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2.2.2 – Ruth Foster, Magdalene Dead e Corinthians Dead

Contrariamente ao lar de Pilate o lar de Macon é um lar emocionalmente morto, frio, estéril e masculino. As personagens femininas que habitam este espaço possuem também uma vida emocional pobre, permanecendo invisíveis - uma crítica à classe burguesa negra que persegue o Sonho Americano. Ruth Foster é uma personagem que habita um “espaço impossível”. Foi domesticada pela ideologia branca típica da classe

57 A música tem um efeito semelhante em Macon. O momento em que se deixa atrair pela música que a sua irmã, Reba e Hagar cantavam é uma outra instância na qual Macon viaja no tempo. A memória e a música são intermutáveis, já que ambas transportam as personagens para outro tempo, nesse caso o passado, e para outro lugar, o Sul. Ainda que não o reconheça conscientemente, Macon sente o poder catártico da música: “Surrendering to the sound, Macon moved closer. He wanted no conversation, no witness, only to listen and perhaps to see the three of them, the source of that music that made him think of fields and wild turkey and calico.” (29). Sente, também, a sua capacidade curativa: “Near the window, hidden by the dark, he felt the irritability of the day drain from him and relished the effortless beauty of the women singing in the candlelight.” (Ibidem). O facto de Macon estar numa posição de observador através da janela da casa de Pilate é significativo. O lar de Pilate e a própria Pilate corporizam uma ontologia estrangeira ao conhecimento lógico empírico e racionalista que caracteriza Macon. Cortado das suas raízes, Macon não tem acesso ao mundo de Pilate, caracterizado pela sua ligação aos antepassados, ao sobrenatural, à terra e ao seu lado feminino maternal.

média negra quanto ao papel que deve assumir enquanto mulher. Orfã de mãe, Ruth projeta a sua falta de carinho maternal e atenção num amor obsessivo, típico das mulheres Dead, à exceção de Pilate, pelo pai. A marca de água onde no seu passado se encontrava uma jarra de flores frescas (no tempo em que o seu pai era vivo) simboliza o fantasma do passado que Ruth quer manter presente. Ao mesmo tempo, esta marca, que assinala a ausência de vida emocional, frisa a esterilidade de Ruth assim como a sua falta de contacto com o mundo natural e com as suas raízes. Em última análise, a marca de água representa a ausência que caracteriza Ruth e modela a sua identidade: ausência de mãe e de afetos maternais, ausência de contacto social, ausência de uma carreira ou trabalho, ausência de pai, ausência de um contacto físico e emocional com o marido. Todas estas ausências encorajam Ruth a amamentar Milkman compulsivamente.

Magdalene e Corinthians são outros exemplos da subjugação da mulher a esta ideologia. Várias vezes são descritas como “baby dolls”, incluindo por Porter e pela própria Corinthians58. Estas personagens são o testemunho da esterilidade dos códigos de conduta daqueles que se consideram classe média e que protegem em demasia a mulher do mundo exterior e de influências possivelmente nocivas ao mantimento do estatuto, mas que as encaminham para uma vida solitária e doméstica, roubando-lhes a possibilidade de terem uma voz. A educação formal que possam ter não é destinada ao seu enriquecimento intelectual: é, sim um acrescento ao estatuto. Lena e Corinthians são, pois, subservientes aos homens da sua vida, escravas do mundo individualista, materialista e masculino de uma classe média que persegue o Sonho Americano. O cargo a que Corinthians designa como “Amanuensis” demonstra precisamente este ponto. O narrador afirma:

Her education had taught her how to be an enlightened mother and wife, able to contribute to the civilization—or in her case, the civilizing of her community. And if marriage was not achieved, there were alternative roles: teacher, librarian, or. . . High toned and high yellow, she believed . . . she was a prize for a professional man of color. (188)

Corinthians teve acesso a uma educação superior, que incluiu o aprendizado da 58 A grown-up woman that’s not scared of her daddy. I guess you don’t want to be a grown-up woman,

Corrie.” She stared through the windshield. A grown-up woman? She tried to think of some. Her mother? Lena? The dean of women at Bryn Mawr? Michael-Mary? The ladies who visited her mother and ate cake? Somehow none of them fit. She didn’t know any grown-up women. Every woman she knew was a doll baby.” (196)

cultura clássica o que, como o narrador afirma ironicamente, encarrega Corinthians da sua função “civilizadora” na comunidade. Contudo, a verdadeira função para a qual a sua educação a encaminha, na ótica da classe de que faz parte, é a de ser um “prémio” para um “professional man of color”. Neste contexto, Morrison critica claramente o tratamento da mulher em ambiente burguês. A autora critica também, como Roynon demonstra, a transformação do currículo educativo europeu e americano da educação clássica numa força conservadora e civilizacional (Roynon 2013, 14). Morrison é uma profunda conhecedora da cultura e literatura clássicas, uma cultura na qual, como chega a afirmar, se sente intelectualmente em casa e com a qual enriquece Song of Solomon.

A evocação desta cultura no romance é típica do realismo mágico. Se Morrison incorpora aqui diferentes mitologias ocidentais, integra-as, ao mesmo tempo, na sua crítica política. A expressão “amanuensis”, acrescenta Roynon, é latina:

[D]erived from ‘a manu’, meaning a ‘slave at hand’, together with the suffix, ‘-ensis’, meaning ‘belonging to’ (Shorter Oxford 1973). Through the irony of the aspirant Corrie inadvertently describing herself as the Laureate’s readily-available slave, Morrison comments shrewdly on the dignifying effect of the Latin language, and on the ennobling and ‘enlightening’ powers of the Enlightenment-derived version of the classical tradition.” (Roynon 2013, 14).

A ausência é talvez o espaço que mais marca as personagens do romance que habitam a cidade do Norte. Especialmente, a ausência de um conforto no lar, que se associa à ausência de uma estrutura familiar estável. A verdadeira tragédia que assola a vida das personagens tem a ver com a fragmentação familiar, outra “divisão” que se espelha na estrutura e temáticas do romance, assim como na caracterização do espaço urbano e na psicologia das personagens. As imagens de fragmentação dramatizam as circunstâncias de uma comunidade dividida, de famílias separadas e, acima de tudo, de uma identidade fragmentada, fruto da desconexão com as raízes. À medida que a narrativa se vai desenvolvendo e a personagem principal se vai encaminhando em direção ao autoconhecimento, as imagens de unificação multiplicam-se. O final é, podemos concluir, a derradeira unificação: a unificação do passado com o presente, o equilíbrio atingido entre o feminino e o masculino, entre ideologias opostas. Apenas a união permitirá o alcance de uma identidade estável.

Durante a primeira parte da sua vida Milkman vagueia por todos estes espaços, geográficos e ideológicos. Milkman pode ser por isso considerado uma personagem

liminal, cujo corpo é um território de contestação, o repositório de uma multiplicidade de cosmovisões e discursos opostos. Todavia, Milkman, não reconhecendo quaisquer limites e não se diferenciando daqueles que o rodeiam, acaba por ser uma continuidade do corpo do seu pai, por não se fixar em nenhum espaço, o que enfatiza a sua ausência de identidade.

Se o Northside ecoa toda uma ideologia urbana, capitalista e individualista nortenha, o Southside espelha todo um conjunto de circunstancias económicas, sociais e culturais passíveis de serem observadas no Sul dos Estados Unidos, berço da identidade afro-americana. Precisamente por essa razão, em alguns momentos da narrativa o Southside parece estar diretamente ligado à terra-mãe, África, transpondo as barreiras do tempo e espaço:

On autumn nights, in some parts of the city, the wind from the lake brings a sweetish smell to shore. An odor like crystallized ginger, or sweet iced tea with a dark clove floating in it. There is no explanation for the smell either, since the lake, on September 19, 1963, was so full of mill refuse and the chemical wastes of a plastics manufacturer that the hair of the willows that stood near the shore was thin and pale. Carp floated belly up onto the beach, and the doctors at Mercy knew, but did not announce, that ear infections were a certainty for those who swam in those waters. Yet there was this heavy spice-sweet smell that made you think of the East and striped tents and the sha-sha-sha of leg bracelets. The people who lived near the lake hadn’t noticed the smell for a long time now because when air conditioners came, they shut their windows and slept a light surface sleep under the motor’s drone. So the ginger sugar blew unnoticed through the streets, around the trees, over roofs, until, thinned out and weakened a little, it reached Southside. There, where some houses didn’t even have screens, let alone air conditioners, the windows were thrown wide open to whatever the night had to offer. And there the ginger smell was sharp, sharp enough to distort dreams and make the sleeper believe the things he hungered for were right at hand. To the Southside residents who were awake on such nights, it gave all their thoughts and activity a quality of being both intimate and far away. The two men standing near the pines on Darling Street—right near the brown house where wine drinkers went—could smell the air, but they didn’t think of ginger. Each thought it was the way freedom smelled, or justice, or luxury, or vengeance. Breathing the air that could have come straight from a marketplace in Accra, they stood for what seemed to them a very long time. (184-185)

Apesar de extenso, este passo é significativo para a descrição da paisagem urbana e das suas características geográficas, ecológicas, socioeconómicas e culturais. A primeira frase que descreve esta paisagem evoca África graças ao odor a especiarias que paira no ar como se tivesse atravessado todo um oceano. A linguagem doce usada para

expressar esta ideia enfatiza a magia desta terra distante e encantada. Imediatamente no seguimento desta frase o registo discursivo torna-se mais realista e clínico, descrevendo os efeitos nocivos da poluição causada pela indústria que se estabeleceu na área circundante. Este passo tem uma estrutura dialógica, em que o discurso mágico evocado pelas referências a África é entrecortado pelo discurso realista que critica os efeitos ecológicos danosos da indústria na paisagem urbana, que se assemelha a uma “waste land”, e não a um espaço verdejante - o estado dos salgueiros é a prova disso. Metaforicamente, Morrison parece sublinhar a alienação do espaço urbano que está desligado das raízes, e, por isso, da natureza e do lugar mais distante, África. Este excerto revela também que este odor que viaja pela cidade apenas é sentido pela população do Southside, e não pela população mais abastada (pelo menos abastada o suficiente para possuir “air conditioners”), razão pela qual as janelas se mantinham fechadas.

A estrutura dual destas referências mantém-se para salientar também os dois tipos de população que constituem a paisagem urbana da cidade: a classe média e a população do Southside. Naturalmente, a população da classe média não sente o odor reminiscente de África dado o seu afastamento da herança cultural afroamericana. Os residentes do Southside, apesar de se encontrarem numa situação económica desprivilegiada, possuem um sentido de responsabilidade para com a comunidade, aceitando o seu legado cultural. Por isso abrem as suas janelas, físicas e mentais, por onde o odor a gengibre, “Sharp, Sharp” entra. Esta fragrância “that could have come straight from a Marketplace in Accra” contém algo na sua composição de que os residentes do Southside necessitam. É o odor da liberdade: “Each thought it was the way freedom smelled, or justice, or luxury, or vengeance.” Esta frase é premonitória dos acontecimentos que se vão desenrolar nesta narrativa, ao mesmo tempo que delineia a perceção dividida da comunidade quanto à identidade afro-americana: para uns, esta identidade é simbólica da liberdade; para outros, esta exige justiça; para outros ainda é usada como um pretexto para vingança. Por último, note-se que estes cheiros a especiarias envolvem particularmente a casa de Pilate, que corporiza precisamente uma ontologia e mundividência não-eurocêntrica, fundamentalmente africana e afro-americana.

Os habitantes do Southside pertencem à classe trabalhadora e estão expostos à violência - a zona mais perigosa era chamada de “blood bank”, uma vez que o sangue frequentemente corria aqui. Para além de pobres e marginalizados, os residentes do Southside eram vistos como mais animalescos, inclusivamente pela classe média afro-

americana59. Apesar das condições de vida desfavoráveis neste espaço, Southside encontra a sua força na união. Em vários momentos os residentes emergem como um coro60. Vemos diversos espaços nesta zona da cidade que favorecem o convívio e o sentimento de pertença comunitária, entre os quais o “Feathern’s pool Hall” e a barbearia local. São territórios marcadamente masculinos, frequentado por indivíduos que, ao juntarem-se, criam um espaço de livre expressão, sendo um espaço que forma a consciência política de personagens como Guitar. Esta consciência política é alimentada pelo trauma coletivo61.