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KAINGANG NO LESTE E SUL DA ILHA: CIRCULAÇÃO E PERMANÊNCIA ATRAVÉS DO

5.3 A venda de artesanato através do tempo: evocando memórias da cidade e da aldeia

No alto dos seus 45 anos, Indianara conhece Florianópolis há cerca de vinte anos, quando começou a vir com algumas de suas amigas e familiares para vender artesanato, especialmente no período de verão até a semana da Páscoa, por ser o período com maior afluência de turistas. A primeira vez que veio à cidade, havia chegado com sua irmã e duas mulheres que já haviam tido essa experiência. Ela veio, gostou da experiência e continuou voltando ao longo desses anos, em períodos intermitentes e em diferentes épocas de estadia. Mas além de

Florianópolis, ela e seu artesanato têm viajado por várias outras localidades do sul do Brasil, indo atrás de alguns ―trocados‖.

Durante seus percursos na Ilha, relatou ter vendido em diferentes setores da cidade. Dez anos atrás, explicou-me que não era necessário se deslocar muito para vender o artesanato, pois no centro ainda era possível encontrar pessoas interessadas em adquirir suas peças. O que, segundo ela, havia mudado com o tempo, já que agora ficar lá não resultava em uma atividade muito produtiva:

―Nessa época era só desembarcar no centro e pronto. Tudo o que você trazia, vendia bem rápido. Às vezes, eu voltava à aldeia para trazer mais cestos e balaios, e de novo vendia tudo. Era bem bom, eu fazia um bom dinheiro que dava para comprar bastante coisa (...) aqui também as coisas não eram tão caras, então, a gente conseguia se virar com mais pouco dinheiro e ainda sobrava para levar para casa. Na volta eu levava comida, roupas (...) a primeira televisão que meus filhos tiveram em casa, fui eu que comprei com o dinheiro que eu ganhei em um verão aqui em Floripa. Era muito bom mesmo (...) lembro que as minhas irmãs mais novas e meus filhos que ficavam lá (na aldeia) esperavam muito minha volta para ver o que eu ia levar.

Também era bem gostoso nos reunir juntos pra ir ao mato e pegar as taquaras, minha mãe ficava contando as histórias dos mais velhos e dos espíritos do mato, e depois ficávamos tecendo os balaios, passávamos horas proseando, bebendo um chimarrão bem caprichado, e as crianças brincavam e aprendiam a fazer as tinturas e a tecer, e quando os balaios iam ficando prontos, íamos juntando tudo na casa da mãe.

Agora é bem mais complicado, tudo ficou muito caro, o pessoal perdeu interesse no nosso artesanato, agora você mal consegue para se manter aqui. Quando a coisa fica muito boa, você consegue guardar uns trocos, mas nada demais.‖

Nesses anos, ela também teria circulado, especialmente no verão, na praia dos Ingleses e Canasvieiras, assim como também no leste e sul da Ilha

:

―Quando no centro a coisa não tava dando muito certo, comecei a ir para a Lagoa, que ainda é bom, mas não como antes. Lá nos 90 era bem bom, havia muito hippie e eles curtiam mesmo as coisas que eu levava, vendia bem e o pessoal era legal com a gente, falava, colaborava, era muito legal. Agora sei lá o que aconteceu que o pessoal, mudou muito, acho que a Lagoa ficou difícil também e o pessoal foi indo embora. Minha irmã mais velha sempre vem aqui na Lagoa pelas lembranças que tem dessa época, ela ainda vai nas casas de umas senhorinhas lá atrás da pracinha, que doam coisas para ela, e que ela conhece desde esses tempos. Agora, eu estou indo mais para o sul, para o Campeche e para o Morro das Pedras, lá também tem um pessoal que gosta dos balaios, dos colares, então, agora é melhor ir para lá.‖ Chamou-me a atenção que a forma como a cidade se organiza acaba influenciando nos trajetos que essas mulheres percorrem. Durante os meus encontros com Indianara haviam sido feitas algumas mudanças no transporte público da cidade, de modo que não era mais necessário pagar duas passagens para vir do continente à Lagoa da Conceição. Então, com essa mudança, ela teria decidido voltar ao leste da Ilha, depois de alguns anos sem vir ao local para vender o seu artesanato:

―É que havia deixado de valer a pena vir aqui à Lagoa com o artesanato porque o pessoal não estava comprando muito, não, então, eu não ia arriscar a pagar quatro passagens [o que, considerando ida e volta, equivaleria a 12 reais, no momento de nosso encontro] sem saber se eu conseguiria recuperar o dinheiro e ganhar alguma coisa de volta. Agora fiquei feliz de voltar porque eu sentia saudade da Lagoa, mas não está fácil, você está vendo [diz, enquanto apontava o artesanato exposto a tarde inteira, e que ninguém havia parado para observar].‖

No caso de Mariana, cuja história aprofundarei mais adiante, ela relata que, na época de sua chegada à cidade, há treze anos aproximadamente, ela mantinha dois pontos de venda de artesanato no centro da cidade, que davam ―até para guardar dinheiro na poupança‖. Esse dinheiro teria viabilizado a vinda de seu irmão a Florianópolis como uma forma de ajudá-lo a iniciar o seu sustento na cidade. Ela lhe disse que ele precisaria trabalhar para se sustentar, vendendo produtos na praia: ―Então, eu levei ele no centro e comprei tudo para ele: isopores, Coca-Cola de latinha e cerveja. Aí eu disse: eu não vou cobrar nada para você, mais você vai vendendo e vai comprando de novo, aí tu vais ter que te virar‖.

E assim, o irmão da Mariana começou o seu negócio de venda de bebidas no leste da Ilha, mais especificamente, nas praias da Joaquina, Mole e Barra da Lagoa. João trabalhou algum tempo nessa região, e com o passar do tempo, começou a desenvolver outras estratégias de subsistência na cidade:

―Foi legal quando ele veio para cá, eu sentia que estava em casa de novo com ele aqui. Estava eu, meu marido, minhas filhas, como quando morávamos na aldeia (...) minha mãe chegava trazendo sementes e íamos catar taquara para tecer. Sentia-me como criança de novo, como quando a mãe me ensinava a fazer os balaios, e ela me falava que gostava de voltar a Florianópolis, se lembrar quando ela mesma morava aqui e de ver que as minhas filhas estavam aprendendo a fazer o artesanato e que um dia iam conseguir ensinar para os filhos delas também.‖

Azelene, a mãe da Mariana, complementou:

―Eu fico feliz da Mariana estar aqui, e de poder voltar sempre a Florianópolis. Quando eu era mais nova vinha todo ano aqui. Nessa época ficávamos mais no centro porque era bem difícil até pegar ônibus para ir a outro lugar. Agora é mais fácil, é só pegar o ônibus que você vai aqui e lá, pena que é tão caro, mais facilita mesmo (...). As meninas

agora vão pro sul da Ilha, pro norte, antes eu não conhecia muito lá. Me lembro um ano que fui para Ingleses, e uns cinco anos atrás quando voltei, fiquei pasma de ver como o bairro mudou, tem casas aos montes, está cheio de gente (...) antes era mais sossegado, mais tranquilo, mais bonito.‖ Ana e Luz também se lembram, respectivamente:

―Me lembro até hoje da empolgação da gente quando a mãe e as minhas tias falavam que iam vir para Florianópolis. Íamos todos juntos catar e preparar as coisas para tecer os balaios. Quando elas não me traziam eu ficava muito chateada, e quando deixavam eu ir, ficava faceira, faceira. Quando estava mais crescida, e sempre que possível, voltei e vou voltar, gosto muito daqui.‖ ―E é bonito ver que as nossas meninas também ficam bem faceiras fazendo colares e pulseiras para vender aqui com a gente. Elas também gostam.‖

Vê-se, então, que a venda sazonal de artesanato em Florianópolis exerce um papel importante na vida dessas mulheres. É uma forma de conhecer o mundo além da aldeia e de experimentar novas possibilidades, além de uma oportunidade de evocar memórias da família e renovar e atualizar conhecimentos próprios de sua cultura através da produção do artesanato: coletar os materiais no mato enquanto as mães contam histórias dos mais velhos para os filhos e os netos; preparar e produzir o artesanato, ―proseando‖ sobre o cotidiano da aldeia e das expectativas e histórias de sua permanência na cidade. Logo, a alegria de ir e a alegria de voltar para casa, a fim de poder se aventurar de novo, são sensações que a venda de artesanato, em Florianópolis e no litoral catarinense, evoca nessas mulheres. Percebe- se, assim, que pensadas inicialmente como uma forma de obter recursos, a fabricação e a venda de artesanato na cidade acionam outros fios de significados importantes no tecido da história e da vida dessas mulheres.

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