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Jame Lockhart é uma lenda na lenda do “Old Natchez Trace”. Jamie Lockhart é, em primeiro lugar, uma caricatura de Joseph Thompson Hare, um herói no “tall tale” do velho Sul34. Hare, uma personagem contraditória da História do Sul, é o foco ideal para

33 “And before the boat could leave, she told him that Jamie Lockhart was now no longer a bandit but a gentleman of the world in New Orleans, respected by all that knew him, a rich merchant in fact. All his wild ways had been shed like a skin, and he could not be kinder to her than he was. They were the parents of beautiful twins, one of whom named Clementine, and they lived in a beautiful house of marble and cypress wood on the shores of Lake Pontchartrain, with a hundred slaves, and often went boating with other merchants and their wives, the ladies reclining under a blue silk canopy; and they sailed sometimes out on the ocean to look at the pirates galleons, they had all they wanted in the world, and now that she had found her father still alive, everything was well.” (183-184)

34 Nasce na Pensilvânia por volta de 1780. Antes de ir para o Sul Hare já teria entrado na vida do crime em

Nova Iorque, participando numa série de pequenos crimes em Nova Iorque, Philadelphia e Baltimore. Após uma viagem de barco até Nova Orleães decide ficar. Aqui mantem-se dentro da vida do crime, reunindo um gangue com mais três companheiros com vista a assaltar indivíduos que viajavam ao longo do trilho do Natchez. Este gangue mascarava-se espalhando sumo de bagas nas suas faces, o que dava ao seu semblante uma aparência ainda mais assustadora. A quadrilha encontrava-se frequentemente na linha do Tennessee, numa caverna onde poderiam ter abrigo e descansar entre roubos. Segundo a lenda, estes fariam trocas com

se explorar o tema da identidade, quer em termos individuais quer regionais. Lockhart é também, como já referi, uma personagem inspirada no conto de fadas “A Noiva do Ladrão”, e, ainda, na figura do Cupido da mitologia grega35. Lockhart é por isso uma personagem liminal onde diversos discursos culturais se justapõem36.

Lockhart, na primeira parte da história, insiste em repartir a sua identidade em dois, abstendo-se de se assumir como um ser humano contraditório, como que recusando ser mais do que uma personagem de um conto de fadas. Ele é o “robber” e também o “bridegroom”, e por isso divide o seu tempo para ser cada uma destas identidades individualmente: “For he thought he had it all divisioned off into time and place, and that many things were for later and for further away, and that now the world had just begun.” (87).

Tanto Joseph Thompson Hare como os irmãos Harpe são heróis folk do Mississippi. Apesar da referência , segundo os registos, a Little Harp como louco (“there Jamie lay on the ground under a plum tree while the paths of the innocent Clement and the greedy Salome and the mad Little Harp all turned like the spokes of the Wheel” (147) e feio (“there at the avenue of celery trees at the entrance of a cave built of rock sitting by a fire, was a band named the Little Harp and he was just as ugly as possible to be” (92), a sua morte às mãos de Jamie é uma invenção literária. Com a figura de Mike Fink, Welty inspira-se novamente nas lendas do Mississippi. As suas atividades enquanto pirata de barco e “mailrider” enfatiza o tema da dualidade. Ele é uma imagem do herói do “flatboat”37 popular dos anos oitenta do século XIX: “Then, sailing his cap in the air, he gave a whistle and a shake and declared that he was none other than Mike Fink, champion of all the flatboat bullies on the Mississippi River, and was ready for anything.” (8). Jamie Lockhart e Mike Fink surgem no início da história, imbuindo desde logo a narrativa com contornos míticos. Uma terceira figura “mítica” que se junta a estas personagens é

os índios, sendo guiados por um índio supostamente chamado Hay Foot. Hare acaba por ser enforcado a 10 de setembro de 1818 por assalto, perante um público de cerca de 1500 pessoas. Hare, segundo a lenda, era bastante diferente de outros bandidos no sentido em que, como podemos ler em Pioneer Traits West, era a epítome do “romantic highway man.” (Worcester 1985, 56).

36 “Magical realism reorients not only our habits of time and space but our sense of identity as well. The multivocal nature of the narrative and the cultural hybridity that characterize magical realism extends to its characters, which tend toward a radical multiplicity.” (Faris 2004, 25)

37 Quando o “keelboat” se torna o principal meio de transporte de comércio nos rios do Ohio e Mississippi Fink torna-se o rei dos “keelboatmen”. Mike Fink é já uma lenda na primeira metade do século XIX, surgindo em contos populares, romances, peças, cantigas e poemas da época, permanecendo para a posteridade como símbolo da natureza violenta, impulsiva, corajosa e masculina dos tempos de fronteira.

Clement Musgrove, desde logo apresentando por Welty como um “innocent planter” (1). Clement, um agricultor inocente, traz contraste e ambivalência a este espaço, um espaço de, por um lado, paz e inocência, e por outro, de perigos e mentiras.

Jamie Lockhart é a personagem que representa com mais intensidade este paradoxo da dualidade. Welty, através de Lockhart, subtilmente mostra ao leitor que uma visão idealizada e pastoril desses tempos de fronteira não é mais do que um conto de fadas. Ao contrário dos autores acima referidos, nostálgicos pela “era” da floresta, Welty, unindo História e imaginação, desenha um espaço brutal, impregnado de violência e desonestidade, algo que a narrativa deixa bem claro logo nas primeiras cenas. Apesar do seu desejo de ser um “gentleman” e um homem social, ele inicialmente insiste na sua identidade dividida. Teme, talvez, que ao ser apenas um “gentleman” perderá o seu sustento ou até mesmo a sua liberdade. Dado o simbolismo desta personagem, a sua insistência para com a vida de bandido ecoa talvez a insistência dos americanos, ainda no tempo de Welty, de cristalizarem o passado masculino e pioneiro dos tempos de fronteira. Esta insistência, que não deixa de ser uma deturpação da realidade, leva-o a não ver que a rapariga que o servia na casa de Clement era Rosamond.

Através desta personagem, Welty alerta-nos para o perigo de ignorarmos a verdadeira complexidade da realidade. Quando Lockhart volta a encontrar-se com Rosamond ele permite-se amar e ser amado apenas durante a noite. A perseguição de Rosamond, e a sua insistência em tê-lo para si leva-o a confrontar a sua verdadeira natureza. Ao permitir-se estabelecer verdadeiros laços com a pessoa que ama e aceitar viver em coletividade, Jamie atinge uma maturidade emocional que lhe permite ultrapassar a sua crise identitária e avançar corajosamente em direção à cidade, símbolo do progresso e das desvantagens que o futuro trará, mas também das vantagens oferecidas por uma vida em comunidade.

Salome e Little Harp demonstram a escolha oposta e as suas consequências. Ao insistirem em ver o outro como unifacetado, como o reflexo apenas das suas ações, não só estão a impedir uma convivência feliz com o coletivo como estão a impedir uma convivência feliz consigo mesmos. Esta escolha torna estas personagens inflexíveis, incapazes de alcançarem um final feliz. Salome é mais do que uma vez descrita como uma máquina, e não como um ser humano: “Rosamond did not think the trickery went so deep in her stepmother that it did not come to an end, but made her solid like an image of stone in the garden.” (123). Efetivamente Salome assemelha-se a uma máquina, escolhendo sempre a alternativa que lhe trará mais ganhos, custe o que custar.

Determinada em ser autossuficiente, Salome comete um erro grave no mundo weltyano: inflexível na forma como vê os outros, Salome vira-se para si e corta os laços afetivos que estabelece com os que a rodeiam. E, como vemos em muitas instâncias na obra de Welty, cortar os laços emocionais com os que nos rodeiam leva à estagnação pessoal e, em última instância, à imaturidade emocional. Por isso mesmo, esta visão da vida a preto e branco leva-a à sua morte. Nos seus últimos momentos, Salome deixa clara a sua autoimposta sentença: “No one is to have power over me!”, Salome cried, shaking both her fists in the smoking air. “No man, and none of the elements! I am by myself in the world.” (160). Salome, tendo em conta as suas características, as interações com os que a rodeiam e os seus planos para a plantação de Clement, simboliza, podemos dizer, o espírito ganancioso que surge com o crescimento da indústria no Sul. Little Harp também é representativo dos perigos de uma visão da vida que recusa a multiplicidade. Como alguns críticos apontam e eu reitero, Little Harp representa um dos lados de Jamie, escolhendo seguir apenas a vida de bandido e a realidade agreste desta profissão, que se distancia da realidade encantada do folclore americano de onde personagens como Little Harp emergem quase como heróis. A natureza agressiva de Little Harp, então, é um dos elementos que nos permitem ver The Robber Bridegroom como uma inversão, ou pelo menos como uma versão irónica, do conto de fadas. De facto, Little Harp é uma personagem “má”, mas apenas porque recusa ver-se a si como mais do que isso38. Ao recusar a complexidade do outro que compõe a sua própria humanidade Little Harp acaba por, à semelhança de Salome, tornar-se menos humano e mais animalesco.

Jamie Lockhart tem a função de desmistificar a imagem idílica dos tempos de fronteira. Lockhart não só consegue ser extremamente violento, como também se encontra completamente motivado para ter dinheiro fácil. Através do uso do conto de fadas como estrutura para a narrativa e inspiração para a caracterização das personagens, Welty consegue reescrever ironicamente o conto de fadas canónico, recriando um conto de fadas idiossincrático, revelador de como a História mitificada dos inícios da nação é ela própria um conto de fadas - também ela, como The Robber Bridegroom, um exercício imaginativo. Ao mesmo tempo, esta figura cumpre a função de revelar a importância do mito na criação da História factual, um dos principais traços do realismo mágico como

38 Como refere Carson, “The “evil” characters seem evil precisely because and to the extent that they refuse to acknowledge their complexity, a refusal that reduces them to one-dimensional fairy tale villains in their evaluation of themselves and their relationship to others.” (Carson 1988, 59)

referi anteriormente. Estabelece-se aqui uma nova forma de conhecimento que contraria os pressupostos da lógica ocidental de perceção da realidade. Ao mesmo tempo, Welty oferece uma forma mais rigorosa de conhecermos a História da região.

A identidade dual de Jamie no início da narrativa era a única maneira de esta personagem ter o melhor dos dois mundos: o mundo individualista e masculino dos tempos de fronteira e o mundo onde poderia usufruir do conforto da vida em sociedade. Por outras palavras, Jamie vê-se obrigado a escolher entre o mundo da “wilderness” ou o mundo da civilização. Esta foi também a lógica dos autores que, descontentes com os frutos da civilização, inexoravelmente viam a “floresta” e os tempos de fronteira como a era dourada da História americana, e os tempos seguintes quase como anti-climáticos. Todavia Welty mostra-nos que este período inicial, individualista e masculino, sempre teve um prazo de expiração, uma vez que o estabelecimento de laços afetivos e da vida em comunidade é o caminho para se atingir uma verdadeira sabedoria e maturidade emocional. Como refere Maria Teresa Castilho: “Welty, com The Robber Bridegroom, parece querer dizer o mesmo que os contos de fadas dizem às crianças: através das ligações afetivas com outra pessoa atingimos a suprema segurança emocional e conseguimos as relações mais permanentes que estão ao nosso alcance.” (Castilho 1996, 220).