• Nenhum resultado encontrado

Os fantasmas do Sul: o realismo mágico em Eudora Welty e Toni Morrison

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Os fantasmas do Sul: o realismo mágico em Eudora Welty e Toni Morrison"

Copied!
122
0
0

Texto

(1)

MESTRADO EM ESTUDOS ANGLO-AMERICANOS

Os fantasmas do Sul: o realismo mágico em Eudora

Welty e Toni Morrison

SOFIA FERREIRA DE MORAIS CERVEIRA

2019

(2)

Sofia Ferreira de Morais Cerveira

Os fantasmas do Sul: o realismo mágico em Eudora Welty e

Toni Morrison

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Anglo-Americanos, orientada pelo Professor Doutor Carlos Manuel da Rocha Borges Azevedo

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Setembro de 2019

(3)
(4)

Os fantasmas do Sul: o realismo mágico em Eudora Welty e Toni Morrison

Sofia Ferreira de Morais Cerveira

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Anglo-Americanos, orientada pelo Professor Doutor Carlos Manuel da Rocha Borges de Azevedo

Membros do Júri

Presidente:

Professor Doutor Rui Carvalho Homem Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Professor Doutor Carlos Manuel da Rocha Borges de Azevedo Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Professora Doutora Maria Teresa Lobo Castilho Faculdade de Letras da Universidade do Porto

(5)
(6)

Índice

Declaração de honra ... 6

Resumo ... 7

Abstract ... 8

Introdução ... 9

1 – The Robber Bridegroom e os fantasmas da História no Sul ... 26

1.1 – Um melting pot de influências intertextuais ... 29

1.2 – Os fantasmas da História no Sul ... 39

1.2.1 – O lugar mágico ... 49

1.2.2 – Jamie Lockhart ... 52

1.2.3 – Rosamond Musgrove ... 56

1.2.4 – Clement Musgrove ... 58

2 – Song of Solomon e os fantasmas da raça no Sul ... 64

2.1 – A espacialidade, os Estudos Afro-americanos e o realismo mágico: considerações preliminares ... 64

2.2 – A cidade do Norte e o Sonho Americano ... 79

2.2.1 – Macon Dead ... 79

2.2.2 – Ruth Foster, Magdalene Dead e Corinthians Dead ... 83

2.2.3 – Guitar Bains ... 87

2.2.4 – Os residentes do Southside e a linguagem ... 89

2.2.5 – Pilate Dead ... 95

2.3 – O Sul mágico ... 99

Conclusão ... 108

(7)

Declaração de honra

Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizada previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 30 de Setembro de 2019 Sofia Ferreira de Morais Cerveira

(8)

Resumo

Nesta dissertação oferece-se uma leitura de The Robber Bridegroom (1942) e Song of Solomon (1977) como romances onde técnicas do realismo mágico são aplicadas como ferramenta para criticar a natureza construída da História e visões redutoras e simplistas do Sul. Nesta ótica The Robber Bridegroom é uma narrativa revisionária da História do Sul que oferece um olhar mais rigoroso sobre as realidades do passado deste espaço, demonstrando de que forma nesta região foi imposta uma ideologia assente numa mitificação que cimenta as fundações ideológicas da região e do país. O realismo mágico neste romance atua como instrumento que enfatiza este espaço como território ideológico onde se confrontam discursos ideológicos opostos, sendo a História oficial a versão dos “vencedores” da História. Song of Solomon é um romance que também constitui uma revisão da História com vista a dar visibilidade à experiência histórica afro-americana silenciada pelo poder dominante. Recorrendo ao uso de traços do realismo mágico, Morrison consegue exprimir aspetos da cultura afro-americana não aceites pela lógica racionalista e empírica do mainstream, como a presença de fantasmas, o poder de voar ou a capacidade de prever o futuro. Tal como a cultura latino-americana, a cultura afro- americana, por ser ela própria dualista, é desde a sua origem obrigada a negociar entre o conhecimento científico ocidental e o conhecimento ancestral transmitido através da oralidade. O conflito entre estes dois discursos é particularmente visível no Sul, onde uma História e ideologia de opressão são confrontadas por uma cultura rica ainda por (re)descobrir que resiste ao seu esquecimento. Ainda que assentes em registos inteiramente diferentes, estes dois romances sublinham a História nacional e regional do Sul como ficções que mantêm estes espaços presos aos fantasmas do passado no que diz respeito à História e à raça.

Palavras-chave: Sul dos Estados Unidos, Realismo Mágico, Pluralismo Cultural, Mitologias, História

(9)

Abstract

The aim of this study is to offer a reading of The Robber Bridegroom (1942) and Song of Solomon (1977) as novels in which magical realist techniques are applied in order to critique the constructive nature of History and the “essencializing” visons of the American South. In the chapter concerning Eudora Welty I attempt to show how her novel offers a more truthful look upon the southern past by showing how this space was subjected to a mitification which solidifies the nation and region’s ideological foundations. Here magical realism operates as a tool to highlight how this geographical space is an ideological territory where opposing discourses cohabitate, and how official History is in fact the dominant power’s discourse. Song of Solomon, I endeavor to demonstrate, also revises this official History in order to register the silenced African- American historical experience. Through magical realism’s practices Morrison is able to express certain aspects of the African-American culture which are discordant with the empirical and rationalist logic of the West, such as the belief in the supernatural and in magical abilities. Similarly to Latin-American culture, African-American culture, because of its inherent duality, is since its origin forced to negotiate between the scientific western knowledge and the more ancestral and indigenous African knowledge. The tension between these contesting discourses is particularly visible in the South, where an historical experience and an ideology of oppression are confronted by a rich culture which resists cultural amnesia. While representing two entirely different types of writing, these two novels emphasize the national History as a fiction which keeps the southern space stuck to the ghosts of History and race of the past.

(10)

Introdução

Nunca a literatura demonstrou uma tão grande mudança de atitude para com a “realidade” como a contemporânea. Hoje em dia a ficção científica, a literatura fantástica e o realismo mágico constituem os últimos sucessos de vendas, deleitando os leitores com histórias onde a magia é algo habitual, descrevendo mundos onde criaturas fantásticas, poderes especiais e mundos paralelos constituem a realidade. As certezas de antes quanto à realidade que nos envolve perdem firmeza, e, ao mesmo tempo, o que anteriormente era considerado fantasia é agora mais do que nunca estudado como uma alternativa à realidade. Tomemos o exemplo do estudo de Foucault sobre a loucura, a investigação sobre fenómenos psíquicos, os fenómenos paranormais, a expansão do ocultismo e de seitas místicas e a renovação de velhos fanatismos ideológicos e religiosos. Este é o fruto da crise da realidade do século XX. Esta crise nasce com a insistência do homem em procurar significado na realidade empírica que o rodeia. No entanto, apesar de as sociedades contemporâneas produzirem cada vez mais meios que lhes permitem interpretar o universo, é-lhes cada vez mais difícil explicar a realidade. A ciência parece ter falhado nessa tarefa, criando por vezes mais problemas do que soluções. O realismo mágico é um dos frutos do falhanço do racionalismo e da ciência na explicação da realidade que nos rodeia, sendo um modo literário que enfatiza o facto de todo o conhecimento ser um ato de construção e o conhecimento absoluto uma ilusão.

Nas últimas décadas os termos “magic realism”, “magical realism” e “marvelous realism” tornaram-se imensamente populares. Embora tenham vindo a ser usados como sinónimos estes remetem para contextos diferentes. De todos, o mais popular é certamente o de “magical realism”, termo alusivo a um particular modo de narrar histórias. Desenvolvido sobretudo a partir da década de 80, este modo narrativo tem permitido aos escritores de todo o mundo uma forma de exprimir dimensões da realidade intocadas pelo cânone ocidental, tendo sido, pois, utilizado em muitas das grandes obras literárias que se inserem num contexto pós-colonial, como por exemplo as obras de Gabriel García Márquez ou de Salman Rushdie.

Apesar de o termo realismo mágico estar instituído há mais de 50 anos, a crítica parece ainda não ter engendrado uma definição clara desse conceito. Com o passar do tempo o conceito tem-se alargado, talvez pelo facto de no período da sua criação se ter circunscrito apenas à América Latina e, posteriormente, se ter expandido para outro locais do mundo. De forma a contornar este problema, grande parte da crítica tem procurado

(11)

definir o realismo mágico adotando a abordagem histórica do termo (como é o caso de Lois Zamora, Wendy B. Faris e Maggie Bowers), enquanto um grupo mais reduzido de críticos opta pela análise formal das características específicas do modo (como por exemplo Anne C. Hegerfeldt). Contudo, tentar chegar a uma definição deste modo narrativo apenas através da História do termo prova-se difícil. A minha proposta é nesta parte introdutória abordar um pouco da História do modo narrativo em questão e, ao mesmo tempo, tentar aferir as características fulcrais deste. Apesar da falta de consenso quanto à definição deste conceito e quanto às suas características formais, o realismo mágico parece ser mais do que nunca um conceito teórico atrativo e estimulante para autores de todo o mundo. Primeiro, tentemos delinear de forma geral como é que o conceito evoluiu desde o seu nascimento.

As origens do conceito

Os termos “magic realism”, “magical realism” e “marvellous realism” correspondem a três contextos diferentes. O primeiro estabelece-se primeiramente na Alemanha dos anos vinte, chegando apenas à América Latina após a publicação do ensaio de “El arte narrativo y la magia” (1932), de Jorge Luis Borges. O segundo surge na América Latina dos anos quarenta, propulsionado pela ensaística de Alejo Carpentier e Arturo Uslar Pietri. O terceiro e o mais reconhecido nasce na América Latina de meados dos anos 50, fruto da difusão do ensaio “Magical Realism in Spanish American Fiction” (1955), de Ángel Flores. Contudo, como refere Echevarría, nestes três momentos não existe uma relação de continuidade. Por exemplo, Echevarría afirma que Flores desconhece as reflexões de Carpentier e de Pietri sobre este assunto, assim como parece estabelecer uma relação muito distante com a obra de Franz Roh e com o surrealismo. Assim, conclui o crítico, não devemos procurar uma sequência coesiva entre os três momentos uma vez que ela não existe. (Echevarría 1990, 112)

Apesar de o termo “magical realism” estar hoje bastante associado à América Latina, as suas origens remontam à arte europeia dos inícios do século XX. A crítica atual concorda que o primeiro a empregar o termo foi o crítico alemão Franz Roh (1890 – 1965) para se referir a um novo estilo de pintura pós-expressionista desenvolvido no contexto da República de Weimar. Trata-se de uma nova forma de expressão que deve ser considerada mais como um realismo idealista do que um realismo mágico, um realismo

(12)

que se prende não com o observador, mas com uma nova forma de se ver a realidade. Daí esta forma de expressão artística ter sido apelidada de “Nova Objetividade”.

Em Nach-Expressionismus. Magischer Realismus. Probleme der neuesten europäischen Malerei, publicada em 1925, Franz Roh usa este termo para caracterizar um estilo de pintura que se distancia da arte expressionista, principalmente pela sua atenção minuciosa ao detalhe, pela sua clareza de traço e pela sua representação dos aspetos não-materiais da realidade. Contudo, o foco “mágico” desta pintura não remetia para a magia per se, mas para a magia e mistério escondidos sob os aspetos racionais da realidade, o maravilhoso e o fantástico que se encontram velados no homem. Como refere Maggie Bowers, esta atenção à dimensão não-material da realidade foi inicialmente influenciada pelas leituras psicanalíticas de Sigmund Freud e pelas pinturas iniciais de Giorgio de Chirico, pinturas associadas ao movimento italiano da “Arte Metafísica”, que também se interessava pela representação de objetos através de ângulos não familiares (Bowers 2004, 9). Os surrealistas também foram sobremaneira influenciados pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud e Carl Jung, que exploraram a profundidade da mente humana. Dado o peso que o subconsciente possui sobre o consciente, uma arte estritamente realista torna-se para os surrealistas desajustada para retratar com veracidade a vida interior do homem. Para Roh é necessário observar-se minuciosamente o mundo objetivo de forma a vermos com clareza as dimensões ocultas da vida interior.

A obra de Roh teve um grande impacto na América Latina. Em meados dos anos vinte, capítulos da obra de Roh acima mencionada foram traduzidos para espanhol por Fernando Vela, e publicados na Revista de Occidente sob o título de Realismo Mágico: Post expresionismo; Problemas de la pintura europea más reciente. Esta revista, referencia Bowers, circulava entre autores latino-americanos, entre os quais Jorge Luis Borges e Miguel Ángel Asturias. Estas publicações tornaram-se influentes por proporcionarem as primeiras traduções de importantes textos europeus (Bowers 2004, 12).

O pós-expressionismo e o surrealismo que se desenvolveram na Europa nesta altura influenciaram o desenvolvimento do realismo mágico que conhecemos hoje. Alejo Carpentier (1904-1980), considerado o inventor do realismo mágico na América Latina, e o venezuelano Arturo Uslar-Pietri (1906-2001) foram extremamente influenciados pelas vanguardas dos anos vinte e trinta. Carpentier, de origem franco-russa, nasce em Lausanne (apesar de ter insistido durante a sua vida ter nascido em Havana, onde os seus pais se estabeleceram após o seu nascimento). Foi um dos fundadores do movimento afro-

(13)

cubano, que procurou exaltar as influências africanas na cultura cubana, nomeadamente na literatura e na música. Em 1928, Carpentier parte para Paris e junta-se ao grupo surrealista liderado por André Breton1. Carpentier, que testemunhou o florescimento da

arte das vanguardas, insistia na necessidade desta de captar o homem em toda a sua totalidade. Ao mesmo tempo, desejava reclamar a independência artística da América Latina, um contexto particular que, para ser descrito, necessitava de abandonar os moldes literários europeus. Assim sendo, Carpentier cria o conceito de “marvelous realism” (ou “el real maravilloso”), um conceito que descreve um estilo mais apropriado para retratar a essência da América Latina, espaço habitado por diversas culturas e etnias.

Efetivamente, tal como vários escritores que usavam o realismo mágico afirmaram, a América Latina é um espaço cuja realidade não era equiparável à mundividência europeia. Hernan Cortés, relembra Carpentier no prólogo de El Reino de Este Mundo (1949), registou que não possuía a linguagem para descrever com verosimilhança o que testemunhou no Novo Mundo. Este novo espaço maravilhoso necessitava de ser descrito de uma forma que captasse os aspetos irreais (para o europeu), que naturalmente confluíam com o real. Carpentier declara neste prólogo que o realismo mágico é a ferramenta mais apta para descrever a realidade maravilhosa da América Latina. Neste ponto, o realismo mágico distancia-se do “realismo mágico” (ou “magic realism”) de Franz Roh, que para Carpentier era artificial e pretensioso. Carpentier é, com este texto, o primeiro a destacar a “maravilhosa realidade americana”.

Os textos de Carpentier, e também os de Flores, foram alvo de duras críticas. Uma das questões mais criticadas dos ensaios destes autores tem a ver com o facto de esta perspetiva, a perspetiva da realidade da América Latina como inerentemente mágica, ser o produto de um olhar obrigatoriamente de fora, um olhar de um ocidental, para quem e só para quem a América Latina é um local exótico. Ou seja, o realismo mágico só é “mágico” para os ocidentais e não para os locais, pelo que o realismo mágico ficaria dependente do background cultural do leitor. Como veremos mais à frente, esta crítica desvirtua precisamente a essência e os imperativos do realismo mágico. Em primeiro lugar, porque a essência deste modo narrativo reside precisamente no contacto e tensão entre culturas, tensão esta muitas das vezes observável no próprio contexto de vida do autor, que é obrigado a negociar entre os valores da sua comunidade/ nacionalidade de origem e os valores de uma educação intelectual ocidental. Este argumento apenas reforça

(14)

a divisão entre colonizador e colonizado, o que vai contra um dos objetivos desta escrita que é precisamente o da crítica pós-colonialista. Outra crítica direcionada aos textos de Carpentier e Flores remete para o facto de este argumento reduzir este modo narrativo a uma escolha temática: para um texto ser considerado fiel ao realismo mágico, este tem obrigatoriamente de abordar aspetos únicos da realidade latino-americana, nomeadamente aspetos históricos e culturais desta região. Cada vez mais, contudo, os críticos tendem a concordar que o realismo mágico é uma escrita que extravasa os limites geográficos da América Latina, servindo a escrita pós-colonial no geral, ao ponto de ser frequentemente caracterizado como um modo narrativo inerentemente pós-colonial. (Hegerfeldt 2005, 29). Como Hegerfeldt nota, modos heterogéneos de reflexão sobre a magia existem em todas as sociedades, não só na latino-americana (Hegerfeldt 2005, 33), pelo que é ingénuo limitarmos o realismo mágico à América Latina2. Uslar Pietri foi também um dos primeiros autores o a aplicar o termo de realismo mágico à ficção latino- americana. Associando-se ao surrealismo, o venezuelano deixa-se inspirar por este movimento que desafia o realismo, apontando para novos territórios a descobrir como o mundo dos sonhos, o subconsciente, o primitivo e o mito.

Para Ángel Flores, o “pai” do realismo mágico na América Latina não é Carpentier nem Pietri mas sim Jorge Luis Borges. A sua “versão” do realismo mágico deve as suas origens ao modernismo europeu e a influências especificamente espanholas3. No geral, a crítica apenas o considera como um percursor do realismo mágico. Contudo, tal como Echevarría não deixa de notar, toda a ficção latino-americana posterior deve muito a Borges (Echevarría 2012, 97). Além disso, recordemos que o seu livro mais celebrado, Ficciones, é publicado em 1944.

Na sequência do ensaio de Flores emerge uma forte onda de criatividade literária cuja escrita apresenta tanto traços do realismo mágico de Roh como do realismo mágico 2 Allende partilha esta mesma opinião: “What I don’t believe is that the literary form often attributed to the works of [...] Latin American writers, that of magic realism, is a uniquely Latin American phenomenon. Magic realism is a literary device or a way of seeing in which there is space for the invisible forces that move the world: dreams, legends, myths, emotion, passion, history. All these forces find a place in the absurd, unexplainable aspects of magic realism [ ] Magic realism is all over the world. It is the capacity to see and to write about all the dimensions of reality. (Hegerfeldt 2005, 34-35 )

3 Assim sendo, Flores acaba por criar “a new history of influences on the production of Latin American magical realism that could be traced back to the sixteenth century Spanish writer Miguel de Cervantes Saavedra, the turn of the twentieth century Czech-Austrian writer Franz Kafka and also (sharing some influences with Roh) European modernists such as the Italian painter Giorgio earlier, Cervantes’ novel Don Quixote is often thought of as a precursor to de Chirico” (Bowers 2005, 15)

(15)

de Carpentier. Esta onda constituiu o chamado “boom” do realismo mágico na América Latina, do qual escritores como García Márquez são o produto, autores que situam as suas obras em solo latino-americano, mas que nela incorporam técnicas modernistas de cunho europeu. O “boom” latino-americano desenvolve-se a partir de um primitivismo romântico pós-colonial (as chamadas “novelas de la tierra”4), desenvolvendo-se como uma escrita que combina o sentido de um passado histórico e indígena com o experimentalismo avant-garde, resultando num produto de influência latino-americana e europeia. Nesta fase, o realismo mágico concilia assim um indigenismo, um pendor político (que enquadra esta escrita na crítica pós-colonial) e uma vontade de independência cultural com inovações técnicas modernistas, tais como o “stream-of- counsciousness”, a narração não-linear, o imaginário surrealista5 e uma consciência etnográfica primitivista.

A América Latina possuiu durante muito tempo uma relação de subalternidade para com a Europa e particularmente para com a Espanha, o que a colocou nas margens da perceção, conhecimento e cultura da Europa. Nos anos cinquenta e sessenta, quando se dá o “boom” do realismo mágico, muitos autores procuraram exprimir-se de uma forma mais ousada e experimental. Ainda que a vertente experimentalista seja distintamente modernista no sentido em que os autores procuraram quebrar o paradigma das anteriores tradições literárias através do uso de novas técnicas narrativas, o estilo da sua escrita é considerado pós-moderno6. Como já foi referido, Alejo Carpentier distinguiu o realismo

4 Cf. Echevarría em Modern Latin American Literature (2012).

5 Tanto o surrealismo como o realismo mágico podem ser considerados revolucionários ou subversivos. Os surrealistas tentaram escrever em oposição à literatura realista, que refletia a sociedade burguesa. O realismo mágico, na sua oposição à racionalidade cartesiana herdada pelo iluminismo, é inerentemente subversivo do ponto de vista político na sua disrupção de categorias. Além disso, ambos os movimentos tentam explorar aspetos não pragmáticos e não realistas da existência. Contudo, os dois movimentos devem ser diferenciados. O surrealismo não lida com a realidade material, mas com a imaginação e com a mente, estando particularmente interessado em retratar aspetos da vida interior através da arte. Contrariamente, o realismo mágico lida com eventos mágicos que, pela sua descrição em termos realistas, são aceites sem questionamentos por parte do leitor. Em termos práticos, o surrealismo investe em imagens espetaculares que nascem a partir de objetos concretos e quotidianos que, no cômputo geral, parecem resistir à interpretação. No realismo mágico encontramos imagens que, apesar do seu efeito como extravagantes, possuem frequentemente motivações políticas. Será talvez por isso que Carpentier, na sua explicação do realismo mágico, afirma que o realismo mágico produzido na Europa é de certa forma mais vazio, já que não conta com uma realidade que o enaltece. Além disso, o surrealismo foi um movimento que surgiu especificamente em 1919 e terminou no final dos anos 30, estabelecido através de um manifesto, ao contrário do realismo mágico.

6 Os trabalhos de Frederic Jameson, Jean-François Lyotard e outros teóricos do pós-modernismo sobre o paradigma pós-moderno acentuam a importância da História e a necessidade de uma forma de se representar o que ultrapassa o discurso normal. A reflexão pós-moderna da História enfatiza a ausência de uma verdade histórica absoluta, exprimindo dúvidas quanto à autoridade dos factos e aponta para a relação entre o facto

(16)

mágico europeu do latino, ao qual chamou “lo real maravilloso americano”. No prólogo de El Reino de Este Mundo, Carpentier proclama um realismo mágico específico da América Latina, um realismo mágico que constitui a herança deste novo mundo7. Para

Carpentier, este contexto de mistura de culturas, que inclui o crioulo ou o mestizo, está no centro da alma da América Latina, tornando o realismo mágico uma ferramenta apta para expressar a sua cultura. As influências multiculturais da população indígena, dos europeus e dos afro-caribenhos oferecem uma exuberância e uma profusão do detalhe a este território que o autor designa de espírito do “barroco”8.

Hoje, o realismo mágico é usado por escritores de todo o mundo. O que os une é, talvez, a sua consciência política manifestada através da atenção dada a grupos marginalizados como os povos das ex-colónias, as mulheres e minorias étnicas. Certos autores, como por exemplo Rushdie, criticam as atitudes colonialistas britânicas; outros comentam a estrutura de classes dentro da sua sociedade, como por exemplo Angela Carter; outros refletem sobre o domínio do mainstream sobre as minorias, como por exemplo Toni Morrison, Leslie Marmon Silko e Maxine Hong Kingston. Devido à sua inerente mistura de perspetivas opostas, a escrita do realismo mágico é o discurso apropriado para um escritor emigrante de classe média pós-colonial como Rushdie, cuja

e a narrativa. Segundo a posição marxista de Jameson, as versões únicas da História foram criadas pelo poder instituído de forma a justificar a sua posição fixa no centro do poder. Por isso, esta abordagem da História pós-modernista é a de muitos autores que se inserem neste modo narrativo. A história é, pois, tida como ambígua, os factos como incapazes de atribuir significado, a realidade como contruída sobre preconceitos. Estes autores, em vez de simplesmente adotarem uma posição nihilista quanto à história ou, contrariamente, em vez de almejarem uma versão única da história, adotam a posição pós-moderna ao tentarem recriar a História usando fragmentos de factos que permanecem na incerteza, que compõem uma multiplicidade de perspetivas históricas, cada uma delas legítima. Este “ironic reworking of the past”, expressão empregue por Linda Hutcheon, dá origem àquilo que a mesma autora considera como “historiographic metafiction”. Esta linha do pensamento pós-moderno anda, pois, de mãos dadas com o realismo mágico, uma vez que que ambos apostam na exposição do carácter provisório da verdade e do conhecimento, e na revisitação das partes da História que a tornam relevante para o presente, indo ao encontro daquilo a que Jameson aponta como a necessidade de se pensar historicamente numa era que se esqueceu da História.

7 “Because of the virginity of the land, our upbringing, our ontology, the Faustian presence of the Indian and the black man, the revelation constituted by its recent discovery, its fecund racial mixing [mestizaje], America is far from using up its wealth of mythologies. After all, what is the entire history of America if not a chronicle of the marvellous real?” (Zamora 2005, 88)

8 “And why is Latin America the chosen territory of the baroque? Because all symbiosis, all mestizaje, engenders the baroque. The American baroque develops along with the criollo culture, with the meaning of criollo, with the self-awareness of the American man...; the awareness of being Other, of being new, of being symbiotic, of being a criollo. (Zamora 2005,100)

(17)

escrita foi tanto influenciada pelo contexto pós-colonial britânico como pela cultura indiana popular em toda a sua multiplicidade e contradição. Autores como Ben Okri e Amos Tutuola mesclam mitologias locais, questões pós-coloniais e religiosas com influências locais, como por exemplo, a presença de fantasmas e de espíritos de antepassados.

As características formais do realismo mágico

Passemos agora aos traços que distinguem este modo narrativo de outros discursos literários. Wendy B. Faris na sua obra (2004) sumariza as características formais deste modo narrativo, pelo que partirei do conjunto de características por esta autora formulado e o expandirei com dados de outros teóricos.

A primeira e a mais óbvia característica a observar é a coexistência de códigos incompatíveis, neste caso o elemento realista e o elemento mágico. Como refere Faris, existe nestes textos o “irreducible element of magic” (Faris 2004, 7) que diz respeito a acontecimentos ou personagens inexplicáveis para o leitor mas tidas como normais pelas personagens. Ao mesmo tempo, nestas narrativas o normal é frequentemente visto como espetacular: o natural e o sobrenatural coexistem na narrativa sem se oporem. Por exemplo, é frequente encontrarmos objetos do dia-a-dia descritos de uma forma mágica. Este tipo de textos enquadra sempre na sua diegese um mundo ficcional, invariavelmente ancorado no mundo real. O mesmo não acontece no caso da literatura fantástica, na qual o mundo descrito é completamente diferente do mundo real. No realismo mágico vemos um conflito não ao nível textual, mas ao nível da interpretação de quem lê. Dependendo do background cultural do leitor, este vai ter um choque maior ou menor ao ler eventos maravilhosos, o que significa que a receção de eventos mágicos vai variar de leitor para leitor. No âmbito desta hesitação, os dados mágicos podem ser lidos a dois níveis: o literal e o alegórico. Não por acaso, as obras do realismo mágico possuem vários níveis de leituras, o que constitui outro traço do realismo mágico. (Faris 2004, 21).

(18)

o mundo do facto e o mundo da ficção, o mundo indígena e o mundo moderno9. No

realismo mágico observamos a abolição da linha divisória entre realidades opostas segundo a lógica racionalista típica do ocidente. Decorrente desta característica nascem várias estratégias usadas para realçar a magia deste tipo de realismo: por exemplo, a literalização de metáforas (Hegerfeldt 2005, 56). A título de exemplo, em Como Água para Chocolate, de Laura Esquivel, Tita e Pedro incendeiam-se literalmente tal a força do seu amor. Por outro lado, o fantasma que assombra a casa de Sethe em Beloved representa toda uma memória de um passado de sofrimento em comunidade. Aqui, numa lógica semelhante, o passado e o presente surgem no mesmo plano. Outra estratégia é o tratamento neste modo narrativo das palavras como coisas reais, algo que, como lembra Hegerfeldt, o realismo mágico tem em comum com as teorias pós-modernas, que consideram que a realidade é criada através da palavra. Assim, encontramos em alguns destes textos a palavra (sob a forma de encantamento, por exemplo) como desencandadora da realidade material (Hegerfeldt 2005, 58).

Outro traço caracterizador do realismo mágico é a sua exploração de questões ontológicas. Como Brian McHale explica, enquanto que o modernismo é marcadamente epistemológico (que diz respeito à forma como conhecemos a realidade), o realismo mágico é, no geral, ontológico (que diz respeito ao que é que conhecemos)10. Esta

diferenciação de McHale também se estende ao tratamento das questões de identidade no modernismo e no realismo mágico. Em ambas, frequentemente, a identidade é o resultado

9 “The magic realist vision thus exists at the intersection of two worlds, at an imaginary point inside a double-sided mirror that reflects in both directions. Ghosts and texts or people and words that seem ghostly, inhabit these two-sided mirrors, many times situated between the two worlds of life and death; they enlarge that space of intersection where a number of magically real fiction exists.” (Faris, 2004, 22). Um exemplo textual desta característica pode ser encontrado em A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende, onde a matriarca da família Trueba, Clara, consegue desde pequena comunicar com espíritos e seres de outros planetas, para além de prever o futuro, de falar telepaticamente com as irmãs Mora, e, ocasionalmente, tocar piano sem tocar nas teclas e mover objetos pelo ar.

10 Tomemos como exemplo as personagens de Faulkner e García Márquez no geral. Nas obras do primeiro somos “atirados” para a mente do narrador através de um processo de “stream of consciousness”, isto é, o processo de pensamento das personagens, aprisionadas no espaço mental e no tempo íntimo das suas consciências. Em Cem Anos de Solidão, por outro lado, encontramos a História das várias gerações da família Buendía, composta por inúmeros Aurelianos e Arcádios, o que faz com que o leitor frequentemente confunda quem é quem. Nesta obra, o autor não investe numa psicologia pessoal, mas sim num arquétipo familiar, onde os Arcádios tendem a ser grandes, corpulentos, fortes e ditatoriais, e os Aurelianos a ser pequenos, magros, tímidos e intelectuais. Neste aspeto, as diferenças entre o modernismo epistemológico e o pós-modernismo (por vezes epistemológico, mas quase sempre ontológico) podem ser comparadas às diferenças que separam Freud e Jung. Freud investiu principalmente na psicologia do indivíduo, enquanto que Jung estudou extensivamente a consciência coletiva.

(19)

de, para usar o termo de Faris, uma “bricolage” de identidades (Faris 2004, 32-33)11. Esta

reflexão sobre o que realmente conhecemos, noção desestabilizada pelo realismo mágico, leva, pois, à ênfase na historiografia, algo que o realismo mágico tem em comum com a teoria e ficção pós-colonial. Este modo narrativo frequentemente subverte a versão oficial da História, escolhendo narrar sob a perspetiva do outro, do oprimido, de forma a mostrar a maneira como a historiografia foi contruída de forma a servir os interesses de quem a criou.

Para além de explorar os mecanismos de construção da História, o realismo mágico chama a atenção para outras fontes que não o dado histórico, que contribuem para a conceção de um passado e presente comunitários. Refiro-me às lendas e mitos, que frequentemente se enquadram nas tradições orais de certas comunidades. No âmbito do realismo mágico, o conhecimento vinculado por tradições orais frequentemente vem a representar formas alternativas de conhecimento que subvertem o paradigma ocidental, algo particularmente visível em Song of Solomon. Assim vemos a ciência a ser parodiada, a necessitar também de legitimação. Efetivamente, uma das ideias principais deste modo narrativo tem a ver com o facto de a verdade não ser absoluta, quer a pressuposta verdade histórica quer o conhecimento científico. Este traço tem um efeito surpreendente em termos de estrutura narrativa: muitas vezes esta ficção oferece a exibição de um evento sob vários pontos de vista, algo que encontramos muito frequentemente em Toni Morrison, por exemplo.

Um outro atributo desta escrita é a frequente disrupção das categorias de tempo, espaço e identidade. Como refere Frederic Jameson, algo que vemos no realismo é o relógio e a rotina substituindo o ritual, o espaço sagrado e o tempo cíclico. (Faris 2004, 24). No realismo mágico encontramos precisamente o ritual, e espaço sagrado e o tempo cíclico. Não só neste estilo encontramos obras que alteram perceção do tempo e do espaço, como também da identidade: “the multivocal nature of the narrative and the cultural hybridity that characterize magical realism extends to its characters, which tend toward a radical multiplicity.” (Faris, 25).

O meu objetivo neste trabalho é observar se realmente podemos constatar a presença de um realismo mágico aplicado em The Robber Bridegroom (Capítulo 1) e 11 Os Buendía são um exemplo disto. Compõem uma dinastia bíblica, representam a América Latina colonizada e também uma oligarquia do século típica do século XX. Contudo, em Cem Anos de Solidão o passar do tempo é circular e de contornos míticos, tendo em conta o cumprimento da maldição da família, a repetição não só de nomes mas de características, a propensão para determinadas atividades de indivíduo para indivíduo e o tom apocalíptico do romance, alinhando o romance ao pós-modernismo.

(20)

Song of Solomon (Capítulo 2) com vista a analisar a forma como este modo narrativo foi usado como uma ferramenta para exprimir a experiência histórica do Sul com mais veracidade, assim como a forma pela qual esta região foi alvo da inculcação de um discurso ideológico pelo poder dominante com vista a cimentar as fundações ideológicas da nação e da região em questão.

A primeira obra publicada em 1942 é ainda pouco estudada pela crítica, talvez por aparentar ser apenas um conto de fadas idiossincrático e apolítico. A análise de uma obra como esta parece ser problemática no contexto da exploração da teoria do realismo mágico. O capítulo referente à obra de Welty tentará responder às questões que naturalmente surgem ao tentarmos enquadrar esta obra num modo narrativo como o realismo mágico: será que poderemos observar esse modo aplicado nesta obra? De que forma estas técnicas são usadas como um instrumento pela autora para expor a experiência histórica e pessoal do Sul? E, se de facto podemos observar práticas típicas de uma escrita como o realismo mágico, quais as implicações de tal leitura na receção da obra de uma autora que, segundo a crítica, se distancia da exploração de questões políticas?

Eudora Alice Welty nasce a Abril de 1909 em Jackson, Mississippi. Prolífica contista e romancista norte-americana, Welty ancora a sua obra no contexto da sua terra natal, Jackson no Mississippi, onde permanece durante a maior parte da sua vida. Esta experiência permite-lhe observar com atenção este lugar e seus habitantes, presenças que imprime quase sempre nas suas obras. Segundo vários críticos, um traço característico da sua obra é a ausência de uma imposição ideológica, como se Welty se quisesse esquivar da alusão aos problemas latentes da sociedade. Contudo, e como o próximo capítulo comprova e o todo da sua obra confirma, Welty é uma autora cujas personagens são construídas de forma a deixarem entrever, nas suas atitudes, discurso e maneirismos partilhados pelo todo da comunidade de que fazem parte, as fragilidades e os pontos de força de uma ideologia coletiva que é transmitida de geração em geração. Esta posição literária valeu-lhe a designação de “the most amiable and inoffensive writer that America has ever produced.” (French 2007, 87), como se Welty apenas se confinasse ao típico romance doméstico ausente de peso crítico e ideológico. Contudo, um olhar prolongado sobre a obra weltyana leva-nos a discordar desta opinião e a afirmar precisamente o oposto. Welty consegue, e é aqui que reside a sua mestria, mostrar os pontos frágeis da sua comunidade, não impondo o seu ponto de vista ao leitor, mas dando-lhe a observar o processo que leva à cimentação de certas ideologias. Assim, o que marca a mentalidade

(21)

sulista não são personalidades específicas ou eventos marcantes (apesar de estes terem existido), mas sim toda uma cosmovisão que se perpetua de geração em geração, e é esse processo que Welty capta na sua escrita, sobretudo na sua escrita “longa”. Por isso mesmo Welty nos revela a vida doméstica da típica família do Mississippi, pilar da identidade sulista e responsável pela perpetuação de um conjunto de formas de pensar e atitudes que o leitor que não conhece a região só entenderá se adotar a postura de observador silencioso. O lugar sobre o qual Eudora Welty escreve é o Sul, região cuja identidade se foi construindo ao longo da História em torno de uma economia agrária e de um modo de vida rural, território que até à Guerra Civil de 1861-1865 esteve assente no sistema de plantação.

Chloe Ardelia Wofford, mais conhecida como Toni Morrison, nasce a 18 de fevereiro de 1931em Lorain, Ohio. Morrison, contrariamente a Welty, construiu todo um corpus textual ficcional e não-ficcional ancorado numa escrita ativista, encetando uma crítica feminista afro-americana. Morrison invoca a tradição literária afro-americana como contexto estético, e, ao mesmo tempo, serve-se de ferramentas concetuais típicas de uma escrita situada nos espectros da pós-modernidade, como por exemplo o uso da ironia, de mitos e a revisitação histórica. O seu objetivo enquanto escritora manteve-se o mesmo ao longo dos anos: recordar uma História e cultura afro-americanas que a sociedade mainstream americana parece negar.

Toni Morrison, à semelhança de muitos outros escritores afro-americanos, dá uma enorme importância aos espaços nas suas narrativas. Como veremos mais à frente, por motivos de natureza histórica, os afro-americanos desde sempre estabeleceram uma relação conflituosa com o espaço americano. Este povo foi forçado a habitar um continente estrangeiro, levado a viver em casas que não as suas, obrigado a trabalhar numa terra que não a sua e a habitar em espaços onde estava exposto a perigos constantes, desde o Sul rural ao Norte industrializado. Para o afro-americano, a geografia americana foi sempre um espaço hostil. Se o Sonho Americano prometia ao homem branco comum a oportunidade de aquisição de terras e um espaço de liberdade e igualdade, ao afro- americano prometia o contrário – a despossessão a todos os níveis.

O Sul tende, assim, a ser retratado ficção afro-americana de duas formas: ou é retratado como um espaço de opressão e violência, do qual se quer fugir, ou é descrito como um espaço, em última instância, cuja “essência” espiritual é negra, como Jean Toomer concretiza em Cane.

(22)

dúvida perante verdades absolutas e essências puras, retrata o Sul de forma ambivalente, o que se alinha com a estrutura dialógica de Song of Solomon. Por um lado, o Sul é um espaço de trauma para as personagens que vivem no Norte e que cresceram no Sul. Milkman, ainda na primeira parte do romance, ouve histórias de indivíduos como Guitar e Freddie sobre esta região descrita como “Bad country... Bad, bad country” (Morrison 2006, 109). Porém, como Milkman vem a descobrir na sua viagem a esta região, o Sul, ainda que seja um território hostil para o afro-americano no geral e para os antepassados de Milkman em particular, simboliza toda uma topografia espiritual que contém uma herança afro-americana, um legado que traz à memória a capacidade de resiliência e riqueza cultural dos afro-americanos, os “sixty million and more”.

Ao longo da História americana e desde os seus inícios “míticos” o Sul manteve- se como um lugar de contradição. Durante muito tempo, e especialmente após a Reconstrução, a terra da “Dixie” permance no imaginário sulista como uma paisagem idílica, um novo Éden, repositório dos valores humanos do “Old South” que privilegiava a vida agrária assente no contacto direto com a natureza e que oferecia àqueles que estivessem dispostos a trabalhá-la o sustento necessário e uma vida calma, afastada da indústria. Esta visão mítica não só sobrevive como floresce no pós-guerra Civil, uma memória que se mantém viva na mentalidade sulista, uma ilusão constantemente nutrida, paradoxalmente, pela humilhação do Sul pós-guerra que se intensifica com o tempo. A derrota na guerra e os seus despojos, nomeadamente a vulnerabilidade económica e psicológica, não deixam de perturbar a mentalidade do sulista. Faulkner chama a esta condição “o peso da história”, e foi este o mais celebrado escritor sulista a traduzir este sentimento em palavras.

William Faulkner é precisamente uma figura importantíssima no desenvolvimento do realismo mágico na América Latina. Quando as suas obras aí são publicadas na América Latina nos anos trinta, os autores sul-americanos vêem nelas um exemplo análogo ao da sua experiência histórica, acolhendo Faulkner como exemplo a seguir na criação de uma literatura que lhes permite descrever uma realidade marcadamente latino- americana. Assim sendo, Faulkner é uma figura chave no nascimento do chamado “boom” latino-americano. Como refere Deborah Cohn, através da ficcionalização da experiência histórica do Sul dos Estados Unidos, dos despojos da guerra e do consequente sentimento de marginalização e de vulnerabilidade económica e social, autores como

(23)

Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Carlos Onetti e Gabriel García Márquez viram no Sul ficcional de Faulkner um mundo análogo ao seu, que ainda permanecia por expressar12.

Esta veneração por Faulkner por parte dos autores latino-americanos do “boom” tem a sua raiz nos paralelos encontrados entre a História e a sua representação nas literaturas das duas regiões. Obviamente, como Cohn não deixa de afirmar, não devemos generalizar a experiência histórica do continente latino-americano comparando-o à região do Sul dos Estados Unidos, já que este continente é composto por várias nações heterogéneas em termos históricos, culturais e sociais. Contudo, existem circunstâncias históricas comuns entre as duas regiões que nos permitem elaborar paralelos entre as duas literaturas. Como adianta Cohn, ambas partilham um passado de despossessão, de grandes diferenças socioeconómicas para com o resto do país, de um esgotamento de recursos que se direcionavam a um norte mais rico e tecnicamente mais desenvolvido, entre outros aspetos (Cohn 1999, 27). Estas circunstâncias históricas paralelas fazem com que a intelligentsia literária destas duas regiões enfatize a importância da construção de uma identidade regional e nacional através da literatura13.

No seu paradigmático romance On the Road, Jack Kerouac, figura cimeira da chamada Beat Generation, põe na boca de um dos seus protagonistas: “I couldn’t imagine this trip. It was the most fabulous of all. It was no longer east-west, but magic south.” (Kerouac 2000, 241). O Sul é, de facto, um local mágico não só para os sulistas e para os autores sulistas, mas para toda a nação. A literatura sulista constitui uma tradição particular, quer em termos de autores quer de núcleos temáticos, em grande parte devido à sua História. Contrariamente ao que acontece no nordeste dos Estados Unidos, o Sul não foi primeiramente povoado por puritanos que procuravam fundar uma teocracia, mas por um grupo variado de homens que aqui se estabeleceram motivados por variadas razões. Os primeiros exploradores deste Sul ameno viram na sua fertilidade a possibilidade de um novo Éden onde o homem poderia recomeçar do zero. Assim sendo, este novo Éden foi sempre investido ideologicamente pelo ideal agrário, mais proeminentemente defendido por Thomas Jefferson, um peão chave no desenvolvimento

12 “We Latin American novelists live in countries where everything remains to be said, but also where the way to say all of this has to be discovered... The central task of discovering the profound or latent reality behind the world of appearances can only be carried out by the invention of new and adequate techniques.” (Carlos Fuentes, “Situación del escritor an América Latina”, Mundo Nuevo, citado por Deborah Cohn 1999, 15).

13 Da mesma forma, paralelos entre a “Southern Renaissance” e o “Boom” do realismo mágico podem ser definidos. Ver Cohn (1999).

(24)

da “ideologia sulista” desde a sua génese. Este defendia que “bons americanos” iriam enriquecer-se material e espiritualmente através do trabalho em quintas familiares onde poderiam usufruir das vantagens do contacto direto com a natureza e da independência enquanto cidadãos votantes, afastados das tentações da cidade e da vida subserviente à indústria14.

No século XVIII, à medida que a escravatura se vai tornando cada vez mais um ato central na economia sulista, a perceção dos sulistas pré-guerra torna-se cada vez mais criticada pelos “outsiders”, que viam os sulistas como preguiçosos, despóticos e ignorantes, tal como são percecionados em Uncle Tom’s Cabin. Perante esta visão exterior os sulistas começam a responder literariamente, ao focarem-se em abstrações pastoris e poéticas ou em histórias romanceadas que constituem o “plantation novel”15.

Muitos dos autores sulistas mais notórios escreveram durante a “Southern Renaissance”. De uma certa forma, podemos ver a “Southern Renaissance”, que abarcou autores como William Faulkner, Allen Tate, Caroline Gordon, Katherine Anne Porter e Robert Penn Warren, como um movimento literário que corresponde ao período que se estende entre as duas guerras mundiais. Neste período, os escritores já se situavam a uma distância suficiente da Guerra Civil para avaliar os seus efeitos na cultura sulista. Para a sua reflexão utilizaram entre outras técnicas o “stream-of-counciousness”, a criação de variados pontos de vista e justaposições narrativas abruptas. Em termos temáticos, como referi anteriormente, a Guerra de Secessão é inextrincável de um legado de culpa e vergonha de um passado que ainda afeta no presente o sulista. Outro grande tema da literatura sulista da Renascença é a relação que o indivíduo estabelece com a sua comunidade. Ao contrário do que é observável noutras regiões, no Sul a identidade individual passa pela identidade coletiva. Daí a importância nesta literatura da estrutura familiar.

Mesmo depois da Renascença, a literatura sulista continua a florescer e o Sul

14 Como Maria Teresa Castilho nos explica, “Trabalhar é rezar” é um slogan luterano e calvinista que Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo ... acentua para defender que o protestantismo na América é responsável pela ideia do progresso ilimitado americano que, por sua vez, tem o “market- place” no seu centro.” (Castilho 1996, 90)

15 O “plantation novel” tornou-se um importante género dentro da literatura sulista, e inclui quase sempre personagens como o Senhor caucasiano benigno e a esposa pura e caridosa que supervisionava e cuidava dos negros mais jovens dentro da plantação familiar. As “slave narratives” ofereciam a perspetiva oposta, como vemos na obra de Pendleton Cook e Holly Chivers. Outros escreveram num tom mais cómico, como é o caso dos humoristas George W. Harris, Johnson Jones Hooper, Joseph Glover Baldwin e do seu sucessor, Mark Twain.

(25)

continua a oferecer ao mundo grandes autores, muitos deles influenciados por Faulkner, como Reynolds Price, James Dickey e Barry Hannah. Autores afro-americanos também alcançaram proeminência, como Alice Walker, Ernest Gaines e Dori Sanders. Outro aspeto importante da literatura sulista é a formação de uma forte tradição de escrita feminina às mãos de autoras como Eudora Welty, Flannery O’Connor, Carson McCullers, Ellen Douglas, Elizabeth Spencer, Kate Gibbons, entre outras.

Louis D. Rubin Jr, notório teórico da cultura e literatura sulistas, considera que apesar das dúvidas de muitos quanto à existência de um Sul, tendo em conta o tempo e a mudança, ainda podemos falar de uma comunidade social e cultural que oferece uma espécie de autodefinição e uma identidade aparentemente partilhada que, curiosamente, não só sobrevive face à mudança social e económica, como se intensifica com o passar do tempo. (Rubin 1980, 17-18).

Concluindo, a História do Sul é como que um fantasma, uma presença invisível mas real que nutre a imaginação dos autores sulistas, entre eles Eudora Welty. A História desta região é o principal fantasma presente em The Robber Bridegroom, como veremos na exploração de personagens como Jamie Lockhart, Rosamond Musgrove e Clement Musgrove. É a exploração destes elementos que fazem desta região um espaço mágico, que permite à autora desvendar em toda a complexidade as sombras do passado. Se, por um lado, esta terra permanece um local mágico no imaginário sulista, o Sul possui outro fantasma, decorrente do primeiro: o fantasma da raça. O florescimento do Sul como potência económica deve muito a uma economia assente no trabalho escravo. Concomitantemente, os autores sulistas produziram histórias onde os narradores negros exprimem um sentimento de nostalgia pelo “Old South” e pela vida de plantação onde o negro e o branco trabalhavam como iguais com o objetivo comum de cuidar da terra. A “peculiar institution” produziu não só uma fenda que levou à Guerra Civil e, consequentemente, à posterior situação socioeconómica desvantajosa do Sul, mas também uma ferida ainda por sarar na mentalidade sulista e nacional. Esta presença fantasmática da raça em conexão com o Sul será por mim analisada no contexto da obra Song of Solomon, de Toni Morrison, através da exploração de personagens como Macon Dead, Ruth Foster, Magdalene e Corinthians Dead, Guitar Bains e Pilate Dead.

O espaço é uma categoria importante na obra weltyana precisamente por ser uma influência que segundo a autora molda os indivíduos, daí a importância da noção de raízes e História na sua obra. Numa região onde se verifica uma tendência histórica de núcleos familiares alargados que habitam num espaço predominantemente rural, mais

(26)

precisamente plantações, a estrutura familiar mantém-se no mesmo local praticamente desde o nascimento até à morte. Como consequência, em primeiro lugar, o espaço e a sua História, quer factual quer mitológica, são naturalmente uma grande inspiração para a literatura sulista. Em segundo lugar, o núcleo familiar e a comunidade adquirem uma extrema importância para o sulista, que convive com estas duas entidades durante a maior parte da sua vida. Naturalmente, então, o sulista vai aprendendo as complexidades da natureza humana através das relações familiares e comunitárias. Em Welty, que admite que sempre escreveu sobre a sua terra natal porque nunca lhe ocorreu não o fazer, os dramas existenciais revelam-se no desenvolvimento dos laços que unem as pessoas.

Contudo, e como iremos observar, se a ficção weltiana dá ao espaço sulista uma enorme relevância, Welty não deixa de revelar as contradições que se associam a este espaço. Refiro-me mais concretamente aos pressupostos ideológicos construídos sobre este espaço geográfico, pressupostos estes que fazem parte do discurso do poder dominante. Ao mesmo tempo, e dado o foco que esta autora coloca na exploração das relações humanas, dos mitos, do sonho e da fantasia, Welty escolhe temáticas e técnicas formais que, como Maria Teresa Castilho assevera, distanciam a sua obra de leituras completamente regionalistas, abrindo horizontes para leituras mais universais. (Castilho 1996, 16). Welty também retira a sua inspiração do espaço sulista, colocando “a região, a ansiedade da afirmação da sua diferença – colhida no coração do processo de transformação da região – no centro da sua ficção.” (Castilho 1996, 61). As ansiedades e contradições internas da vivência sulista e respetivos valores são expostas por Welty na sua obra, onde a autora questiona, entre outros assuntos, o papel da mulher que na tradição literária sulista que emerge desde o século XIX surge como sustentador de uma ideologia sulista.

Morrison, tal como Welty, oferece um retrato ambivalente do Sul como um espaço, por um lado, de contradições e simbólico de um território de conflito ideológico, e, por outro, como um repositório da memória esquecida de um povo, uma memória não só de opressão, mas, principalmente, de resiliência e coragem.

Sendo o realismo mágico uma tendência literária que permite a expressão da multiplicidade, do híbrido e do ambivalente, este modo narrativo permite a estas autoras uma revisitação histórica que desenha um retrato de uma região e de uma nação como um território onde ideologias e visões do mundo opostas convivem sem se anularem mutuamente.

(27)

1 - The Robber Bridegroom e os fantasmas da História

I have realized as I grow older that history, in the end, has more imagination than oneself. Gabriel García Márquez

Os fantasmas da História no Sul ficcional de Welty são o fruto dos referidos pressupostos ideológicos impostos sobre o espaço geográfico sulista, nascidos da vontade do poder dominante de manter a superiodidade de uma ideologia assente numa mitificação das fundações americanas numa versão da História que cristaliza o papel da América como uma Terra Prometida ainda por cumprir. Em The Robber Bridegroom vemos já uma resistência a este tipo de ideologia, algo que é expandido nas obras que fazem parte da ficção “longa” de Welty. O olhar crítico sobre este discurso ideológico serve-se neste romance de uma revisitação histórica, ancorando esta obra na esteira do pós-modernismo. Além disso, a atenção dada à figura da mulher e seu papel no contexto histórico e social do Sul - um papel que Welty, no todo da sua ficção, assevera ser uma construção ideológica masculina – é também incluida numa leitura feminista concretizada por críticos que também se servem das teorizações pós-modernas como ferramenta crítica.

Ainda que o realismo mágico lide, como referi, com a multiplicidade e hibridização cultural, é possível enquadrarmos a obra de Welty no âmbito deste modo narrativo dado o estatuto duplamente marginal que esta autora possuía, ao ser uma escritora (e) sulista. Como Maria Teresa Castilho explana detalhadamente na sua dissertação sobre a ficção “longa” de Welty, devido a variadas circunstâncias históricas, falar-se do Sul é falar-de uma terra “mesma” e “outra” na consciência americana, consciência esta formada pela ideologia dominante16. Se Sul e Norte compunham

16 “Também o Sul simultânea e paradoxalmente vê negada essa mesma diferença pela impossibilidade de a afirmar, quando dela emerge o discurso da ideologia nacional, coletiva, do estereótipo chamado “América”. E dela irrompe porque ... estamos perante uma cultura e uma literatura que é afinal no seu limite extremo um “outro-mesmo”, ou então porque a coesão e homogeneidade cultural imposta pelo fenómeno da “americanização” assim o acabou por exigir. Ou ainda, e talvez sobretudo por isso, porque ambos os aspetos estão presos entre si.” (Castilho 1996, 42). Remeto para a dissertação de Maria Teresa Castilho, que contextualiza de forma minuciosa as definições de conceitos como o de “discurso” foucaultiano e o de “ideologia” de Althusser e a sua importância no âmbito do pós-estruturalismo, assim como os enquadra na sua exploração do conjunto de mitos que criaram a ideia da América.

(28)

inicialmente um todo e se estiveram ambos implicados no mito fundacional da Terra Prometida, a experiência histórica do Sul (particularmente com o advento da Guerra da Secessão) leva ao desenvolvimento de, como explica Maria Teresa Castilho, um “nacionalismo regionalista” ... que quer afirmar as suas diferenças.” (Castilho 1996, 114), fazendo do Sul uma terra “outra” e da literatura sulista uma literatura “outra”17: [A] ficção

de Welty, e concretamente a sua narrativa “longa”, surge como uma escrita que vive na tensão entre ser outra, ser a da diferença de ser Sul, ou ser a mesma, ser canonicamente americana porque permeada pelo “discurso dominante”. (Castilho 1996, 126). Este estatuto margial da autora posiciona-a simultaneamente dentro e fora do cânone – posição esta que oferece uma enorme riqueza de leituras e perspetivas – impede que a autora seja vista para lá dos estereótipos que a associam a uma escrita totalmente feminina e regionalista.

Welty, ao rever a História de uma região com o objetivo de chamar a atenção para os dicursos ideológicos nela inculcadas e ao questionar o papel dado à mulher sulista por essa mesma ideologia, cumpre os requesitos básicos para ser lida no âmbito da pós- modernidade. Maria Teresa Castilho chega mesmo a apontar para uma “fragmentação da identidade” da escritora dada a sua condição de poeta e mulher e, ao mesmo tempo, dada a sua condição de escritora americana e sulista. (Castilho 1996, 175). Estas problemáticas em conjunção com o uso de um conjunto de práticas formais típicas do realismo mágico permitem-nos definitivamente ler The Robber Bridegroom como uma narrativa cuja escrita se aproxima do estilo deste modo narrativo.

Esta ideologia de que falamos diz respeito a uma retórica nascente no período fundacional da nação, segundo a qual o povo “americano” numa ótica puritana vê o Novo Mundo como uma Terra Prometida por Deus, a “city upon a hill”. Como assevera Castilho, servindo-se das considerações de Sacvan Bercovitch:

De facto, foi precisamente esse passado colonial e uma profunda relação bíblica anunciada pelos Patriarcas Puritanos que fizeram nascer e inventar uma “América”, “utópica”, “única” e “mítica” ... cuja história sagrada havia sido iniciada na Nova Inglaterra puritana. E ao

17 A literatura sulista cria assim uma visão “mitificada” (porque utópica e sentimentalista) deste espaço. Como explica Castilho: “Com efeito, nas preocupações dos escritores sulistas estava apenas o ressurgir do velho orgulho nacional, de uma “outra literatura” que evidenciasse as qulidades únicas daquela “outra terra”, daquela velha Dixie: formosas “Belles” e “Ladies” O’Hara galanteadas por nobres cavalheiros que, por sua vez, paternalmente acolhiam negros felizes e leais à sombra de frondosas magnólias. Contribuía, deste modo, a “Causa Perdida” para sentimentalizar nostalgicamente os tempos sulistas anteriores à guerra.” (Castilho 1996, 121)

(29)

inventar assim essa “Nova Terra Prometida”, estavam lançadas simultaneamente as ideias que informariam ... o período revolucionário e pós-revolucionário. Deste modo, a revolução não era pois entendida e sentida como um acto de insurreição e violência, mas sim como um gesto de obediência à Provisência para fazer avançar a profecia no sentido do progresso e da glória crescente “americana”, sendo, por isso, um dos muitos ritos de consenso que daí em diante a nação viria a conhecer, e entre eles a própria literatura da renascença americana. (Castilho 1996, 51)

Esta ideologia, que tem por base um discurso político e religioso, desde logo conjuga a esfera do sagrado com a esfera do profano, o que permite que o capitalismo se associe ao mito da “América”:

[O]s responsáveis pela colónia (Nova Inglaterra) inculcavam através de discursos políticos e religiosos o mito do progresso da “América”, presente desde logo na sua própria ideologia puritana, já que esse mesmo progresso significava a confirmação da eleição divina. (...) Desta forma, repudiar o que é “não-americano” é um modo de exprimir a fé numa ideologia nacional que fez da “América” o símbolo de uma sociedade perfeita associada à classe média em contínuo florescimento, já que o capitalismo foi (e é) entendido como um “dogma social” que conduziria ao crescimento e progresso da Nação. (Castilho 1996, 51-52)

A crítica weltyana num primeiro momento revela um interesse em analisar presenças como o grotesco e o mito. A partir da década de setenta, como afirma Castilho, com a mudança do paradigma literário-cultural, esta crítica conta com novas ferramentas metodológicas e perspetivas que são capazes de proporcionar novas leituras da obra de Welty. Estes novos olhares sobre a obra de Welty diversificam-se, pelo que a partir deste período podemos encontrar estudos desta obra no contexto da literatura americana no geral, análises que se focam no seu contexto sulista e até leituras femininas e feministas da mesma. (Castilho 1996, 10-11). Uma leitura de uma das suas obras segundo o prisma do realismo mágico, dada a natureza pós-moderna deste modo narrativo, vai desde logo permitir toda uma diversidade de leituras.

Para constatar a presença do modo do realismo mágico em The Robber Bridegroom procedo agora a aplicar as características enunciadas por Wendy B. Faris a esta narrativa: o “elemento irredutível de magia” (Faris, 7); a confluência de mundos opostos; uma destabilização das dinâmicas de tempo, espaço e identidade e o estabelecimento de novas formas de conhecimento da realidade.

(30)

como que uma incubadora das ideias seminais que germinarão nas posteriores coleções de contos e romances desta autora. Esta obra retira a sua força do facto de estar fixamente ancorada no real e, ao mesmo tempo, de construir um contrarealismo18 - alinhando-a aos

imperativos do realismo mágico. Trata-se efetivamente de um texto diferente dos restantes de Welty, sendo um melting pot de influências intertextuais, desde o conto de fadas europeu dos irmãos Grimm, à mitologia grega e à presença do folclore americano de fronteira, entre outras. Para além destas presenças de carácter mítico e lendário, este texto pode ser também enquadrado no género do chamado “Southern Romance” e ainda, de certa forma, no gótico sulista, géneros que Welty aqui assumiu para da melhor forma refletir sobre o impacto da experiência histórica do Sul no ethos da região na sua contemporaneidade. O bric-à-brac que estrutura esta narrativa pode ser visto como uma espécie de hibridismo, traço típico do pós-modernismo19. Welty recorre ao pastiche de

figuras elas próprias construídas sob um discurso ideológico precisamente com o propósito de questionar esta mesma ideologia no âmbito da revisitação histórica que tece no romance.

1.1 – Um melting pot de influências intertextuais

18 “Ora mais próxima de um cânone realista, ora parecendo querer abandonar esse mesmo cânone, Welty exprime toda a sua capacidade como escritora através de um método lírico, de um cuidadoso emprego do cómico – tão próximo da tradição do humor sulista, mas simultaneamente tão próprio e particular – e da utilização de técnicas que passam pela apropriação de lendas, mitos, folclore e história local.” (Castilho 1996, 4-5)

19 O pós-modernismo usa efetivamente o hibridismo (o resultado da mistura de culturas) e a “bricolagem” (apropriação e combinação de elementos díspares), como ferramenta para a crítica ao etnocentrismo. Como refere Hassan, a hibridização representa “the mutant replication of genres, including parody, travesty, pastiche” (Hassan 1986, 506), algo que se enquadra na tendência para o pluralismo, ou por outras palavras, para o ecleticismo estético e miscigenação (termo que possui uma conotação cultural e especificamente pós-colonial). Como já foi referido, a miscigenação é um conceito importante para o realismo mágico, dado que é uma presença constante nas obras de Rushdie, Márquez e outros, autores que investem numa crítica ao pós-colonialismo. A hibridização associa-se àquilo que Hassan considera ser “indeterminacy or indeterminacies” which include all manners or ambiguities, rupture and displacement affecting knowledge and society.” (Hassan 1986, 504). O realismo mágico, como foi anteriormente mencionado, sublinha novas formas de conhecimento da realidade. Existem vários tipos de hibridismo, mas todos eles apontam para uma rejeição de todas as formas de determinismos, autoridade ou pureza, quer culturais, linguísticos, estéticos ou artísticos. Nada tem um valor absoluto dado que tudo é construído. Um exemplo icónico deste hibridismo dentro do realismo mágico pode ser encontrado em Os Versos Satânicos. Como afirma Rushdie, esta narrativa tem a ver com a “hybridity, impurity, intermingling, the transformation that comes of a new and unexpected combination of human beings, cultures, ideas, politics, movies, songs”, sendo “a song to our mongrel selves” (Rushdie 1992, 394). Escritores do realismo mágico como Rushdie, Márquez, Borges e outros criaram criaturas híbridas, muitas vezes através de uma “colagem” de várias influências, nomeadamente o folclore e a mitologia, com a sua própria imaginação. O hibridismo sugere, pois, também a fragmentação e o duplo.

(31)

Uma parte considerável da obra de Welty é enriquecida com a presença de mitos e folclore, quer universais quer regionais. Nesta obra o leitor encontra variados ecos de diversas tipologias literárias: mitos gregos, contos de fadas de origem europeia, lendas regionais (que compõem o chamado tall tale sulista), baladas, entre outros. The Robber Bridegroom, o primeiro romance de Eudora Welty, é uma obra rica, ainda que relativamente pouco estudada pela crítica, teada com todos estes elementos intertextuais. Contudo, Welty não deixa de imbuir esta história de profundidade e realismo, criando um conto de fadas literário e de tom pós-modernista. Nesta obra encontramos por isso a tensão entre estes dois tipos de impulsos: o realista, que ancora a narrativa no histórico, e o contra-realista (nascido da intertextualidade, do pastiche e da ironia que se confluem com a própria imaginação da autora), mais alinhado ao modernismo e ao pós- modernismo.

Para Welty o folclore, o mito, as lendas locais, os contos de fadas e a memória infantil estão intimamente associados:

There were the fairy tales - Grimm, Andersen, the English, the French, “Ali Baba and the Forty Thieves”; and there was Aesop and Reynard the Fox; there were the myths and legends, Robin Hood, King Arthur, and St. George and the Dragon, even the history of Joan of Arc; a whack of Pilgrim’s Progress and a long piece of Gulliver. (Welty 1983, 8)

A influência da leitura e escuta do conto de fadas durante a infância é sentida no todo da obra weltyana, e por isso esta possui alguns pontos em comum com o conto de fadas canónico. Como afirma Randisi, “[t]he relationships explored in fairy tales are familial, the struggles for power domestic; the landscapes of fairy tales are permeated with the wish to be loved and to belong, the fear of being alone and outcast.” (Randisi 1990, 31). A tradição de ler, ouvir e contar histórias, para além de possuir uma importância considerável na formação literária da autora, torna-se ainda mais relevante dado o contexto regional em que Welty se insere. O Sul dos Estados Unidos alimentou desde sempre a tradição do “storytelling”, um costume que ainda mantém a memória viva e a comunidade unida20. A própria autora o admite: “When we were children we listened a lot. We heard stories told by relatives and friends. A great many were family tales. We naturally absorbed not only fairy tales, but the sheer nature of telling them.” (Keith 1984, 142).

Referências

Documentos relacionados

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

O Conselho Deliberativo da CELOS decidiu pela aplicação dos novos valores das Contribuições Extraordinárias para o déficit 2016 do Plano Misto e deliberou também sobre o reajuste

Apesar do glicerol ter, também, efeito tóxico sobre a célula, ele tem sido o crioprotetor mais utilizado em protocolos de congelação do sêmen suíno (TONIOLLI

Το αν αυτό είναι αποτέλεσμα περσικής χοντροκεφαλιάς και της έπαρσης του Μιθραδάτη, που επεχείρησε να το πράξει με ένα γεωγραφικό εμπόδιο (γέφυρα σε φαράγγι) πίσω

Quando as carnes in natura (bovina, suína, frango, peixe e outros) e seus produtos cárneos, que são utilizados na alimentação humana, iniciam o processo

Todavia pode-se concluir que esse relato de caso clínico mostrou efeitos positivos em relação ao tratamento com Toxina Botulínica A para correção de assimetria facial por