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2.2 – A cidade do Norte e o Sonho Americano 2.2.1 – Macon Dead

Esta cidade não identificada constitui uma paisagem extremamente ambivalente onde se indivíduos com mundividências distintas convivem51. É um espaço multifacetado52, um “overlapping territory” no qual Milkman vai navegar durante a primeira parte da sua vida. Como afirma Peach, Song of Solomon oferece-nos uma geografia ideológica:

The three zones as portrayed in the novel reinterpret the geography of the USA in terms of a sociopolitical dialectic: a black centre which is also a disenfranchised community, a zone which is a white zone, and a zone between them which allows for entry into the white zone but to a limited degree only. Indeed, the sociospace occupied by Macon Dead is the overlap between the white and black zones. (Peach 1995, 65)

Com o passar do tempo, a ética protestante manifesta-se sobretudo na valorização dos aspetos materiais em detrimento dos espirituais. Macon encontra o seu valor próprio, a sua liberdade, na posse de riqueza: “You’ll own it all. All of it. You’ll be free. Money is freedom, Macon. The only real freedom there is” (Morrison 2006, 163). Mais do que riqueza, a verdadeira obsessão de Macon é a aquisição de propriedade. Um símbolo desta afeição pela propriedade são as chaves, um objecto que pacifica Macon: “Macon Dead dug in his pocket for his keys, and curled his fingers around them, letting their bunchy solidity calm him. They were the keys to all the doors of his houses (only four true houses; the rest were really shacks), and he fondled them from time to time as he walked down Not Doctor Street to his office.” (17). Contudo, cedo se nota que a liberdade que Macon encontra na posse de propriedade é falsa:

Tired, irritable, he walked down Fifteenth Street, glancing up as he passed one of his other

51 Roynon sugere que este facto se relaciona com as várias abordagens aos movimentos de progresso afro- americano nascidos no século XX. Indivíduos como Marcus Garvey, que fundou em 1914 a United Negro Improvement Association, promoveram o retorno a África. Booker T. Washington, fundador da Tuskegee Institute em 1881, valorizava a formação vocacional e manual para negros em detrimento de uma educação mais intelectual e formal. Du Bois, fundador da NAACP, opôs-se notoriamente à postura Washington. Nesta cidade do Norte encontramos uma interseção de várias ideologias corporizadas por diferentes personagens, criando um espaço urbano ambivalente, híbrido. (Roynon 2013, 102-103)

52 Faris, citando Marie Darrieussecq, refere que a aproximação de mundos distintos, característica essencial do realismo mágico, pode ser vista como sintomática de certos aspetos da vida contemporânea como a habitação em subúrbios. Os subúrbios, um “undifferentiated in-between” são um “space of all possibilities, sometimes frightening, since one can forget where one comes from and become lost.” (Faris 2004, 21)

houses, its silhouette melting in the light that trembled between dusk and twilight. Scattered here and there, his houses stretched up beyond him like squat ghosts with hooded eyes. He didn’t like to look at them in this light. During the day they were reassuring to see; now they did not seem to belong to him at all—in fact he felt as though the houses were in league with one another to make him feel like the outsider, the propertyless, landless wanderer. (27)

As “suas” casas ganham uma vida própria, como se elas, personificadas, observassem Macon com um olhar julgador. Estas casas representam, pois, a consideração que os habitantes do Southside têm por Macon. A sua perseguição dos princípios do individualismo e riqueza, o seu desejo pela sua “slice of the pie” (63), levam-no a não reconhecer a importância dos laços familiares e comunitários. Um déspota no seu próprio lar e para a sua própria comunidade, Macon coloca os seus interesses em primeiro lugar53. A frieza do seu individualismo separa-o da sua comunidade, transformando-o num homem solitário e detestado pelos membros da sua coletividade. Por isso mesmo, Macon nunca descobre a verdadeira origem da alcunha do seu filho, já que era um homem difícil de se abordar, “a hard man, with a manner so cool it discouraged casual or spontaneous conversation” (15). A tirania que nasce do seu individualismo é reconhecida pela sua comunidade e sentido até por Milkman54. Macon alinha-se completamente pelo paradigma mainstream branco e pela correspondente visão do progresso, assente no capitalismo, individualismo e, em termos temporais, no futuro. A primeira parte do romance reflete-o, apresentando um desenvolvimento linear, cronológico, condizente com a visão do mundo de Macon. A sua ideologia prova ser 53 “Put that thing down and throw me my goddam money!” Macon’s voice cut through the women’s fun. “Float those dollars down here, nigger, then blow yourself up!”

(…)

Go get my money,” Macon said. “Me?” Freddie asked. “Suppose he...” “Go get me my money.” (25-26)

54 Guitar’s face shone with embarrassment. “He’s with me,” he said. “I said get him outta here.”

“Come on, Feather, he’s my friend.” “He’s Macon Dead’s boy, ain’t he?” “So what”

“So get him outta here.”

“He can’t help who his daddy is.” Guitar had his voice under control. “Neither can I. Out.”

“What his daddy do to you?”

“Nothing yet. That’s why I want him outta here.” “He ain’t like his daddy.”

destrutiva para as personagens, uma ideologia que rejeita a cosmologia afro-americana, que se distancia do logocentrismo pós-iluminista e de uma moralidade dualista cristã. A cultura afro-americana, inerentemente hifenizada, abre um espaço para a aceitação de múltiplas influências e crenças em virtude dos quatrocentos anos em que teve de negociar entre cosmovisões distintas. Dentro do espectro cultural afro-americano, um exemplo desta abertura à multiplicidade ou hibridização, presença constante no realismo mágico, é a modificação do aspeto religioso55.

A alienação de Macon intensifica-se por não estar conectado às suas raízes: “Surely, he thought, he and his sister had some ancestor, some lithe young man with onyx skin and legs as straight as cane stalks, who had a name that was real. A name given to him at birth with love and seriousness. A name that was not a joke, nor a disguise, nor a brand name” (17-18). Concomitantemente Macon considera a sua família como sua propriedade, uma comodidade de que se pode servir: “[h]is son belonged to him now.” (63). O episódio de infância que Magdalene conta a Milkman imediatamente antes do início da segunda parte põe este aspecto igualmente em evidência56.

Ironicamente, o lar dos Dead não pertence a Macon mas sim ao pai de Ruth, algo realçado pela contínua referência a esta casa como “Doctor’s house” por parte do narrador. O doutor Foster à semelhança de Macon enquadra-se numa “black bourgeoisie”, chegando mesmo, segundo Macon, a revelar atitudes racistas. Ironicamente também a 55 Como refere Vincent Wimbush, in “Reading Darkness, Reading Scripture,” na sua introducão ao livro African Americans and the Bible: “Almost from the beginning of their engagement with it, African Americans interpreted the Bible differently from those who introduced them to it, ironically and audaciously seeing in it—the most powerful of the ideological weapons used to legitimize their enslavement and disenfranchisement—a mirroring of themselves and their experiences, seeing in it the privileging of all those who like themselves are the humiliated, the outcasts and powerless … African Americans’ engagement of the Bible points to the Bible as that which both reflects and draws unto itself and engages and problematizes a certain complex order of existence associated with marginality, liminality, exile, pain, trauma (…). [The Bible] was seen as a sort of rhetorical paint brushing of their existence and a virtual manifesto for their redemption and triumph. So for African Americans to read scriptures is to read darkness. “(Wimbush, citado por Pocock 2009, 170). Pilate é um exemplo da remodelação religiosa em Song of Solomon por ser uma personagem que, como veremos, se encontra extremamente ligada ao mundo sobrenatural e, ao mesmo tempo, possui um conhecimento aprofundado da Bíblia. A cultura afro- americana, à semelhança de outras culturas, admite outras formas de conhecimento, um conhecimento passado de geração em geração através do registo oral e que inclui crenças no sobrenatural.

56 “When we were little girls, before you were born, he took us to the icehouse once. Drove us there in his Hudson. We were all dressed up, and we stood there in front of those sweating black men, sucking ice out of our handkerchiefs, leaning forward a little so as not to drip water on our dresses. There were other children there. Barefoot, naked to the waist, dirty. But we stood apart, near the car, in white stockings, ribbons, and gloves. And when he talked to the men, he kept glancing at us, us and the car. The car and us. You see, he took us there so they could see us, envy us, envy him. Then one of the little boys came over to us and put his hand on Corinthians’ hair. She offered him her piece of ice and before we knew it, he was running toward us. He knocked the ice out of her hand into the dirt and shoved us both into the car.” (216)

cisão no relacionamento entre Ruth e Macon se relaciona com motivos financeiros. Quando Macon pede auxílio financeiro ao pai de Ruth esta recusa-se a influenciá-lo: “She said it had to be his decision; she couldn’t influence him. She told me, her husband, that. Then I began to wonder who she was married to—me or him.” (72 ). A obsessão com a posse de propriedades mistura-se com o sentimento de que ele não “possuía” a sua esposa. Tirano para com os seus inquilinos e para com a sua família, Macon Dead efetivamente personifica uma morte espiritual.

Morrison contudo, numa atitude pós-moderna de desconfiança de uma verdade absoluta, e oferecendo sempre a multiplicidade de visões e versões da realidade ao leitor, demonstra que as atitudes de Macon não são injustificadas, tendo em consideração o trauma que teve de suportar na sua juventude. A memória funciona também como um espaço ao qual as personagens acedem e que pode transfigurar as suas personalidades, para além de moldar as suas identidades. Quando Macon conta a história do seu pai e da sua infância em Lincoln’s Heaven, a sua personalidade parece alterar-se: “His voice sounded different to Milkman. Less hard, and his speech was different. More southern and confortable and soft” (52). Ao contar a história do seu passado no Sul, Macon “viaja” no tempo, o que o modifica a sua postura57.