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Todos os espaços da narrativa, nomeadamente Rodney Landing, a área do Natchez e Nova Orleães são locais mágicos tendo em conta a quantidade de objetos, plantas e animais que têm vida própria - um traço típico do realismo mágico. O cadeado falador de Rosamond, o corvo que canta baladas de Mike Fink (e que posteriormente escolhe Jamie Lackhart como dono), as árvores que tomam a forma de índios e reproduzem o som dos seus tambores são pormenores que oferecem uma atmosfera mágica aos espaços da narrativa, espaços esses geográficos e históricos.

Esta “wilderness” trata-se de um espaço também ele ambivalente. Por um lado, durante a noite, esta providencia acolhimento e alimento aos amantes, um espaço onde podem ser livres para amar e seguir os seus instintos. Por outro lado, durante o dia, a floresta é um espaço de perigo e engano, que impõe o uso de uma máscara. Concomitantemente, a identidade de Jamie é também ela ambivalente por ser por um lado mítica e, por outro, histórica e lendária, já que ancorada num tempo e espaço concretos. Ao mesmo tempo, ele é o cupido, o marido “sobrenatural”, e também o lendário Joseph Thompson Hare. Ele é o herói americano, um homem que pertence à “wilderness” – ou seja, a todo um campo de possibilidades. Personagens como Hare glorificaram o “Old Natchez Trace”, um trilho originalmente usado por nativos americanos, comerciantes e imigrantes na segunda metade do século XVIII e XIX30.

A decisão de incluir este espaço geográfico, histórico e mítico é uma escolha estratégica. Uma vez que o “Old Natchtez Trace” constitui um ponto de comunicação entre a floresta e a cidade, este espaço é ideal para incluir o padrão do cronótopo que 30 Ao longo destes trilhos foram estabelecidas estalagens com o fim de proporcionarem alimento e acolhimento aos viajantes. Estes trilhos estendiam-se ao longo de 710 km, de Nashville, Tennessee, até Natchez, Mississippi, ligando o rio Cumberland ao rio Mississippi. Inicialmente os primeiros exploradores europeus tiveram de ter a assistência de povos nativos para passar, sobretudo os Choctaw e os Chickasaw que ocupavam a região. Quando o barco a vapor passa a ser o meio de transporte dominante no século XIX, o “Trace” perde alguma importância por ser menos usado. Ainda assim, este caminho era o único ponto de ligação entre os estados do Leste e os portos comerciais do Mississippi e do Luisiana. Este trilho torna-se, contudo, lendário por ser um território pleno de criminosos e de “highwaymen”, que aterrorizavam quem se servisse desse caminho. Estes assaltantes foram talvez os principais exemplos do crime organizado nos EUA. Esta parte da História do “Old Trace” empresta à narrativa uma atmosfera de mistério assim como o ancoramento histórico.

mencionei anteriormente, já que a História americana se desenvolve temporal e topograficamente da floresta para a cidade. Além disso, no conto de fadas assim como nesta narrativa, a floresta é um espaço de perigo, de equívoco e também de confusão. É por isso um local privilegiado para as personagens enfrentarem oposições externas para, consequentemente, se transformarem internamente. Em The Robber Bridegroom a floresta do Natchez é o lugar onde as personagens se perdem para se encontrarem.

Na atmosfera mágica de Rodney Landing verifica-se quase como que um animismo por parte da própria natureza. Os vários elementos parecem pertencer a uma só identidade, agindo em uníssono, como se houvesse uma relação de interdependência entre as personagens e a paisagem31. Além disso a floresta parece refletir externamente o interior daqueles que nela se encontram. A certo ponto as folhagens das árvores emitem um som semelhante ao dos tambores dos índios e a forma das árvores assemelha-se ao seu semblante, como que se os índios se antropomorfizassem nas árvores dessa floresta. Os índios que aí habitam esta floresta são uma das personagens históricas cujo destino é o desaparecimento, algo anunciado por Clement. Neste território foram estabelecidas tribos de índios que viviam em união com a terra e que, na época colonial, chegaram a representar um perigo real para os primeiros colonos. À medida que a História da América e do próprio Sul vai evoluindo simbolicamente da floresta para a cidade, a comunidade índia é progressivamente reduzida. Porém, como os mitos sobrevivem ao tempo, os índios não deixam de marcar a sua presença no folclore da região, inclusivamente nas histórias do “Old Natchez Trace”. Ainda que os índios sejam aqui representados como figuras capazes de perpetrar atos de grande violência para com as personagens principais, a narrativa acaba por nos informar que estes mesmos atos são o resultado do massacre ao qual foram sujeitos, e que a sua estreita relação com a natureza é sintomática do seu direito de habitar este território. Como referi anteriormente, se os tempos de fronteira representam todo um campo de possibilidades para os americanos, o mesmo não acontece 31 Por vezes é a ação das personagens que desencadeia alterações no estado da natureza. Noutros momentos é a alteração do cenário natural que desencadeia o movimento das personagens:

“When the moon went sailing like a boat through the heavens, between long radiant clouds, all lunar sand bars lying in the stream, and the stars like little fishes nibbled at the night then it was time for the bandits to ride home.” (83)

Em outros momentos, a natureza, parece refletir o estado de espírito das personagens. A certa altura, a floresta em que se encontra Rosamond parece refletir a sua inocência. Porém, quando Rosamond se apercebe da ambivalência da realidade ao descobrir a verdadeira identidade do seu marido, perdendo de certa forma a sua inocência, a natureza torna-se mais hostil.

com os índios. Daí o conselho de Clement (e de Welty, no todo da narrativa) para olharmos para uma situação de todos os seus ângulos e para não “saltarmos para conclusões demasiado rápido”.

De todos os sítios onde Jamie e Rosamond poderiam viver, eles escolhem Nova Orleães:

New Orleans was the most marvelous city in the Spanish country or anywhere else on the river. Beauty and vice and every delight possible to the soul and body stood hospitably, and usually together, in every doorway and beneath every palmetto by day and lighted torch by night. A shutter opened, a flower bloomed. The very atmosphere was nothing but aerial spice, the very walls were sugar cane, the very clouds hung as golden as bananas in the sky. (182)

A natureza carnavalesca e diversa desta cidade permite-nos fazer uma associação ao conceito de carnavalesco teorizado por Mikhail Bakhtin. O pós-modernismo e o realismo mágico ambos operam com vista a uma libertação das velhas tradições e normas estabelecidas, assim como para esbater qualquer tipo de fronteiras. Uma técnica por vezes notória em ambas as tradições é o uso do conceito de carnavalesco explorado por Bakhtin. Esta noção aplica uma inversão das leis hierárquicas da sociedade que se encontram firmemente estabelecidas de forma a subverter as normas instituídas. 32

No seu estudo, Bakhtin define o carnavalesco como um mundo de inversões, de exuberância, de excesso e degradação, um mundo que aproxima tudo e todos sem distinção entre atores e espectadores: “Carnival is not a spectacle seen by the people; they live in it, and everyone participates because its very idea embraces all the people.” (Bakhtin 1984, 7). Destina-se a todos e por isso possui uma essência universal que suspende “all hierarchical rank, privilege, norms, and prohibitions” da vida quotidiana (Bakhtin 1984, 10). No centro desta ideia encontramos a lógica do inverso, um elemento essencial do carnaval: “From the wearing of clothes turned inside and out and the trousers slipped over the head to the election of mock kings and popes the same topographical logic is put to work: shifting from the top to bottom, casting the high and the old.” (Bakhtin 1984, 81-82).

32 O realismo mágico de Angela Carter incorpora extensamente esta teorização do carnavalesco, erodindo vários tipos de fronteiras e celebrando a mistura de categorias. Na sua ficção Carter demonstra uma capacidade de construir mundos cujas estruturas hierárquicas são desconstruídas, onde os setores privilegiados, a autoridade patriarcal e as várias fontes de supremacia são desprivilegiadas.

Uma característica do carnavalesco relevante na discussão desta obra de Welty é a possibilidade que oferece de unir opostos, de unificar e combinar o sagrado com o profano, o importante com o insignificante, o sábio com o idiota. Passadas as peripécias da narrativa, atingida a maturidade psicológica e emocional das personagens, Rosamond e Jamie obtêm o seu “final feliz”, um casamento feliz, filhos e uma nova vida faustosa de comerciantes abastados em Nova Orleães. Nova Orleães, a capital americana do carnaval, é talvez o único local onde um desenlace tão rápido e cómico poderia acontecer, acompanhado por uma inversão de papéis e classes sociais. Trata-se, pois, do local ideal onde uma diegese que explora a necessidade de se ver a vida como uma união de contrários pode terminar. A atmosfera mágica da cidade de Nova Orleães é imbuída de uma aura carnavalesca onde tudo parece ser possível. É precisamente neste local que se dá a transformação total de Jamie, uma mudança “from bandit to Merchant [which] had been almost too easy to count it a change at all, and he was enjoying all the same success he had ever had.” (185). Rosamond vê igualmente a sua vida como que magicamente transformada neste espaço.33 Este tema da união de opostos é uma temática importante na escrita weltyana. Não por acaso The Optimist’s Daughter, obra onde este tema se revela particularmente relevante, tem como espaço inicial Nova Orleães.