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Warren French, no seu ensaio sobre The Robber Bridegroom, afirma que esta narrativa gira em torno da noção de que as pessoas “are two things at once and that their “identity” at any given moment is determined by the context in which they are discovered” (French 2007, 84). Se alargarmos a discussão desta narrativa para a própria História do Sul encontramos um entendimento mais profundo e, por sua vez, mais generoso da difícil História regional, um retrato menos simplista que claramente não coincide com a visão ideológica do mainstream. Um conhecimento profundo da região, que ultrapassa o conhecimento geográfico e histórico desta, é o que garante uma voz verdadeiramente sulista.

Uma dos passos mais simbólicos desta narrativa que nos encaminha para esta leitura histórica regional encontra-se no final do romance: “The outward transfer from bandit to Merchant had been almost too easy to count it a change at all, and [Jamie] was enjoying all the same success he had ever had.” (Welty 1942, 184). French nota que a dicotomia floresta/cidade é uma temática central de The Robber Bridegroom, assim como é noutras grandes obras literárias norte-americanas, como The Scarlet Letter ou The Great Gatsby – obras que observam o início da degradação do ideal americano no momento de transformação da floresta em cidade (“market-place”) e na alteração dos valores que esta mudança exigiu. (French 2007, 86-87). Em The Scarlet Letter, por exemplo, a “wilderness” estabelece-se como um espaço de espontaneidade, naturalidade e liberdade; a cidade, por sua vez, revela-se um espaço de falsidade, de ganância, de estritos códigos de conduta, um espaço onde a liberdade de cada um se perde em troca de uma segurança económica e pessoal. Esta dicotomia está, pois, intimamente ligada ao tema do Sonho Americano e à desilusão que cresce no decorrer da História nacional perante o seu falhanço. Hawthorne parece ver o início da degradação do Sonho Americano nos valores

morais puritanos, que se extremam e se submetem aos valores materialistas puritanos que sustentam a febre do progresso técnico e económico. Em The Great Gatsby, Fitzgerald também oferece a sua visão do Sonho Americano através do prisma floresta/ cidade. O Sonho, que em épocas anteriores parecia permanecer num equilíbrio entre valores morais e espirituais e valores materiais, transfigura-se neste fim do século XIX e em inícios do século XX, passando a valorizar apenas os valores materiais de autonomia financeira em detrimento dos valores espirituais. O fruto desta transformação é captado por Fitzgerald neste clássico da literatura norte-americana, que nos apresenta uma sociedade completamente subserviente ao materialismo, a um consumismo galopante por parte de indivíduos que, como Jay Gatsby, sacrificam os valores morais em busca não só de mais riqueza e luxo, mas do estilo de vida daqueles que possuem “old money”. Como veremos mais à frente, também Macon Dead sacrifica os seus valores (neste caso, os valores da comunidade afro-americana) na sua busca pela obtenção de riqueza. Fitzgerald oferece, então, uma visão obscurecida da América que duvida do progresso técnico do “market- place”, acompanhada por uma visão nostálgica de uma América do passado ainda regida por valores espirituais. Welty, em The Robber Bridegroom, não exprime uma visão tão positiva da floresta, assim como não parece ver o início da era do “market-place” como o fim da era da “wilderness”.

Em primeiro lugar, Welty descreve-nos uma floresta que, para além de ser um espaço repleto de perigos para as personagens que aí circulam, é um espaço de “cunning”. Contudo, as principais vítimas desta desonestidade não são os americanos mas sim o povo nativo-americano. Efetivamente, se nos primeiros séculos da nação a floresta simbolizava aventura e expansão para os americanos, este período significou o extermínio para os índios. Clement afirma-o num dos seus devaneios filosóficos: “The Indians know their time has come...They are sure of the future growing smaller always, and that lets them be infinitely gay and cruel.” (Welty 1942, 21).

Welty não parece ver o passado e o presente como dois momentos distintos e com valores diferentes, mas sim como duas partes que constituem a contínua evolução da História. As personagens são as mesmas, apenas mudam de roupagem, o que leva o narrador a afirmar no final da narrativa que, para Jamie, a transformação de bandido em comerciante não foi uma mudança radical, já que, enquanto comerciante, este usufruía do mesmo sucesso que tinha como bandido. Esta instância acarreta implicações que dizem respeito à forma como olhamos para a História nacional. Enquanto que outros autores, como sugere French, “can flourish only on denunciations of the very civilization that

makes their trade possible” (French, 88), Welty toma uma posição distinta. Não só parece asseverar que os mesmos padrões de corrupção dos tempos de floresta se perpetuam no tempo, continuando a existir aqueles que buscam dinheiro fácil (Lockhart, Fink, Harp, Goat e Salome têm como derradeiro objetivo a aquisição de prosperidade material), como atesta que na evolução da História, se se perde o sentimento de aventura e de possibilidades infinitas, ganha-se algo talvez bem mais valioso: a segurança e a oportunidade de estabelecer laços familiares e comunitários. Para Welty, como é passível de ser aqui vislumbrado apenas brevemente, mas que se observa com mais clareza na sua ficção “longa”, nada se revela mais frutuoso do que a criação de raízes e laços familiares e comunitários. São esses laços que permitem em última analise atingir-se a sabedoria e a maturidade emocional.

Esta visão da História é elaborada através de uma técnica observável na literatura do pós-modernismo e do realismo mágico: uma contração temporal e espacial. Assim, The Robber Bridegroom pode ser visto como uma narrativa sobre um tempo que não se circunscreve apenas a um momento particular, nem a um local específico, mas sim uma História regional e, em certa medida, nacional. Esta crase temporal certamente nos faz relembrar obras como Cem Anos de Solidão, uma narrativa que não se resume à história de uma família mas sim à de toda a América Latina; ou A Casa dos Espíritos, obra que não se remete apenas para o destino de uma família mas sim para a evolução da História do Chile. O recurso à atemporalidade abre caminho para a inculcação nesta narrativa de toda uma pluralidade de mitologias. Welty parece também levar o leitor a entender o conjunto dos “mitos” nacionais como um conto de fadas. Essa é talvez uma das teses que a autora pretende que o leitor atinja na leitura desta narrativa ao invocar todos estes tipos de memórias (literárias, históricas e também pessoais), memórias que confrontam uma visão mitológica e arcádica do Sul como um paraíso ainda por cumprir. Este romance é, pois, uma celebração da memória de um local que nunca será apagada, uma presença fantasmática que ainda em1942 se encontra nesta terra, tanto para a autora como para o sulista.24

24 “A place that ever was lived in is like a fire that never goes out. It flares up, it smolders for a time, it is

fanned or smothered by circumstance, but its being is intact, forever fluttering within it, the result of some original ignition. Sometimes it gives out glory, sometimes its little light must be sought out to be seen, small and tender as a candle flame, but as certain. I have never seen, in this small section of old Mississippi River country and its little chain of lost towns between Vicksburg and Natchez, anything so mundane as ghosts, but I have felt many times there a sense of place as powerful as it were visible and walking and could touch me.” (Welty 1979, 286)

O “Old Natchez Trace” é, pois, um território ainda cheio de fantasmas do passado que continuam a vaguear por estas terras. Desde o início da narrativa somos introduzidos a um tempo anterior a 1798, momento no qual o território onde se passa a ação era ainda colonizado por Espanha. Porém, para além deste “fairy tale of the Natchez Place” se situar nos tempos de fronteira dos finais do século XVIII, o leitor depara-se com presenças fantasmáticas de certas personagens históricas de um tempo anterior, como os índios, que aqui apenas sobreviveram até 1732 (Kreyling 1979, 31). O tratamento do tempo como indeterminado, como já referi, é uma das principais características do realismo mágico, onde por vezes “a mythopoetic framework frequently disrupts temporal progression, and time is often indeterminate.” (Faris 2004, 99). Assim como frequentemente encontramos espaços híbridos em obras do realismo mágico e, em termos gerais, do pós-modernismo, encontramos aqui uma hibridização temporal referente a um espaço “both real and imaginary – the timeles land of fairytale, and the changing world of historical and geographical event.” (Kreyling 1979, 30). Por um lado, este território é o Éden mitificado pelos colonos em tempos de fronteira; por outro lado, é um lugar onde abundam perigos, desde índios assassinos a assaltantes violentos.

A par da desestabilização temporal e espacial, a desestabilização identitária é outra característica do realismo mágico, como já referi. Sob o tema da dualidade, que estrutura a própria narrativa – trata-se, afinal, de uma narrativa que assenta sobre diferentes dicotomias, como floresta/ cidade, o mundo ideal/ real, o bom/ mau - Welty oferece um olhar redentor sobre a identidade sulista ao construir uma história sob o princípio de que todos os eventos da História (assim como os momentos da própria vida) são positivos em certos aspetos e negativos noutros; por um lado constituem momentos de avanço e por outro momentos de estagnação, momentos que tiveram tanto consequências positivas como consequências negativas para a História subsequente. Por vezes o mal nasce do bem, e o bem do mal. Ver os tempos de fronteira sob uma ótica idílica pastoril é ver só um prisma da realidade e não o seu todo. Não existe o bem separado do mal, apenas a passagem inexorável do tempo e a memória que fica. Clement é a única personagem que possui a sabedoria suficiente para chegar a esta conclusão:

“What exactly is this now?” he said, for he too was concerned with the identity of a man, and had to speak; if only to the stones. “What is the place and time? Here all possible trees in a forest, and they grow as tall and as great and as close to one another as they could ever grow in the world. Upon each limb is a singing bird, and across this floor, slowly and softly and

forever moving into profile, is always a beast, one of a procession, weighted low with his burning coat, looking from the yellow eye set in his head.” He stayed and looked at the place where he was until he knew it by heart, and could even see the changes of the seasons come over it like four clouds”.

(…)

“But the time of cunning has come,” said Clement, “and my time is over, for cunning is of a world I will have no part in. (…) Men are following men down the Mississippi, hoarse and arrogant by day, wakeful and dreamless by night at the unknown landings. A trail leads like a tunnel under the roof of this wilderness. Everywhere the traps are set- Why? And what kind of time is this, when all is first given, then stolen away? (142-143).

Um pouco mais à frente Clement acrescenta: “The planter will go after the hunter, and the merchant after the planter, all having their day.” (162). Esta sabedoria impede-o de fazer julgamentos demasiado rápidos sobre eventos e pessoas, uma vez que para ele todos são uma multiplicidade de coisas:

“If being a bandit where this breath and scope, I should find him and kill him for sure,” said he. “But since in addition he loves my daughter, he must be not the one man, but two, and I should be afraid of killing the second. For all things are double, and this should keep us from taking liberties with the outside world, and acting too quickly to finish things off. (126).

Mike Fink declara, “Ghosts are getting more powerful every day in these parts.” (178). Estes fantasmas assemelham-se aos fantasmas de Cem Anos de Solidão, de A Casa dos Espíritos ou de Beloved, e introduzem uma outra característica do realismo mágico segundo Faris: “the intersection of two worlds, at an imaginary point inside a double- sided mirror that reflects in both directions. Ghosts and texts, or people and words that seem ghostly, inhabit these two-sided mirrors, many times situated between the worlds of life and death” (Faris 2004, 21-22). Não são só reais para as personagens como são metafóricos, no sentido em que simbolizam uma ideologia e eventos históricos que se encontram cristalizados ainda no presente, e que por isso vagueiam entre o plano do passado e o plano do presente. Como esclarece Zamora quanto à presença dos fantasmas na literatura americana:

Ghosts in American literature may serve as carriers of metaphysical truths, as visible or audible signs of atemporal, transhistorical Spirit. Or, they may carry historical burdens of tradition and collective memory: ghosts often act as correctives to the insularities of individuality, as links to lost families and communities, or as reminders of communal crimes,

crisis and cruelties. They may suggest displacement and alienation or, alternatively, reunion and communion. Still other ghosts are agents of aesthetic effect; el escalofrío, le frisson, the fantastical release/ relief from the constraints of reason. Ghosts of this sort, whose function on first reading seems primarily affective, are not to be taken lightly. They, too, are often bearers of cultural and historical burdens for they represent the sangers, anxieties, and passional forces that civilization banishes. They may signal primal and primordial experiences, the return of the repressed, or the externalization of internalized terrors. They are always double (here and not) and of duplicitous (where?). They mirror, complement, recover, supplant, cancel, and complete. Which is to say that literary ghost are deeply metaphoric. They bring absence into presence, maintaining at once the “is” and the “is not” of metaphoric truth.” (Zamora 2003, 76-77)

Esta citação, ainda que longa, é elucidativa quanto à presença dos fantasmas em The Robber Bridegroom. Neste texto, os fantasmas são uma presença recorrente, e como em muitas obras que se inserem no realismo mágico, algo plenamente aceite pelas personagens como normal25. Neste romance encontramos sobretudo os fantasmas de figuras históricas, como o dos irmãos Harp: Big Harp, cuja cabeça é mantida numa arca pelo próprio irmão, e Little Harp. Estas duas personagens são figuras históricas que habitam o panteão de figuras lendárias do folclore americano26, sendo por isso figuras mágicas, mas, ao mesmo tempo, pertencestes à História. Numa leitura metafórica, estes fantasmas históricos que povoam esta narrativa simbolizam a História sulista, sendo representativos de “historical burdens of tradition and collective memory”. Refiro-me, pois, aos “mitos” identitários do Sul, como por exemplo o mito pastoril do velho Sul como um Éden (desmistificado pela presença dos índios já em extinção), o mito dos primeiros colonos serem corajosos (desmistificado por Clement), o mito dos tempos de fronteira como um período de ouro para o país (desmistificado por personagens como Lockhart, Little Harp e Goat, que estão dispostos a cometer atos criminosos com o fim

25 “I am sorry to have disturbed your rest,” said Rosamond. But I wanted only to ask you a

question. Have you seen Jamie Lockhart?” (…)

“Jamie Lockhart the ghost?” he said.

“God in Heaven, is he a ghost now?”, cried Rosamond. “I should say he is”, said the rider. “And has been.” (Welty 1942, 173-174)

26 Micajah “Big” Harpe (1768-1799) e Joshua “Little” Harpe (1770- 1804) foram notórios assassinos que operavam nas estradas e vias fluviais do Tennessee, Kentucky, Illinois e Mississippi no fim do século XVIII, e são considerados dos primeiros serial killers dos Estados Unidos.

de adquirirem dinheiro facilmente), o mito dos homens de fronteira como “heróis” (desmistificado por Lockhart, que não só era ganancioso como era extremamente violento) e o mito da “Southern belle” (desmistificado por Rosamond, que persegue e seduz Lockhart). Essas presenças fantasmáticas do passado sulista funcionam como “reminders of communal crimes, crisis and cruelties”: nomeadamente, o massacre da população nativa americana; os crimes violentos cometidos por aqueles que procuravam riquezas facilmente, como Lockhart que, mesmo transformando-se do dia para a noite em comerciante, não deixa de ser um bandido, usufruindo do mesmo sucesso que tinha anteriormente; a perpetuação da escravatura (sabemos que, ao tornar-se comerciante, Jamie passa a possuir uma centena da escravos); a crise da mudança de estrutura económica e social do Sul de uma economia agrária (que Clement representava enquanto um “innocent planter”) para uma economia mais ambiciosa e industrial (a direção que Salome desejava seguir enquanto esposa e responsável pela plantação de Clement). Welty desconstrói, através de cada personagem, estes mitos da História do Sul, revelando-nos uma História vista de um outro prisma, uma História que não foi, efetivamente, um conto de fadas.

Eudora Welty não nos diz para esquecermos o passado, muito pelo contrário: a memória da comunidade é de extrema importância para o nosso sentido identitário. É através do exercício da memória coletiva e/ou familiar que um verdadeiro sentimento de identificação identitária pode ser conseguido, algo que autores como Márquez, Allende, Morrison, Rushdie, sublinham vezes sem conta nas suas obras. Tal como estes autores, Welty vê a memória como um organismo vivo, em constante transformação, onde o passado, o presente e o futuro confluem continuamente através da imaginação27. O que é talvez necessário é repensar-se o prisma pelo qual os sulistas vêem o passado, a forma como o cristalizam numa imagem única, fechando-o às possibilidades de um presente e de um futuro. Por outras palavras, devemos preservar a memória do passado, onde permanecem as nossas raízes familiares e comunitárias, já que a arquivação da memória, a perpetuação de tradições de geração em geração e a conexão com as verdadeiras raízes 27 Allende possui uma perceção semelhante da memória:

“Mi memoria es como un mural mexicano donde todo ocurre simultaneamente: las naves de los conquistadores por una esquina mientras la Inquisición tortura indios en otra, los libertadores galopando con banderas ensangrentadas y la Serpiente Emplumanda frente a un Cristo sufriente entre las chimeneas humeantes de la era industrial. Asi es mi vida, un fresco multiple y variable que solo yo puedo descifrar y que me pertenece como un secreto.” (Zamora 2003, 138)

familiares e comunitárias são uma solução para o sentimento de diluição identitária que a tendência moderna para a individualismo acalenta, funcionando assim, como Zamora explica, como “correctives to the insularities of individuality.” Contudo, devemos ver o passado em todos os seus prismas: aceitar que o passado não foi um “conto de fadas”, aceitar a impermanência do tempo, para se abraçar um presente e o que ele tem para oferecer.

Para suportar a sua tese sobre a história sulista, Welty recria nesta narrativa aquilo a que Mikhail Bakhtin designa no seu estudo The Dialogic Imagination como cronótopo28. Como Bakhtin explica:

We will give the name chronotope (literally, “time space”) to the intrinsic connectedness of temporal and spatial relationships that are artistically expressed in literature. (…) In the literary artistic chronotope, spatial and temporal indicators are fused into one carefully thought-out, concrete whole. Time, as it were, thickens, takes on flesh, becomes artistically visible; likewise, space becomes charged and responsive to the movements of time, lot and history. This intersection of axes and fusion of indicators characterizes the artistic chronotope.” (Bakhtin 2008, 84).

Em The Robber Bridegroom podemos encontrar uma estreita associação entre o tratamento do espaço e as coordenadas temporais. O tempo e o espaço da história avançam na direção do progresso da História americana, desde a expansão que se inicia na floresta e que se desenvolve no sentido da civilização, ou cidade. A desestabilização