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SUMÁRIO

3. CAPÍTULO

1.5 Os índios e as cidades: produção antropológica brasileira após o censo de

Os dados do censo de 2010, de alguma maneira, marcam um ponto de referência quando falamos da relação entre índios e cidades dentro da disciplina antropológica e das ciências sociais, de maneira mais geral. É possível observar que a partir desse ano os trabalhos envolvendo populações indígenas em áreas urbanas se intensificou: cresceu o número de dissertações e teses publicadas a respeito; as referências bibliográficas começaram a se espalhar, embora timidamente, e sair de sua tradicional zona geográfica de atuação; algumas mudanças surgiram nos focos e nas preocupações das pesquisas; esforços institucionais de longa duração que pensavam e discutiam a situação dos indígenas nas cidades ganharam maior visibilidade; e finalmente, eventos acadêmicos nacionais começaram a incluir em sua programação espaços destinados para discutir tais questões.

Na XII reunião de antropólogos do Norte e do Nordeste e III Reunião equatorial de antropologia (REA/ABANNE), sediada pela UFRR, em Roraima, no ano de 2011, por exemplo, houve um grupo de trabalho com três sessões, três fóruns e um minicurso dedicados ao tema. Pesquisadores e lideranças indígenas discutiram a relação entre os indígenas e as cidades, o acesso aos direitos indígenas, as identidades e territorialidades na Amazônia e, em menor proporção, nos estados como o Ceará, Mato Grosso e Rio de Janeiro.

Em 2013, com a intenção de retomar as discussões iniciadas nessa primeira versão, alguns dos organizadores do GT propuseram, no marco da IV REA/XIII ABANNE, o GT intitulado ―Os indígenas e a cidade: processos identitários, direitos e políticas públicas no contexto urbano‖. Nele, continuou a se pensar e discutir temas como a organização social, a ocupação e a construção do espaço indígena na cidade, a participação política de indígenas nas instituições estatais, a inserção/exclusão dos indígenas nas políticas públicas e os processos de luta pelo reconhecimento e ampliação dos direitos indígenas10. Dividido em três sessões e contando com aproximadamente 14 trabalhos inscritos, as discussões do GT apresentaram sete trabalhos referentes a indígenas na área urbana da Amazônia brasileira e de outras localidades: Rio de Janeiro (1), Goiás (1), Florianópolis (1), Recife (1), Mato Grosso (1) e São Paulo (1).

Contemporaneamente, surgiu o Grupo de Etnologia Urbana (GEU) do Núcleo de Antropologia Urbana – USP que, ―com base em

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dados recentes que apontam para uma significativa presença indígena nas cidades, propõe-se considerar os desdobramentos dessa realidade com base numa estratégia teórico-metodológica que articule as contribuições tanto da Etnologia como da Antropologia Urbana‖11. Em 2011, o grupo organizou o I Seminário de Antropologia Urbana, reunindo pesquisadores interessados em trocar experiências de pesquisa na área, dando continuidade ao evento em 2012 e 2013. Esse espaço tornou-se importante para discutir não só os casos particulares e os diferentes interesses e condições das pesquisas, mas também propor caminhos teórico-metodológicos que articulassem etnologia e antropologia urbana, os quais, como menciona Magnani (2012), parecem ter sido concebidos dentro da disciplina antropológica como campos separados, sem interação.

Pelo fato de esse grupo de pesquisa ter surgido a partir do desenvolvimento de uma pesquisa no estado da Amazônia brasileira, uma parte importante dos trabalhos apresentados girava em torno de questões ligadas ou suscitadas pelas experiências desses pesquisadores nessas localidades. Chamou a minha atenção como observadora externa (e também a dos seus próprios pesquisadores) o escasso desenvolvimento de pesquisas referentes ao tema na própria cidade onde este fora albergado, sendo que o contingente de população indígena em São Paulo é cada vez maior, mais significativo, representativo e organizado politicamente (III Seminário de Etnologia Urbana, NAU- USP, 2013).

Além dos eventos mencionados, importantes por colocar no mapa a relação entre os indígenas e as cidades como relevantes para a antropologia em geral, observamos uma retomada dos investimentos sobre o tema em instituições estatais, organizações não governamentais, entre outros. Aparece, por exemplo, no ano de 2013, a publicação das atividades do projeto ―A cidade como local de afirmação de direitos indígenas‖, desenvolvido pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, com a parceria da

Oxford Committee for Famine Relief (OXFAM)12 e da União Europeia.

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Disponível em: http://nau.fflch.usp.br/geu. Acesso em: 01 junho 2014.

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Organização não governamental, estruturada através de 13 organizações e mais de 3000 parceiros, atuando em 100 países, ―na busca de soluções para o

Para a Comissão Pró-Índio de São Paulo, esse trabalho representou uma ―retomada‖ de seus esforços ―para contribuir para a efetividade dos direitos indígenas no contexto urbano‖ (2013, p. 08), pois nos anos de 2004-2005 já haviam realizado uma oficina com os indígenas na área urbana de São Paulo em parceria com a Pastoral Indígena da Arquidiocese desse mesmo estado. Essa oficina foi um espaço propiciado para discutir com as comunidades suas dificuldades específicas em termos de acesso à moradia, atendimento à saúde e outros, da qual participaram indígenas das etnias Pankararu, Pankararé, Fulni-ô, Kaingang, Terena, Potiguara e Kariri-Xocó, sendo que nela foram feitas algumas petições por parte dos indígenas desse grupo, das quais destaco a solicitação da implementação de um Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) na cidade de São Paulo.

Esse texto torna-se importante na medida em que mapeia as políticas públicas desenvolvidas para a população indígena moradora nas áreas urbanas em diferentes regiões brasileiras, entre as quais Manaus (e outros centros urbanos na Amazônia), São Paulo, Porto Alegre e Campo Grande, dando visibilidade a grupos e iniciativas importantes no acesso aos direitos indígenas em contextos urbanos, nos âmbitos da educação, saúde, e lutas pelo território, reafirmando, assim, a necessidade iminente de planejar e pensar as cidades brasileiras e suas políticas públicas quanto às populações indígenas que compõem o seu tecido social. Esse chamado, ao qual se somam também publicações advindas da academia, abre espaço para pensar a importância dessas políticas para a legitimação da presença indígena em espaços ―tradicionalmente‖ pensados como impróprios a essa população (ROSADO e FAGUNDES 2013; AGUILAR, 2013; BAPTISTA, 2011; COMIN, 2013; FAGUNDES, 2013; PARANÁ, 2013; SOUZA, 2013, entre outros).

Talvez este seja o principal diferencial que os trabalhos emergentes a partir de 2010 trazem à tona, já que, de alguma maneira, questionar ou procurar os dispositivos que afirmam a identidade, ou entender como estes operam (seja a partir de sua cosmologia, de suas estratégias de sobrevivência, de teorizações sobre o contato interétnico e sua resistência, etc.) não representa já o cerne da discussão (o que não invalida sua importância), embora se assuma, de forma contundente, a presença indígena nas cidades (uma vez que não é mais vista como uma

problema da pobreza e da injustiça, através de campanhas, programas de desenvolvimento e ações emergenciais‖ http://www.oxfam.org.uk/

interrogação, um questionamento a ser levantado), dando abertura a uma tendência que busca estimular novas formas de pensar o planejamento político e urbano focados nesse ―novo‖ panorama.

A bibliografia coletada para a realização desta tese, a partir de 2010, supera os cem títulos entre livros, artigos, teses, dissertações e apresentações de trabalhos em eventos, e continua em crescimento. De maneira geral, se observa que os três eixos que vinham permeando as publicações sobre índios e cidades, isto é: território, identidade e políticas públicas ainda continuam a ser o foco majoritário das publicações realizadas, e que ainda existe uma concentração geográfica na Amazônia brasileira e no norte do país em relação a outras áreas geográficas do Brasil.

Destaca-se no estado de Rio Grande do Sul uma série de publicações sistemáticas que tratam da presença Guarani na área metropolitana de Porto Alegre, abordando os diversos desafios que essa presença pressupõe em nível político e administrativo na cidade, e cuja bibliografia será levantada ao longo desta tese. Devido à grande quantidade de publicações realizadas, e por conta dos interesses particulares que esta possa despertar no leitor, incluímos uma lista de referências bibliográficas organizadas por tema para consulta.

Apesar das possíveis variáveis quanto a definições conceituais e posturas teóricas, observamos que os trabalhos sobre índios e cidades na antropologia brasileira, nas décadas de 1990 em diante, trazem consigo uma mudança de perspectiva que estaria ligada à necessidade de não enxergar as comunidades indígenas através de suas possíveis ―perdas‖ (OLIVEIRA, 1998), isto é, perda de cultura, de identidade e, incluso, de dignidade (pelas novas maneiras de habitar as cidades), as quais eram fortemente enfatizadas nos trabalhos mais clássicos acerca dos indígenas e das cidades na antropologia brasileira. Perspectiva esta que procura mostrar também que, na verdade, o que existe é uma série de apropriações, releituras, reterritorializações das cidades realizadas pelos indígenas como sujeitos e agentes, tendo como referencial a visão cosmológica do seu grupo étnico em particular.

Resgata-se também nesses trabalhos a visão da tradição, da cultura e dos grupos étnicos como dinâmicos, políticos, com agência e em contínua invenção, reelaboração e criação (dependendo do arsenal teórico escolhido). De maneira geral, esta tese bebe dessa perspectiva dinâmica, e herda, em maior ou menor grau, a abordagem dos temas

recorrentes nessa literatura específica, isto é, do território, da identidade e da relação da população indígena com o estado através das políticas públicas em diferentes níveis e intensidades, assim como se observará ao longo dos capítulos que a compõem.

Uma diferença central de minha pesquisa em relação a pesquisas realizadas de maneira geral sobre indígenas e cidades é que durante o desenvolvimento do trabalho de campo não foi possível mapear ―um‖ ou vários ―bairros‖ indígenas, associações ou qualquer outro grupo que aglutinasse a população indígena na cidade, como acontece na maioria desses trabalhos que descrevem a partir de ―cidades indígenas‖ (ainda que questionando esse status) ou de cidades ―indigenizadas‖, ―aldeias nas cidades‖, ―associações‖ ou ―bairros‖, dinâmicas de circulação, apropriação, etc., de identidades, objetos e territórios (ANDRELLO, 2006; LASMAR, 2006; NUNES, 2009; BATISTA, 2012; DA COSTA, 2013), entre muitos outros, pois as estratégias de permanência entre a população indígena residente em Florianópolis se estabelecem a partir da circulação contínua pela cidade, se espalhando ao longo do município e mudando constantemente de lugar de moradia e emprego, e também pelo fato de que a estratégia de se juntar para dar força à identidade étnica não é uma estratégia atraente para eles, na medida que, em seu cotidiano, perceberam que a omissão da identidade étnica é uma estratégia mais interessante para atingir seus objetivos na cidade.

Essa dinâmica, de alguma maneira, foi surpreendente, pois, apesar de imaginar que haveria uma grande circulação de pessoas no contexto de Florianópolis, eu esperava encontrar, assim como Leite — em alusão às populações quilombolas na mesma cidade —, contingentes de população localizados em setores específicos, invisibilizados como parte de uma estratégia ―de resolver a impossibilidade de bani-lo totalmente da sociedade‖ (1991, p. 15), na medida em que os indígenas no sul do Brasil, e no contexto de Florianópolis, também são observados como não existentes dentro dos discursos hegemônicos, historiográficos e políticos locais.

Devido às particularidades das presenças indígenas em Florianópolis, foi necessário trazer para meu exercício reflexivo, além de discussões e conceitos inspirados em alguns desses trabalhos, uma série de elementos teóricos mais específicos para abordar e compreender a presença indígena na localidade que nos ocupa. Esses elementos serão apresentados no item a seguir.

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