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A “Construção dos fatos científicos” em Latour: a teoria da “rede de atores”

1 A FORMAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE UM CAMPO DO CONHECIMENTO

1.1.3 A “Construção dos fatos científicos” em Latour: a teoria da “rede de atores”

Bruno Latour apresenta importantes contribuições para a análise do problema aqui levantado, na medida em que, em sua análise das práticas científicas, aponta para a existência de redes de atores humanos e não-humanos que se associam na constituição da própria sociedade. Nessas redes, que chama de sociotécnicas, Latour atribui relevância equivalente às ações desenvolvidas pelos atores humanos e não-humanos, o que dá suporte ainda maior ao presente estudo, que tem num não-humano – o computador - um dos seus objetos de análise. Sendo assim, a idéia de rede-de-atores ou de actor-network também será utilizada. Em sua argumentação, desenvolvida em parceria com Michel Callon, Latour utiliza outros conceitos que também se aplicam à proposta do presente estudo, merecendo destaque o conceito de tradução.

Benakouche (2005, p. 93) cita Callon ao definir tradução como o processo de “atribuir a um elemento de uma rede-atores ‘uma identidade, interesses, um papel a ser representado, um curso de ação a ser seguido, um projeto a ser posto em prática’”. Benakouche (op.cit., p. 93-94) segue explicando o sentido de tradução e afirma que:

o efetivo exercício de um dado papel (“enrolement”) não deriva de algo pré- definido ou de uma realidade externa e oculta, mas que ele é emprestado (ou “traduzido”) pelos demais elementos da rede, num movimento mútuo e contínuo – uma negociação – a partir dos desejos, pensamentos secretos, interesses, ou mecanismos de operação de cada um dos ‘tradutores’ . Aplicando-se este conceito, pode-se afirmar que tanto na CI como na Biblioteconomia, o papel atribuído ao computador é o resultado de um processo de assimilação e de negociação decorrente de traduções diferenciadas desse equipamento dentro de cada rede; no caso, torna-se relevante conhecer essas traduções a partir das concepções de seus “tradutores”. A partir daí, será ainda possível conhecer um pouco mais de perto os processos de negociação existentes também entre as duas disciplinas, ou redes sociotécnicas, ampliando assim o foco de visão de cada uma delas.

O estudo do computador enquanto ator híbrido constituinte da CI retoma os conceitos da teoria de ator-rede de Latour, a qual não admite a separação entre técnica e sociedade e coloca que, ao contrário disso, as redes sociais são formadas por atores humanos e não humanos, característica que o autor chama de hibridez: “a sociedade não é feita de elementos sociais, mas de uma lista que mistura elementos sociais e não sociais” (LATOUR ,1986, apud BENAKOUCHE, 1999, p. 9).

Em sua teoria, Latour afirma que a sociedade é constituída pela associação de atores humanos (H) e não-humanos (NH) e, no caso das ciências, estas são responsáveis pela proliferação destes híbridos que compõem e recompõem os laços sociais (1994, p.106):

As ciências e as técnicas não são notáveis por serem verdadeiras ou eficazes – estas propriedades lhes são fornecidas por acréscimo e por razões outras que não a dos epistemólogos (Latour, 1989a) -, mas sim porque multiplicam os não-humanos envolvidos na construção dos coletivos e porque tornam mais intima a comunidade que formamos com estes seres [...] Os saberes e os poderes modernos não são diferentes porque escapam à tirania do social, mas porque acrescentam muito mais híbridos a fim de recompor o laço social e de aumentar ainda mais sua escala.

Uma vez reconhecida a importância do papel dos atores não-humanos para a constituição das redes sociais das quais a ciência também participa, ressalta-se o interesse de um estudo a respeito do nível de influência que o computador tem exercido no desenvolvimento da Ciência da Informação a partir da análise de como esta interage com tal tecnologia.

Benakouche (1999, p. 12) cita David Hess (1995) que também faz uma “abordagem social construtivista da ciência e da técnica”, afirmando que: “para ele (Hess), cada grupo de pessoas tem sua própria versão a respeito do que é conhecimento e tecnologia e, nesse sentido, torna-se importante para o estudioso da ciência e da técnica levar em consideração os diferentes pontos-de-vista dos diferentes grupos sociais”.

Para se estudar a “construção de fatos científicos e de artefatos técnicos”, Latour propõe como método “seguir os cientistas” (2000, p. 39). Assim, em seu trabalho inaugural, desenvolvido juntamente com Steve Woolgar6, já tentou aplicá-lo: no caso, realizou uma etnografia da ciência e da produção do conhecimento científico, observando como isto acontece ao vivo, diretamente em um laboratório. Através dessa “entrada” no mundo científico, foi possível conhecer de perto as dinâmicas que constituem a ciência, a partir da atuação da própria comunidade científica. “Ir ao laboratório e ver”, como propõem os

6 Vida de Laboratório, 1979.

autores, significa, segundo Hochman investigar como a ordem científica é criada a partir do caos, em um processo onde o observador é tão construtor dos fatos quanto o cientista observado” (1994, p. 214).

O resultado desta investigação, segundo Hochman, representa “deparar com um ordenamento dinâmico e instável, com uma área de consenso mínima” (op.cit., p. 215), o que de certa forma, desconstrói mais uma vez a noção kuhniana de estabilidade da comunidade científica.

Conhecer a dinâmica da comunidade científica a fim de conhecer como funciona a dinâmica da própria ciência é uma proposta viável para este estudo, uma vez que a “caixa- preta”7 que constitui a formação da CI ainda não está fechada. O termo “caixa preta”, utilizado por Latour, pode ser visto como assemelhado ao termo “paradigma” de Kuhn na medida em que significa algo estabelecido dentro de uma determinada ciência. O método que permite acompanhar o processo de formação da ciência levaria o observador a estar presente antes que as “verdades” se estabeleçam, ou seja, antes que uma caixa se feche e fique preta. Com esse método simples precisamos apenas seguir o melhor de todos os guias, os próprios cientistas, em sua tentativa de fechar uma caixa-preta e abrir outra”. (LATOUR, 2000, p. 39).

Para tal, Latour considera importante analisar a literatura de uma determinada área – o que faz parte da proposta deste estudo - destacando que este universo é permeado por controvérsias que acabam por tornar técnica a literatura publicada. Este processo de negociação leva à necessidade de constituir aliados ou “arregimentar amigos” (LATOUR, op. cit., p. 55) a fim de fazer valer e tornar legítima uma proposta dentro do campo científico. Usando as palavras de Latour, esta tese também se propõe a “seguir os atores”, o que possibilita “abrir a caixa preta” onde se encontram guardados alguns “fatos” que podem contribuir para uma maior compreensão de como se faz uma ciência, no nosso caso, a CI.

“Incerteza, trabalho, decisões, concorrência, controvérsias, é isso o que vemos quando fazemos um flashback das caixas-pretas certinhas, frias, indubitáveis para o seu passado recente” (LATOUR, op. cit., p.16). Esta talvez seja também a história descrita neste trabalho, e para conhecê-la, nada melhor do que ir às suas origens. É o que será feito a seguir.

7

Termo que faz uma analogia dos processos e dos fatos científicos enquanto conteúdo secreto semelhante à “caixa preta” encontrada, por exemplo em aviões, e que contém os últimos registros que antecedem um acidente aéreo.