―madre‖. Foi justamente ao seu lado que minha presença começou a se ―materializar‖

nesse circuito de pessoas e coisas que circulam no centro: ganhei um nome, e assim as pessoas começaram a entender o motivo de eu estar lá, assunto que era uma incógnita, e até causa de desconforto para algumas pessoas que já tinham reparado em mim, mas que não conseguiam entender qual era o meu papel dentro desse espaço.

Ao conversar com os vendedores ambulantes, percebi que não se mostraram muito otimistas em relação ao desenvolvimento de minha pesquisa, pois diziam que as Guarani ficavam ―na sua‖ e não faziam ―muita amizade‖. De todo modo, os dias em campo começaram a ficar mais agradáveis, na medida em que eu começava a interagir com algumas pessoas, jogar papo fora, rir junto e observar dinâmicas do local que, até então, desconhecia. E assim, por causa da minha insistente presença nesse espaço chegou o dia em que Teresa, uma das mulheres com quem havia falado em algumas oportunidades, fez um sinal para que eu me aproximasse, querendo saber mais sobre o que eu fazia e o que ―poderia querer com ela‖. Ela ficou curiosa ao ver que eu conversava com os equatorianos, perguntando de onde eu era, e eles também, e se estávamos juntos, etc. Novamente, expliquei tudo a ela, contei o que fazia, sobre minhas expectativas, e assim ela me disse que eu podia ficar por perto e que iríamos conversando. Enquanto isso, as três crianças que a acompanhavam escutavam em silêncio nossa conversa e acordo.

Pouco a pouco a relação foi se ―modificando‖. Em algum momento do dia, ela aceitava tomar um café comigo na rua, ou interagir, ainda que timidamente com as suas crianças que, ao início, ficavam curiosas com a minha presença, logo se acostumando a ela. Conversávamos um pouco sobre o dia, as coisas que aconteciam ao nosso redor e poucos minutos depois ela dava por terminada a conversa, e eu voltava aos meus locais de sempre, para observar. Já em outros dias, a comunicação não fluía muito e ela acabava não entendendo minhas perguntas formuladas em um imaculado portunhol, o que me fazia recuar ―voluntariamente‖ a um dos espaços que eu considerava como ―pontos de observação‖, e que mais tarde me fariam refletir sobre o papel da linguagem e do silêncio na relação estabelecida com os brancos por essas mulheres.

Algumas vezes, Teresa se estabelecia em outra rua ou lugar, e eu só a encontrava porque, ao não me deparar com ninguém para conversar, ficava caminhando de um quarteirão a outro, esperando

alguma oportunidade surgir; outras vezes, ela dizia que não apareceria no dia seguinte, e mesmo assim, ao me deslocar ao centro, eu a encontrava em alguma esquina, ou então, dizia que estaria em tal lugar no dia seguinte, sendo que lá não estaria e que tampouco a encontraria.

Nesse momento, eu comecei a ficar com receio de que Teresa havia se arrependido de me aceitar como observadora externa de sua vida cotidiana, de modo que comecei a dar mais espaço para ela, aparecer de vez em quando, ou ficar menos tempo perto, tentando não incomodar, para não perder a única chance que tive até o momento de me aproximar de alguma das indígenas no centro da cidade. Com o tempo, entenderia que, na verdade, a circulação em diversos pontos do centro, a permanência neles e a ―agenda de trabalho‖ não seguiam patrões definidos, pois obedeciam também a questões ligadas à aldeia, como a capacidade de produção de artesanato, atividades e tarefas a serem realizadas no espaço da comunidade e da casa, e a fatores externos, como o clima, por exemplo.

As crianças tinham alguns momentos de curiosidade e se aproximavam para me olhar, para perguntar coisas, saber se eu tinha alguma bolacha ou doce para compartilhar, e logo saiam correndo com seu olhar curioso ainda sobre mim, sumindo nas ruas do centro. Um tempo depois reapareciam ao lado de sua mãe com quem continuavam em permanente observação ou conversando pouquinho e baixinho, enquanto chegava a hora de voltar para casa.

Com o passar das semanas perguntei a Teresa se ela achava que eu teria a chance de conversar com outras das mulheres Guarani pelo centro, mas não recebi resposta. Nos dias seguintes, ela comentou que sua irmã Maria também estava em uma rua paralela, e que se eu quisesse, poderia falar com ela. A dinâmica da relação e interação com a Maria seguia basicamente os mesmos padrões que a relação com sua irmã: os espaços para a conversa eram limitados, surgiram alguns problemas de comunicação pela pouca fluência do idioma português tanto da entrevistadora quanto da entrevistada, e havia uma evidente resistência a me confidenciar qualquer informação, dados e experiências pessoais.

Assim, ao dividir o meu tempo entre esses dois espaços de observação, soube de, pelo menos, um dos lugares que as crianças de Teresa frequentavam quando saíam de seu lado: levavam algum recado, alimento ou alguma outra coisa que a mãe delas enviava para sua tia, ou simplesmente ficavam ali, conversando um pouco, olhando outras pessoas e situações acontecerem, e assim, passavam o dia, um pouco

aqui, um pouco acolá. Logo percebi que essa dinâmica se repetia quando as crianças iam ―visitar‖ sua irmã — nas ocasiões em que vinha para a cidade para vender artesanato —, ou então, outras mulheres próximas de Teresa, as quais, como eu saberia depois, chegavam de manhã à cidade, junto dela.

Um bom tempo foi preciso passar até que eu entendesse que, na verdade, a relação aparentemente ―desconfortável‖ que Teresa e Maria me propunham era a única maneira que elas achavam possível de se relacionar comigo. Isso porque, enquanto eu estava com elas, ninguém se aproximava para olhar seu artesanato, cruzar palavras ou para doar alguma coisa. Minha presença, na verdade, atrapalhava o seu trabalho, alterando o fluxo, e por isso, o único espaço, a única forma possível para nos relacionar era esta, estando próxima, mas distante. Assim, pelo menos, eu poderia olhar as coisas que aconteciam e entrecruzar algumas impressões a cada dia. Teresa, alguns meses depois, foi enfática ao me lembrar que, olhando de fora, e sem a necessidade de falar tanto, eu também poderia aprender as coisas que queria aprender, que o meu olhar distante me deixaria ver claramente como era a vida delas.

Corporalmente, aceitar ficar quieta em um mesmo lugar por várias horas tornava-se um desafio para mim, e passei a admirar a capacidade dessas mulheres para permanecer nesse estado por horas e horas. Eu desejava que, de fato, as coisas acontecessem muito mais rápido do que estavam acontecendo para sentir que avançava em meu objetivo, pois a ideia de que o tempo com elas — e também com os demais indígenas que a justificativa desta tese me permitiu conhecer — era sempre pouco produtivo, era algo permanente em mim. Eu autoargumentava essa insuficiência pela ausência de oralidade, ou pela falta de entrevistas gravadas, ou pelo triste número de documentos obtidos e fotografias tiradas, etc. Muito tempo passou também para eu pudesse perceber e contextualizar a importância desses silêncios, dessas ausências, e entender a desnecessidade de empilhar papéis para, de alguma maneira, materializar o meu trabalho de campo, para valorar a riqueza do olhar e da minha presença, ativa pela passividade, para conectar coisas aparentemente desconexas, mas que faziam o maior sentido.

Posteriormente, consegui me aproximar de outras duas mulheres Guarani, aproximação mediada por Teresa que, um dia qualquer, pediu para que as crianças me levassem até a sua filha, a quem levavam uma

sacola. Assim, conheci Ivonette, de 19 anos, e um par de dias depois, fui apresentada a Cleide, sua amiga, outra jovem de 18 anos. Ao conhecê- las, soube que Francisco, de 4 anos, e a criança menor que geralmente estava com Teresa, eram filhos de Ivonette, que novamente estava grávida. Já Cleide carregava no colo um bebê de seis meses chamado João. Essas quatro mulheres, todas Guarani da genérica ―Palhoça‖57

, foram minhas principais interlocutoras no centro da cidade58.

4.3 Mulheres invisíveis, mulheres vulneráveis e mulheres exóticas:

Outline

Documentos relacionados