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ÍNDIOS NO BRASIL E EM SANTA CATARINA: IMAGENS HISTÓRICAS E EMERGENTES

2.2 Notas desde a arqueologia para uma história dos índios no sul do Brasil

Como mencionado no item anterior, o século XIX foi permeado pelo desenvolvimento de uma série de ideias advindas do evolucionismo social que afirmava a inferioridade dos povos indígenas, ideia que serviu como argumento para o desenvolvimento de práticas colonialistas de dominação e usurpação de seus territórios tradicionais (SCHWARCZ, 1993; MOTA, 1998). Essa linha de pensamento, como argumenta Noelli, permeou também a pesquisa arqueológica, mas ―infelizmente ainda dependemos de uma pesquisa nas publicações e arquivos das instituições para termos a exata medida do que (desde esta disciplina) se pensava e pretendia‖ (2000, p. 22).

A arqueologia no Brasil importou problemáticas e questionamentos de tradições externas, vindas principalmente da América do Norte que, evidentemente, pelo seu contexto, propunham questões e problemáticas que não necessariamente se ajustavam ao contexto particular do país. De todo modo, a arqueologia adotou uma postura nociva em que a cultura material não era relacionada com as pessoas ou as populações às quais os artefatos encontrados se associavam, sendo que, simplesmente, ―os indígenas do Sul do Brasil, sua cultura e sua história não foram alvo dos arqueólogos‖.

Ignorar as informações históricas e, em geral, contextuais, existentes sobre os povos indígenas em relação aos artefatos e sítios arqueológicos encontrados, resultou em modelos e hipóteses simplistas. Como menciona Noelli (2002), essa não foi uma característica exclusiva da arqueologia, pois, no caso da antropologia, as etnografias ―clássicas‖ dos povos do sul do Brasil tardaram a aparecer e poucos pesquisadores,

a exemplo de Santos (1973), Urban (1978), Tommasino (1995) e Mota (1994, 1998), refletiram sobre o processo histórico, e só recentemente surgiu uma nova geração que abandonou interpretações ingênuas ou mecânicas,

que tradicionalmente desconsideraram os

problemas derivados dos contatos, ignorando as inúmeras guerras travadas entre índios e brancos, as epidemias que facilitaram a instalação dos brancos, a formação da sociedade nacional, o impacto ecológico da economia européia e os processos que acabaram em genocídio e na opressão dos povos indígenas que sobreviveram

no espaço que virou Brasil. Nesse sentido, serve o exemplo legado por Mota (1994a, 1994b), que mostrou como os historiadores paranaenses construíram uma interpretação que simplesmente desconsiderou os povos indígenas, inventando a idéia de um vazio demográfico naquele estado (2002, p. 223).

Essa perspectiva a-histórica e não contextual fixou uma série de pré-conceitos que impactariam a forma como os índios do sul do Brasil seriam configurados através dessa disciplina:

(pré) conceitos deterministas ecológicos relativos à baixa complexidade sociológica, política e econômica dos povos indígenas; baixa densidade demográfica; dependência das ofertas/restrições da natureza; baixo nível de adaptabilidade ecológica, etc. Esses preconceitos, forjados para a Amazônia sem base de dados, também foram generalizados para o Sul, como se não houvesse diferenças históricas, culturais e ambientais (IBID).

Por conta dos problemas teóricos e metodológicos dos quais a arqueologia se aproximou (ou melhor, não se aproximou) dos povos indígenas do sul do Brasil, não se conta atualmente com uma série de explicações que deem conta, de maneira detalhada, da existência de populações pré-coloniais do sul, importando também para o público não acadêmico uma gama de informações descontínuas e descontextualizadas, gerando mais dúvidas do que certezas sobre o sul do Brasil antes da colônia.

No estado de Santa Catarina, a maior quantidade de pesquisas arqueológicas tem se concentrado no litoral, dando ênfase ao estudo de sambaquis, e também têm ganhado um destaque importante os estudos direcionados à arqueologia histórica, através da reflexão sobre edificações coloniais e fortes que permanecem na localidade. Como registra Noelli (2000; 2002), no interior do estado, as pesquisas desde essas disciplinas se intensificaram entre as décadas de 1960 e 1980, sendo que a maioria delas acabou se limitando à realização de sondagens preliminares. Igualmente, como menciona a autora, somente nas últimas décadas passou a existir um movimento impulsionado pela presença de uma nova geração de arqueólogos preocupada em refletir acerca de estudos já realizados, na tentativa de propor novas

problemáticas e perguntas que possam contribuir para preencher aquele vácuo gerado pelas pesquisas realizadas nessa primeira fase da arqueologia no sul do Brasil.

Apesar dessas limitações, a arqueologia e seus desenvolvimentos nesses trabalhos realizados nos permitem observar que o sul do Brasil foi ocupado em todos seus espaços, de modo que é possível notar uma longevidade nas tradições pesquisadas e datadas:

De fato, as tradições ainda não apresentaram

variabilidades materiais significativas,

contribuindo para a conclusão preliminar de que pelo menos a cultura material manteve uma padronização reproduzida constantemente, mesmo que tivessem ocorrido mudanças em outros níveis socioculturais. Observando área por área, não há mudanças notáveis no interior de cada tradição, motivadas por inovações locais ou adoções de novas técnicas através de contato interétnico (IBID).

Essas pesquisas demonstram também que os povos que habitaram o sul do Brasil entre 2.000 e 2.500 anos atrás dispunham de estrutura, tecnologia, adaptabilidade e densidade demográfica diferente das dos povos caçadores-coletores que viviam nesse território há 10.000 anos.

Esses povos, como explica Noelli

formavam unidades politicamente aliadas em nível regional, com dimensões variáveis conforme o número de unidades locais e suas densidades demográficas. Eles trocavam sistematicamente informações e pessoas, contribuindo para a manutenção e reprodução constante da sua cultura material, da língua, etc. Assimilavam pessoas de outras etnias, impondo-lhes seus comportamentos, língua e sistemas tecnológicos, o que também contribuía para a reprodução de aspectos culturais. Ou seja, deve-se buscar uma explicação antropológica e arqueológica que considere populações que mantiveram baixos índices de variabilidade material, possivelmente explicados

por uma prescritividade que regia suas sociedades (2002, p. 227).

O referido autor nos explica que houve no sul do Brasil três levas de ocupações humanas. A primeira teria ocupado a região há aproximadamente 12.000 anos, e aparentemente teria permanecido estável até cerca de 2000 anos. Essa estabilidade teria sido comprometida pela chegada de uma segunda leva de povoadores de matriz cultural diferente, isto é, Tupi-Macro Jê. Ele nos indica também que essas populações teriam vindo da Amazônia e do Centro-Oeste do Brasil.

Grosso modo, houve três levas humanas principais de ocupação que se expandiam a partir de regiões distintas. A primeira leva ocupou o Sul a partir de 12.000 ou 13.000 AP e parece ter se

mantido estável, mantendo as mesmas

características materiais, reproduzindo certos comportamentos adaptativos e econômicos de povos ―caçadores-coletores‖, até cerca de 2.500 AP. Estes ―novos‖ povoadores teriam dominado a região em um período de 1.000 anos expulsando, assimilando ou extinguindo as populações que ali permaneciam antes de sua chegada (2002, p. 235). A chegada dos Tupi e Jê ao sul do Brasil é explicada por Lathrap (1970; 1977) e Brochado (1984) como um efeito do aumento da densidade populacional na Amazônia, incentivado pelo desenvolvimento de agricultura e outras tecnologias aplicadas.

A terceira leva a povoar o sul teve origem em diferentes lugares: europeus, africanos e asiáticos começaram a se estabelecer na região em uma dinâmica migratória que continua vigente até os dias de hoje, mas que à diferença da chegada dos grupos Tupi-Macro Jê, teve como característica um avanço muito rápido e violento que rapidamente mudou a configuração demográfica do local:

Se os Guarani e os Jê acabaram por eliminar ou assimilar as populações das tradições Umbu e

Humaitá, os europeus fizeram parecido,

eliminando e assimilando as populações Jê e Guarani, reduzindo as a grupos dispersos pelo Sul do Brasil, que na atualidade alcançam cerca de

24.000 pessoas, em franco processo de recuperação demográfica e de organização política em prol de sua autodeterminação e da recuperação de suas terras (NOELLI, 2002, p. 260).

Além da tecnologia bélica e do processo de redução das populações indígenas no mundo colonial, ocorrida também no sul do Brasil, os colonizadores tiveram como aliado as epidemias que anularam os nativos do país: varíola, gripe, sarampo, tifo, malária, tuberculose, coqueluche, meningite e doenças venéreas contribuíram na diminuição dramática da população que, exposta pela primeira vez a essas doenças, tinha poucas probabilidades de reagir e superar esse tipo de invasão. De qualquer maneira, vale salientar que a chegada dos europeus, e sua posterior dominação do território, fora marcada pela luta contínua com o grande contingente populacional que já habitava o sul do Brasil: Macro Jê e Tupis dominavam a região séculos atrás, e nesse território desenvolviam as mais diversas relações de adaptação e reprodução social e cultural antes da chegada da frente colonial. Os conhecimentos em detalhe dessas dinâmicas são um dos desafios mais importantes que a arqueologia brasileira contemporânea tem pela frente.

As descontinuidades e as generalizações realizadas sobre os povos que habitavam o sul brasileiro acabaram impactando negativamente no reconhecimento da permanência de populações indígenas no sul do Brasil, impulsionando, assim, a criação de imagens de inexistência de população indígena, ou melhor, de relegar a sua presença a um passado remoto distante de nós. No caso do Paraná, por exemplo, Mota (1994) nos chama a atenção sobre como essas dificuldades e generalizações impulsionaram uma história desse estado que apresenta um vazio demográfico no momento da chegada da frente colonial.

2.3 Os povos indígenas no Sul do Brasil desde uma perspectiva

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