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A primeira cena da narrativa é a deslocação de Clement Musgrove, um “innocent planter”, do seu lar encantado no Kentucky para as florestas cheias de perigos do Mississippi. O Éden é, pelo menos segundo as Escrituras, um lugar onde a realidade é percecionada através de opostos. A saída de Clement do seu Éden pastoril promete-lhe uma dose de realidade. Efetivamente, quando chega à cidade, apesar de querer manter os seus princípios e escolher o bem, cedo é enganado. Numa estalagem que pensa ser um local seguro para pernoitar conhece Jamie Lockhart, um indivíduo que, ainda que aparentemente um cavalheiro, é na verdade um assaltante.

Clement não é um homem inocente, mas sim um “innocent planter” (1), expressão conscientemente empregada por Welty com o fim de a fazer brilhar “like a cautionary blinker to what lies the road ahead.” (Welty 1975, 9). Trata-se sim de uma figura evocativa do “planter” do velho Sul, pertencente a um imaginário pastoril mitificado. Apesar de “inocente” Clement não é uma figura desprovida de complexidade e conflito interno. Muito pelo contrário, ele é a personagem desta história que mais rápida e argutamente reflete sobre a sua identidade e, ao fazê-lo, reflete sobre a identidade americana e humana, assim como sobre o seu papel como “planter” no desenrolar da História num momento de crise e transformação na sociedade sulista. Um observador nato, Clement consegue entender a natureza multifacetada da realidade. Isto é particularmente notório na instância da narrativa em que se encontra sozinho na floresta e inicia um monólogo no qual reflete sobre a identidade pessoal e coletiva versus a inexorável passagem do tempo:

“But the time of cunning has come”, said Clement, “and my time is over, for cunning is of a world I will have no part in ... Men are following men down in the Mississippi, hoarse and arrogant by day, wakeful and dreamless by night ... Why? And what kind of time is this, when all is first given, then stolen away? … And even the appearance of a hero is no longer a single and majestic event like that of a star in heavens, but a wondering fire soon lost.” (Welty 1942, 142-143).

Clement, assim, demonstra um entendimento do mundo e da História como um palco, onde as cenas são as mesmas, mas os atores substituídos no passar do tempo. Esta

sabedoria leva-o a escolher a via da aceitação, tanto de Jamie Lockhart pelo que é como da sua própria complexidade. A sua escolha é a compaixão, não fosse o seu nome Clement, a aceitação das contradições da vida e das pessoas. Aceitando o outro, Clement aceita-se a si próprio também, sendo capaz de analisar o seu percurso de vida com novos olhos:

“All things are divided in half-night and day, the soul and body, and sorrow and joy and youth and age, and sometimes I wonder if even my own wife has not been the only person all the time, and I loved her beauty so well at the beginning that it is only now that her ugliness has struck through to beset me like a madness.” (126).

Eudora Welty escreve que o lugar “has always nursed, nourished, and instructed man … Man can feel love for the place; he is prone to regard time as something of an enemy.” (Welty 1972, 483). Welty crê que o sulista parece sentir-se muito confortável com o conceito de lugar e não com o de tempo, como que se exaltasse um sentido do lugar de forma a resistir ao próprio tempo. Contudo, diz-nos a autora, não devemos ver o conceito de lugar como uma categoria estática, dado que este é sempre um mistério e se encontra (na nossa consciência) sempre em transformação, uma vez que a nossa perceção se altera com o tempo. A experiência prolongada no lugar, na ótica weltyana, pode levar a momentos de “insight” quanto à nossa identidade. A esta perceção Welty chama “act of focusing”, uma atitude que, como ela afirma, “has beauty and meaning; it is the act that, continued in, turns into meditation, into poetry.” (Welty 1979, 123)

Clement pode ser visto como uma personagem fortemente inspirada na tradição pastoril americana dada a sua cosmovisão, que ecoa aquilo que Lucinda MacKethan considera a “a forma de ver” pastoril:

What the ideas as images of the pastoral tradition offer most fruitfully ... is what Raymond Williams calls “a way of seeing”; the pastoralist of any age or environment envisions a particular social structure which become a dramatic mechanism for making comparisons between real and ideal worlds, for distinguishing between the artificial and the natural, for examining systems of values for anyone of a great variety of purposes, emotional and political as well as artistic. Southern literature in its own clear tradition is associated with strong judgements and a positive system of values – not always the same judgements or even the same system, to be sure, yet a literature that seems to insist on shared standards highly visible and widely articulated. Thus it has been able to speak to the need met by pastorals

generally, the need of a people in a rapidly changing world to have a vision of an understandable order. (MacKethan 1980, 6)

Este passo é significativo no contexto de The Robber Bridegroom, uma vez que esta narrativa explora acima de tudo “formas de ver”: a História da nação, da região, a vida de cada um. Será precisamente Clement Musgrove, o “innocent planter”, a figura que mais ecoa a vida pastoral, que, sentindo-se hesitante por estar num “rapidly changing world”, vai observar e analisar no contexto que o circunscreve o que é real e ideal, o que é artificial e natural, numa reflexão filosófica onde examina o sistema de valores sociais vigente. Ao mesmo tempo, será precisamente este “insight” sobre a verdadeira natureza da realidade, aquilo que lhe oferece uma renovada forma de ver que se distancia do idealismo de um velho Sul e aceita a constante mudança da natureza e o seu permanente mistério.

Por um lado, Clement corporiza os vários traços que para MacKethan constituem o modo pastoril. Em primeiro lugar, Clement incorpora a qualidade de inocência da figura oriunda de um ambiente rural que enfatiza principalmente a perda de inocência no mundo. Esta personagem apresenta também uma nostalgia persistente, que acaba por ser irónica, já que a arcádia, se nunca abandonada, não pode ser explorada. Clement revela ainda uma grande alternância entre o sonho e a realidade, que desde logo implica o fatalismo desse mesmo sonho, encontrando-se nesta narrativa num momento de lucidez quanto às pressões exigidas pela mudança. (MacKethan 1980, 66). Por outro lado, contudo, Clement, neste momento de discernimento, aceita que a natureza é mutável, que a História é uma sucessão de revoluções onde o caçador de outrora se tornará um dia a presa. A aceitação da vida como uma comunhão de contrários é o que o leva a aceitar Lockhart pelo que ele é, assim como a observar o seu percurso de vida sob uma nova ótica.

Clement, por um lado, seguro de quem é e dos valores que comunga, e por outro, aceitando que a vida é um mistério onde sempre dançam os opostos, é talvez a personificação daquilo que o sulista deve ser para Welty: alguém que retira toda a sua sabedoria do lugar em que vive e dos laços que estabelece ao longo do tempo e aceita a mudança com as suas vantagens e desvantagens, celebrando as vantagens e alterando as desvantagens através de uma mudança da sua perceção, iluminada pela experiência do passado.

Estas personagens compõem assim um esforço irónico para inverter o típico modelo de conto de fadas, de forma a mostrar que a realidade efetivamente não é um

conto de fadas, nem a História assim o foi. O olhar nostálgico sobre o passado esconde a sua brutalidade e violência. A natureza é inerentemente ininteligível, e as consequências da ação do homem são imprevisíveis. A vida pode ser horrível na sua capacidade de nos surpreender, de poder tirar-nos tudo de repente, como fez com Clement, que perdeu a primeira mulher e filho às mãos dos índios. Estas experiências fazem-nos ver que a única coisa constante é passagem do tempo. As relações humanas emergem nesta narrativa como o verdadeiro paliativo para suportar a dureza da existência, e a sua marca na memória é a única coisa capaz de sobreviver ao tempo.

A identidade é o grande tema da narrativa, uma história escrita com o propósito de, como a própria autora afima, “find out what we all wish to find out, exactly who we are, and who the other fellow is, and what we are doing here all together.” (Welty 1979, 311). Esta narrativa permite-nos tirar algumas conclusões acerca da visão de Welty sobre o tópico em questão. A identidade regional (e cinjo-me a esta leitura do romance) sobressai aqui, em primeiro lugar, como um conceito composto por muito mais do que factos históricos que, como vimos, é algo característico do realismo mágico. A identidade sulista é um caso particularmente notório, no sentido em que as suas raízes advêm claramente de “mitos”. Trata-se de uma identidade idealizada, contruída num molde pastoril segundo o qual o velho Sul é uma terra excecional, um paraíso na terra. Ao mito original do país como Terra Prometida sobrepõem-se outros com o propósito de glorificar uma velha América e mais concretamente um velho Sul no auge de todo o seu potencial, como toda uma fronteira do futuro por desbravar. A este mito do velho Sul associam-se outros mitos, como o do mito do “pastor inocente” ou a mitificação do “Natchez Trace” (que inclui todo um conjunto de indivíduos mitificados, como Fink, Hare e os irmãos Harpe). “Mitos” como estes estabelecem o Sul como uma terra messiânica, viril, pioneira, simbólica de algo tão impalpável como o puro potencial. O Sul destaca-se assim de todas as outras regiões do país por ser um território solidificado no imaginário nacional através de um discurso ideológico que impõe uma “essência”, ou visão, neste espaço: o Sul como uma terra excecional. Contudo, este discurso inculca na consciência nacional uma versão da História que obscurece certas realidades e presenças históricas, realidades essas que Welty traz ao de cima através de técnicas formais típicas do realismo mágico. Através destas práticas do realismo mágico Welty desconstrói a aura mágica do Sul no imaginário nacional.

Welty mostra-nos também como esta identidade tornada mito é cimentada de geração em geração, com o passar do tempo, em virtude das experiências vividas no

contexto da coletividade. É a vida em família e comunidade que alimenta a idealização desta identidade, muito mais do que qualquer facto histórico ou político, e é a perpetuação das tradições desses mesmos núcleos que permitem que o sentimento de identidade passe de geração em geração. Daí a importância do “storytelling” e da transmissão da memória. Welty parece concordar que, tal como a natureza, a identidade é algo que está constantemente a mudar, pelo que não a devemos cristalizar no tempo. Quando Mike Fink ameaça revelar a verdadeira identidade de Jamie Lockhart ao mundo esse fá-lo com o propósito de ter poder sobre ele. Aí Lockhart diz-lhe: “Say who I am forever, but dare to say what I am, and that will be the last breath of every man.” (13). Esta instância parece carregar consigo uma reflexão sobre quem somos e o que somos, sobre a verdadeira importância de um nome para a noção de quem somos. Qual a importância de um nome para o nosso conceito de identidade? A conclusão a que Lockhart chega é que o nome é apenas um simples rótulo, não o que somos. A nossa identidade tem a ver com o que fazemos e com as escolhas que tomamos, o que abre o horizonte para o que podemos ser no futuro. O perigo é ver a identidade como um rótulo e não como um potencial. Estabelecer logo à partida quem somos é tentar pôr limites a algo que está sempre em construção. Tentar definir a nossa identidade é estagná-la, torna-la obsoleta, restringir a possibilidade de um presente significativo e de um futuro por desbravar. Além do mais, ao reduzirmos a identidade a um rótulo (“names were nothing and untied no knots” (150), estamos a perpetuar a ilusão de que temos o controlo sobre ela, de que conseguimos entender o mistério da vida, algo que, tal como Jamie e Clement constatam, é impossível. A identidade de uma região, diz-nos Welty, é feita de tudo isto, de sonho, de História e de mistério. Afigurar a identidade implica, pois, aceitar o seu lado mágico e o seu contrário; é tentar observá-la de mais do que uma perspetiva, “to see a thing from all sides.” (185).