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1 A FORMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE UM CAMPO DO CONHECIMENTO

1.2 A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: SUA ORIGEM E SEU DESENVOLVIMENTO

1.2.2 Ciência da Informação e Biblioteconomia

Como já foi mencionado anteriormente, boa parte dos autores da área concordam que a CI nasce a partir do caminho trilhado pela Biblioteconomia em suas atividades relacionadas à organização e disseminação da informação, sendo que Mostafa (1996) apóia sua análise colocando a CI sob a ótica de uma “nova configuração temática”, afirmando que seu nascimento se dá no “espaço deixado por recortes já instituídos pela Biblioteconomia e demais ciências sociais”. A autora faz a seguinte avaliação, a fim de justificar a entrada da CI neste “recorte” deixado pela Biblioteconomia:

A biblioteconomia, ao recortar seu objeto, deixou escapar o fluxo informacional com seus canais de comunicação; ao invés, preocupou-se com o registro e a recuperação dos estoques bibliográficos na forma de classificação e catalogação de documentos [...] Preocupações importantes, mas cuja importância o desenvolvimento de novas tecnologias ao lado do desenvolvimento da própria ciência veio remodelar (MOSTAFA, op.cit, p. 2). Mostafa continua sua argumentação afirmando que este gap deixado pela Biblioteconomia (não porque quis, mas porque não precisou ocupá-lo, afirma a autora),

permitiu a formação de uma ciência que se preocuparia em cuidar das “redes cognitivas de pesquisadores, dos canais e fluxo informacionais, procedimentos de busca e indexação impossíveis de serem pensados sem processos automatizados. É justamente por isso que se diz que a ciência da informação é uma ciência devedora das novas tecnologias” (Ibid).

Dá a entender, por assim dizer, que a CI aproveitou-se do fato de que, supostamente, a Biblioteconomia não tenha dado a devida atenção às implicações das novas tecnologias na questão do fluxo informacional.

De certa forma, pode-se inferir que a CI preocupar-se-ia essencialmente com a dinâmica dos processos da informação automatizada, enquanto que a Biblioteconomia permaneceria preocupada apenas com as questões ligadas à organização dos acervos bibliográficos, muito embora as novas tecnologias tenham sido incorporadas também a estas tarefas.

Parece também ficar implícito que o papel da Biblioteconomia estaria restrito apenas à classificação e catalogação de registros bibliográficos com ênfase na organização da documentação em si, ficando de fora de sua área de interesse os fatores ligados ao uso efetivo da informação por parte de seus usuários e deixando de lado atividades importantes da atividade bibliotecária como, por exemplo, o Serviço de Referência que envolve valiosas interações humanas, intelectuais e cognitivas.

Saracevic também analisa a relação entre CI e Biblioteconomia e apresenta seus argumentos valorizando esta última enquanto uma disciplina milenar e de extrema importância social, cultural e educacional. O autor afirma que o campo em comum entre a CI e a Biblioteconomia é “bastante forte, consiste no compartilhamento de seu papel social e sua preocupação comum com os problemas da efetiva utilização dos registros gráficos” (SARACEVIC, 1996, p. 48).

No artigo em questão, Saracevic faz uma lista de “diferenças significativas em alguns aspectos críticos”. Sem entrar em detalhes, o autor destaca: 1. Seleção dos problemas propostos e sua definição; 2. questões teóricas apresentadas e os modelos explicativos introduzidos; 3. natureza e grau de experimentação e desenvolvimento empírico (conhecimento prático e competências derivadas); 4. instrumentos e enfoques usados; e 5. natureza e força das relações interdisciplinares. As diferenças principais evidenciam-se, porém, pela “agenda das pesquisas” que, segundo Saracevic são “inteiramente diferentes” (SARACEVIC, op.cit., p. 49).

As argumentações apresentadas pelos profissionais empenhados em fortalecer o campo da CI traduzem, na verdade, o esforço de uma comunidade científica que procura estabelecer um novo paradigma e autonomizar-se, mas que encontra resistências obvias

por parte de outra comunidade de profissionais da mesma área, os quais procuram proteger sua disciplina, mantendo assim seu status dentro da comunidade científica como um todo.

Dentre as grandes dificuldades que a CI encontra nesta empreitada, uma das principais reside no fato de que até o momento não conseguiu desvencilhar-se das práticas metodológicas aplicadas pelos profissionais bibliotecários e construir outras novas. Como será demonstrado mais adiante19, os caminhos trilhados pela CI (especialmente a brasileira) assemelham-se de forma tão acentuada aos percorridos pela Biblioteconomia, que se torna bastante difícil definir com clareza em que aspectos a primeira avançou em relação às propostas da segunda.

O cenário torna-se ainda mais complexo na medida em que a própria Biblioteconomia não se apresenta enquanto disciplina estática, mas procura acompanhar o movimento da sociedade incorporando técnicas e procedimentos que a atualizam constantemente e que também estão intimamente relacionados aos avanços tecnológicos da atualidade.

Procurando, no entanto, reforçar a tese de que se tratavam de disciplinas efetivamente distintas, que possuíam objetos de estudo e metodologias diferenciadas, no ano de 2005 o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) elaborou em conjunto com a Comissão de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (CAPES) e o Fundo de Financiamento de Estudos de Projetos e Programas (FINEP) uma proposta para a criação de uma nova Tabela de Áreas do Conhecimento na qual estavam inseridas, separadamente, na grande área 7 - Ciências Sociais Aplicáveis - a Ciência da Informação e a Biblioteconomia, em substituição à descrição anterior, na qual a CI apresentava-se como a grande área que abrigava subáreas, dentre as quais, a Biblioteconomia. A proposta foi divulgada no site http://www.cnpq.br/areas/cee/proposta.htm e colocada para discussão, aberta para receber sugestões e críticas de órgãos interessados. A proposta de reordenação separava ambas as disciplinas que por sua vez possuíam subáreas próprias que se apresentariam da seguinte forma:

Área 9 – Ciência da Informação:

• Fundamentos da Informação • Gestão da Informação • Tecnologias da Informação • Informação Especializada

19 Ver capítulo 3 desta tese

Área 10 – Biblioteconomia

• Fundamentos da Biblioteconomia

• Gestão de Sistemas, Unidades e Recursos de Informação • Técnicas de Tratamento Documental

• Documentação Especializada

À época da criação da nova tabela, as entidades de classe e demais interessados tiveram a oportunidade de opinar a respeito das mudanças20 e a versão final inclui as disciplinas na grande área Ciências Sociais Aplicadas I, subdivididas como segue:

Ciências Sociais Aplicadas I

• 60700009 Ciência da Informação • 60701005 Teoria da Informação • 60701013 Teoria Geral da Informação • 60701021 Processos da Comunicação • 60701030 Representação da Informação

• 60702001 Biblioteconomia

• 60702010 Teoria da Classificação

• 60702028 Métodos Quantitativos, Bibliometria • 60702036 Técnicas de Recuperação de Informação • 60702044 Processos de Disseminação da Informação

A redistribuição atual das subáreas colabora para que a indefinição permaneça ainda mais acentuada, especialmente ao atribuir à Biblioteconomia a responsabilidade das técnicas de Recuperação da Informação, maior área de concentração da teoria e pesquisa da CI.

20 O Conselho Federal de Biblioteconomia em sua 13ª Gestão, à época da discussão, enviou documento ao CAPES/FINEP manifestando posicionamento contrário à divisão das disciplinas, alegando serem áreas indissociáveis. A visão do Conselho foi a de que a Ciência da Informação se trataria de uma grande área do conhecimento sob a qual deveriam estar disciplinas específicas como a Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia. O texto foi redigido pela autora da tese, que participou como conselheira nesta gestão e coordenou o Grupo de Trabalho para Estudos sobre o curso de Gestão da Informação da UFPR.

Por estes e outros motivos que serão discutidos ao longo deste trabalho, a prática tem demonstrado que, pelo menos no caso brasileiro, esta separação ainda não se apresenta de forma clara. Prova disso é que mesmo órgãos relacionados à área, como a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (ANCIB)21, mostraram-se contrários à separação alegando que:

Parte importante da pesquisa e pós-graduação nas áreas da arquivologia e da biblioteconomia é elaborada no contexto de programas de pós- graduação em Ciência da Informação. A Arquivologia e a Biblioteconomia são campos de conhecimento historicamente imbricados nas Ciências da Informação, de modo que sua separação não contempla a tradição e nem as perspectivas de diferenciação, que justifiquem sua separação;

Atualmente, todos os Programas de Pós-Graduação em Ciência da Informação estão instalados junto a Cursos de Graduação em Biblioteconomia e Arquivologia em todo o país, configurando a Ciência da Informação como área que integra esses diferentes saberes. As unidades universitárias e, na maior parte das vezes, os próprios cursos de graduação mudaram nas últimas décadas a sua denominação de Biblioteconomia para Ciência da Informação. Outro fato que atesta o abarcamento, pelo campo denominado Ciência da Informação, desse conjunto de cursos, é a mudança do nome da associação que congrega os cursos de graduação em biblioteconomia e arquivologia para Associação Brasileira de Ensino em Ciência da Informação a ABECIN.

A separação desses campos, na tabela, não corresponderia, portanto, nem à tradição da área e nem à realidade hoje constituída.

O próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC) colabora para estas indefinições na medida em que apresenta, em seu Cadastro de Denominações Consolidadas para os Cursos de Graduação, o curso de bacharelado em Biblioteconomia, colocando a seguir, entre parêntesis, “Ciência da Informação e Documentação”22.

Oliveira (2005) analisa ambas as disciplinas utilizando o conceito de paradigma apresentado por Kuhn, que também orienta o presente capítulo. A autora discorda do fato de que a Ciência da Informação seja uma evolução da Biblioteconomia, principalmente porque, segundo a autora, cada uma delas se baseia em orientações paradigmáticas diferenciadas (2005, p. 21). Oliveira dá a entender que, na verdade, acontece o oposto do que a maioria dos autores afirma acontecer: é a Ciência da Informação que, com suas teorias aliadas às novas tecnologias de informação, vem efetivamente contribuindo com novas práticas aos serviços bibliotecários.

21 ANCIB – Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Ciência da Informação. Dados disponíveis em: <www.ancib.org.br/content.php?codpg=77>.

22

Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/cursos_cadastro.pdf>. Acesso em: 20 out. 08.

As idéias de Oliveira podem ser assim sintetizadas: Ciência da Informação e Biblioteconomia trabalham juntas na busca de solução para o mesmo problema que orienta a área, mas apesar disso, representam campos científicos norteados por paradigmas diferentes. Segundo a autora, a distinção entre os paradigmas das duas disciplinas é assim representado:

Paradigma da Biblioteconomia

Paradigma Ciência da Informação

Composto por um grupo de idéias relacionadas com a biblioteca; O ponto focal desse paradigma é a biblioteca em si, vista como uma

organização social bem definida e única; Baseia-se na identificação de três funções principais da biblioteca: base material (coleções e equipamentos), profissional ou organizacional (estruturas administrativas e de pessoal) e intelectual (sistemas como os de classificação, catalogação, políticas de seleção...);

Tem como principal enfoque a função de dar acesso à sua coleção de documentos; Abarca também o contexto no qual a biblioteca está inserida (institucional e social);

Paradigma fragilizado em dois pontos principais: 1. Considerar o documento mais importante do que a informação nele contida. 2. Pouca preocupação com o usuário.

Composto por um grupo de idéias relativas ao processo que envolve o movimento da informação em um sistema de comunicação humana;

Evidencia o fluxo de informação que ocorre em um sistema no qual os documentos são buscados e recuperados em resposta à pergunta feita pelo usuário;

Esse sistema possui origem na teoria matemática da comunicação (emissor-canal- receptor), com possibilidades de codificação e decodificação para fins de

retroalimentação;

A. importância do paradigma é expresso em três idéias básicas: 1. permite a

formalização da idéia de que a informação é algo que flui dentro de um sistema. 2. A informação passou a ser entendida como algo divisível dentro de unidades feitas em partes. 3. A idéia de movimento da

informação tem intensificado a busca de entendimento da informação em si mesma, não apenas como fenômeno físico, mas também em domínios como o fluxo das idéias, significados, semiótica e semântica. Paradigma fragilizado pelo fato de originar- se da Teoria Matemática que não permitiu considerar aspectos cognitivos da

informação e nem a forma como o desejo dos usuários pode afetar o processo.

Quadro 2 - Comparação entre os paradigmas da Biblioteconomia e da CI

Fonte: Oliveira (2005)

A análise de Oliveira (2005) coloca Ciência da Informação e Biblioteconomia como parceiras: esta última estaria preocupada com a reunião, organização e disponibilização dos documentos no ambiente da biblioteca, enquanto que a primeira

colocaria sua ênfase nos fluxos dos conteúdos informacionais e nos processos de interação entre o usuário e a informação disponibilizada através destes documentos.

A autora afirma que o objeto da CI é diferente do da Biblioteconomia, no sentido em que a primeira “não se restringe aos documentos impressos, mas pode estar representado em forma de patentes, fotografias ou objetos, no registro magnético de bases de dados, numa biblioteca virtual ou repositório na Internet” (OLIVEIRA, op. cit., p. 19). No entanto, como já foi dito, é preciso reconhecer que estes documentos também fazem parte do universo de acervos que uma biblioteca pode conter, além do fato de que o campo de trabalho do bibliotecário ultrapassa os limites das paredes das bibliotecas tradicionalmente conhecidas.

Oliveira coloca que a estrutura que sustenta o paradigma da CI – teoria matemática da comunicação – tem sido aplicada em bibliotecas “como modelo de recuperação de documentos e para caracterizar agências que se dedicam às atividades tanto de Biblioteconomia quanto de Ciência da Informação” (OLIVEIRA, op. cit., p.24). Contudo, é importante ressaltar que esta técnica é utilizada pelos profissionais bibliotecários que atuam nessas organizações, além do fato de que a mesma é amplamente divulgada e ensinada nos cursos de graduação em Biblioteconomia e faz parte da formação deste profissional.

Além disso, o bibliotecário é reconhecidamente um profissional capaz de atuar em diversos tipos de instituições diferentes nas quais a informação flui, como centros de documentação de empresas e instituições públicas ou privadas, e não necessariamente apenas em bibliotecas tradicionais. Outro fato importante a ser considerado é que o campo de atuação do bibliotecário também expandiu-se com a chegada das novas tecnologias, especialmente através das bibliotecas digitais/virtuais, em cujos “acervos” constam os mais diferentes tipos de documentos apresentados em diferentes mídias e formatos, cujos usuários nem sempre se encontram presentes de forma física, o que não impede que os processos de RI continuem a ser intermediados por este profissional.

A criação e a apresentação de produtos e serviços de informação digital, como as bases de dados de textos e bibliografias de assuntos gerais e especializados, por exemplo, também ilustram a atuação do profissional bibliotecário dentro e fora do ambiente convencional das bibliotecas.

Oliveira conclui citando Kuhn, para quem “a transição de um paradigma em crise para um novo não chega a ser um processo cumulativo [...] Assim, apesar da ação revolucionária do novo paradigma, há um período de transição entre o velho e o novo

modelo, havendo coincidências entre os problemas que podem ser resolvidos por ambos” (p. 25). Para a autora, o momento é de transição.

A indefinição na atribuição de papéis que diferenciem as duas classes de profissionais parece também estar presente no texto de Oliveira. Ao final de suas argumentações, ela concorda que “a unidade de análise da Biblioteconomia não é mais somente o livro, mas também a informação e suas atividades, agora automatizadas, ultrapassam o espaço da biblioteca” (OLIVEIRA, op. cit., p. 26). Com essa constatação, fica mais uma vez evidenciada a ausência de limites mais claros que sustentem o novo paradigma proposto pela CI, fica também claro que a luta pela definição do campo científico está ainda sendo travada, estando longe de ser concluída.

No entanto, ao se retomar a história da CI e se constatar a complexidade de suas relações com a Biblioteconomia, fica muito forte a convicção de que um dos atores principais deste processo de mudança paradigmática é um equipamento eletrônico: o computador. É evidente que ele “resume” um conjunto de outras tecnologias dentre as quais a mais evidente hoje está representada pela Internet. No entanto, mais do que um terminal, trata-se de um híbrido que, através dos usos que lhe foram socialmente atribuídos no quesito informação, e da apropriação social da qual foi objeto pelas disciplinas aqui estudadas, pode ser considerado como um dos fatores principais de diferenciação que ainda necessita ser mais amplamente investigado.

Por este motivo, o capítulo a seguir explora a relação entre a CI e as Novas Tecnologias de Comunicação e Informação (NTCIs) resgatando a história desta “conexão inexorável”, emprestando o termo utilizado por Saracevic23.